Morava numa das ladeiras do bairro de Lourdes, próximo à igreja, uma das mais belas de Belo Horizonte. De sua vida pessoal, nada se sabe. Talvez fosse o último rebento de uma estirpe familiar. Vivia só numa daquelas casas em que a porta da sala dava diretamente na calçada. Sem luxos; apenas dois cômodos e a saleta apertada. Porém, Boaventura só saía à rua vestido com esmero. O terno escuro sem uma dobra, a gravata de seda em nó de mestre, os sapatos espelhados de tanto lustro. Abraçara estranho ofício: visitar familiares de pessoas falecidas. Nem a todos agrada o triste dever das visitas de pêsames. O que dizer a um pai inconsolável com a perda do filho? Ou à esposa jovem privada repentinamente da companhia do marido? Culpar Deus, a incompetência da medicina, a própria vida por culminar na morte? As frases de ocasião soam rarefeitas e inadequadas, as lágrimas causam constrangimento, por menos que se fique o tempo parece demorado. Boaventura, no entanto, descobrira, antes que a barba despontasse em seu rosto esquálido, adorar visitas de condolências. Ainda que não tivesse nenhuma relação com a família do defunto, abastecia-se do obituário dos jornais ou dos proclamas fúnebres pregados nos postes das esquinas, para se dispor a uma palavra de conforto. Supunha-se tratar-se de um daqueles amigos que só o falecido poderia identificar.
Ninguém duvidava de que Boaventura privara da afeição do enterrado, mormente após escutar suas reverenciais palavras de lamento por tão irremediável perda. Tamanho o efeito de sua exequial diplomacia que, logo, amigos incumbiram-lhe de cumprir, no lugar deles, as visitas de condolências. Tão bom efeito causavam que, não tardou, as solicitações cresceram, o que obrigou Boaventura, para dispor de tempo, a cobrar módicas quantias pelo encargo. Bastava-lhe o endereço da casa enlutada e uma breve descrição do falecido. Apresentava-se à família como amigo do amigo, manifestando as excusas do ausente por motivo de força maior, mas que, no entanto, lhe solicitara o respeitoso obséquio. Palrador, porém com senso comedido do ritmo das frases, e em tom confessional, Boaventura não se afligia ainda que os familiares desabassem em choro. Evocava as virtudes do falecido, segundo lhe dissera o remetente, e o fazia com tanta arte, enfático nas inigualáveis qualidades, que a família surpreendia-se ao descobrir, graças àquele estranho tão polido, talentos e virtudes que ela própria jamais percebera no ente desaparecido.
Se a viúva ou a mãe soluçava inconformada, Boaventura sacava da memória meia dúzia de citações bíblicas e, piedosamente, desfiava as glórias da vida celestial. Com voz pausada, suas palavras aquietavam corações, aliviavam culpas, confortavam dores. Era tido por muitos como o anjo enviado por Deus para livrar os olhos do véu que nos impede mirar quão melhor é a vida eterna. A fama de Boaventura disseminou-se pela cidade. Políticos passaram a contratá-lo para prestar votos de condolências. Nos enterros, da boca dele brotava, em nome do deputado fulano, cujos sentimentos lutosos o impediam de se manifestar a viva voz, um tocante discurso fúnebre. Sua retórica pincelava o mais admirável retrato do defunto. Muitos em Belo Horizonte estavam cientes de que, desse empenho necrófilo, Boaventura extraía o sustento. Mas fingiam não sabê-lo mercador de condolências. Talvez porque, frente a uma perda, melhor remédio é uma palavra confortadora que o silêncio da indiferença.
No dia em que Boaventura faleceu, o cemitério do Bonfim pareceu exíguo para tanta gente. Lágrimas correram em gratidão póstuma aos bons serviços prestados pelo homem que tratava a morte com reverência e sabia aplacar os sofrimentos de quem sobrevive ao afeto perdido. Boaventura tinha o dom dos pêsames, talento que ninguém demonstrou ali no cemitério. O silêncio diante do caixão pousando no fundo da sepultura ecoou como gritante alerta de quão importante era o ofício do falecido. Foi a melhor homenagem. A morte cala, inexoravelmente. Para quem fica, há que dizer uma palavra. O difícil é encontrar a adequada. Esse era o mérito desse meu tipo inesquecível.
Frei Betto é escritor, autor de “Gosto de Uva” (Garamond), entre outros livros.