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Padre Cristiano Pinheiro: Por que não separar o joio do trigo imediatamente?

Um compositor e poeta canadense, Leonard Cohen, compôs uma bela canção em que afirma: Em tudo há uma falha, uma rachadura, mas é exatamente por esse “desacerto”, por essa imperfeição, por essa “parte rachada” que entra a luz.

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Foto: Unsplash

Na parábola do domingo passado, “do Semeador”, vimos que o coração humano produz fruto quando acolhe o “sopro” de Deus, quando dá adesão à Palavra que é semeada, deixando com que ela penetre no terreno da sua própria humanidade. É assim que produzimos fruto, é assim que chegamos à plena realização do nosso caminho. Hoje, através de outras parábolas que falam diretamente do Reino, o Evangelho concentra a nossa atenção sobre a semente.

Em primeiro lugar, podemos dizer que a nossa natureza humana é vocacionada a acolher a Palavra e a ação de Deus, em uma total convergência às iniciativas do Espírito Santo, expondo-se inteiramente a Ele. Só assim a nossa vida se torna lugar de experiência e revelação da Palavra, terreno onde se manifesta e se expande um “Amor maior”, um Amor divino. 

Porém, com o pecado, a humanidade “abriu a guarda” ao demônio, o “inimigo da sua natureza”, como diria Santo Atanásio. Esse inimigo – de Deus e da nossa humanidade – envolve e seduz a nossa natureza humana, fazendo-a vítima de uma ilusão: ele planta uma “semente corrompida” cuja germinação é praticamente igual àquela da “semente bela” enviada pelo Pai. 

O que é o joio?

O joio (ou cizânia) — uma espécie de erva daninha cujo nome científico em latim é “lolium temulentum” — é muito parecido com o trigo, e essa semelhança torna difícil a sua erradicação das plantações. No entanto, acontece uma distinção maior quando começam a aparecer as espigas, sobretudo quando o trigo começa a amadurecer. Enquanto os grãos do trigo se tornam portadores de uma luz cada vez mais dourada, brilham quando expostos ao sol, a espiga do joio escurece e se apaga.

Além de escuro, desprovido de luminosidade, o joio é venenoso, contém fungos que produzem toxinas com efeitos graves sobre quem se aproxima. O grão de trigo, por sua vez, torna-se pão, alimento, fonte de vida, e, na Eucaristia, converte-se em Corpo de Cristo, ou seja, “torna-se Igreja”, eclesialidade, liturgia, comunhão de todos em “um só corpo”: uma humanidade nova, uma comunidade reunida para ser santificada, para celebrar a Ressurreição, para viver a vida divino-humana do Filho de Deus.

A palavra hebraica para a cizânia (joio) é zun-zunim, proveniente da raiz zanah, que significa “prostituição”. Isso nos faz ver ainda mais o quanto o “inimigo da nossa natureza” deseja nos enganar e nos envolver em algo que é “contrário à nossa natureza”, fazendo-o passar por algo aparentemente “bom” para nós. Tantas coisas supostamente benévolas são, pelo contrário, perversões, miragens, mentira, acabando por dilacerar o nosso interior, por ferir a nossa alma. 

É preciso paciência!

A primeira reação é, então, espontânea e imediata: “temos que eliminar completamente este mal!” Sim, diante de um mal explícito, é natural que queiramos tão logo livrar-nos dele, para podermos sentir-nos livres e em paz. Contudo, é importante considerar  — da mesma forma como Jesus o fez ao contar essa parábola “do joio e do trigo” — o quanto esse discernimento é delicado, até mesmo difícil. O caminho que nos redime é marcado por uma grande paciência, por uma mansidão salvífica, uma divina pedagogia que trata a nossa humanidade com delicadeza, com um certo “respeito”, para não nos arruinar. A eliminação do mal não é algo “ao nosso alcance”, é preciso que um “Outro” nos liberte e nos salve. “Porque vossa força é o fundamento de vossa justiça e o fato de serdes Senhor de todos, vos torna indulgente para com todos”. (Sab 12,16)

Um diretor e crítico cinematográfico russo do século passado, chamado Andrej Tarkovskij, afirmava que “eliminar o mal no homem significa destruir o homem”. Isso não quer dizer que o homem é identificado com “o seu mal”, mas essa asserção pode de algum modo nos ajudar a entender e aprofundar a nossa meditação do evangelho. O joio tem uma raiz grossa, que penetra profundamente no solo, portanto, querendo erradicá-lo, corre-se o risco de acabar arrancando também o trigo. 

Três tentações que podem advir de querer separar logo o joio do trigo

As “parábolas do Reino” que encontramos no Evangelho de Mateus devem ser lidas à luz do complexo e rico mistério da nossa humanidade, do nosso “destino divino”. Porém, a nossa realização final, a nossa santidade, não prescinde de um longo caminho de conversão e amadurecimento. “Arrancar o mal de uma vez” pode fazer com que o homem caia em outros perigos e se contamine com outras enfermidades da alma, acabando por “se mutilar” ao invés de “se curar”. Podemos, então, tentar evidenciar em tais parábolas três grandes tentações – interligadas – que sofremos em nossa vida espiritual, comunitária e eclesial:

A primeira é aquela de um certo “elitismo espiritual”: a pretensão de uma total eliminação do joio com “a força do próprio braço”, a fim de criar para si um “campo puro”, em que só haja trigo. É a tentação de uma “humanidade perfeita em si mesma”, que trabalha sobre si mesma e que pensa poder fazer-se “imaculada” com seus próprios esforços. Nessa suposta “perfeição”, a pessoa passa a julgar-se superior, cai na soberba, na arrogância (e na ilusão) de ter criado um “mundo puro”, feito por si mesma e para si mesma. 

Jesus deixa claro que o Reino cresce e se realiza “em meio” à cizânia do inimigo. A esse respeito, é luminoso ler com atenção as histórias “reais” dos santos. Não me refiro exatamente a alguns contos idealizados ou romantizados (por mais belos e até espiritualmente enriquecedores que esses sejam), mas àquelas biografias ou autobiografias que chegam a revelar até mesmo as “fraquezas dos santos”, alguns de seus defeitos, de suas inconsistências ou imaturidades, “pontos fracos” que foram sendo misericordiosamente “revestidos de Espírito Santo”. Agostinho, Francisco de Assis, Teresa d’Ávila, Teresa de Lisieux, tantos santos expõem os limites do próprio coração, revelando a nós o quanto Deus os salvou dia após dia! Os santos são as mais autênticas testemunhas da Obra Nova do Espírito, que misteriosamente “trabalha” na humanidade, fazendo da imperfeição a matéria-prima da santidade

Um compositor e poeta canadense, Leonard Cohen, compôs uma bela canção na qual afirma que em tudo há uma falha, uma rachadura, mas é exatamente por esse “desacerto”, por essa imperfeição, por essa “parte rachada” que entra a luz, que passa a luz (“There is a crack in everything, that’s how the light gets in”).  O “caminho de perfeição” da humanidade é esculpido pelo Espírito no “mármore” da imperfeição

Certa vez, Santa Teresa d’Ávila fez notar ao seu amigo e companheiro de missão, São João da Cruz, que não estavam prontos nem perfeitos Pedro, João, Mateus, Maria Madalena, Paulo, quando o Senhor os fitou e os chamou. A grande santa espanhola tinha a profunda convicção de que a Misericórdia imensa de Deus “une os distantes”, supera o pecado com o Amor: “Ó Laço que assim juntais duas coisas tão desiguais, dois seres tão diferentes… juntais aquela que não ter ser (a criatura pobre, pecadora) Àquele que é o Ser por essência (o próprio Deus)… Sem ter que amar, amais; E nos ergueis da indigência, engrandeceis o nosso nada”. 

É próprio do agir divino “saber gerar o bem” dentro do contexto da fraqueza e da lentidão humanas. A propósito, são inesquecíveis as primeiras palavras de Bento XVI quando foi eleito Papa em 2005: “Consola-me saber que o Senhor sabe trabalhar e agir também com instrumentos insuficientes”.

A segunda tentação é evidenciada – e contrastada – pela parábola do grão de mostarda. Somos constantemente tentados à grandeza e à visibilidade, a trabalhar excessivamente sobre nossa própria imagem, cultivando uma ilusão de magnificência, desejando atrair atenção sobre nós. Essa tendência a promover um “culto à própria imagem”, revela, na verdade, um “raquitismo” espiritual, uma miséria e tristeza da alma.

A terceira parábola, que fala do fermento, adverte-nos acerca da tentação de nos “fazermos notar”, de querermos nos destacar nas ações que praticamos, dando muita importância ao que construímos ou fazemos (que a um certo ponto não mais fazemos movidos por legítimo e sincero amor a Deus e aos outros, mas apenas por um desordenado amor a nós mesmos, por egoísmo e vanglória). O Reino de Deus, porém, cresce como “fermento na massa”, é marcado pela discrição, pela humildade, pelo silêncio, pela sinceridade do amar. 

Durante a Última Ceia, diante do “joio” da traição de Judas, traição “não querida”, não buscada, um mal que “brotou” em meio ao grande bem da sua eleição como discípulo e apóstolo, Jesus dá uma humilde e potente resposta ao mal. Ele não elimina Judas, mas escolhe a Vontade do Pai, abraça a sua missão, entra na sua Paixão, passa pela Cruz, “entra no mal” da traição e da condenação… e lá, dentro do mal, dentro da nossa morte, oferece a Judas, ao homem pecador, a todos nós, um bem infinitamente maior. O Cordeiro de Deus tira o pecado do mundo ao ser elevado “do meio” e “no meio” do pecado do mundo com Seu amor Crucificado, Amor “mais alto que os céus”.

Jesus não usa a espada dos poderosos nem palavras de condenação. Ele pronuncia a Palavra da Cruz, de um Amor eloquente que se ergue vitorioso sobre o mal, oferecendo-se como Caminho, como Verdade, como Vida Eterna. (Cf. Jo 14,6)

O Pão do Céu, exaltado e glorioso, glorificado pelo Pai, dourado como as espigas do trigo, é Ele mesmo a “oferta total” que reluz no meio do campo intoxicado do nosso mundo pecaminoso. Enquanto ainda não conseguimos dar um “não” radical ao pecado, Cristo dá, por nós, o “sim” radical ao Amor na Cruz. Na suspensão do Amor, na elevação da Cruz, Cristo faz penetrar na carne humana um amor divino. É assim que do campo da nossa vida é extirpado o veneno do mal. Ele nos vê “em caminho”, “a caminho” – na via crucis da história – com uma liberdade ferida, ainda não plena, lutando para abraçar o bem e renunciar ao mal. Tendo sido picados pela serpente e intoxicados pela sua peçonha, olhamos para a grande “serpente de bronze”, para a Árvore da Cruz, da qual pende o Fruto da Vida, da cura, da paz, remédio de imortalidade. 

O verdadeiro caminho do amor

Todo nosso desejo “idealista” de eliminar o mal “por nós mesmos” a fim de criar um campo “todo puro” tem se demonstrado infecundo, até mesmo irrealizável. Não é esse o caminho do Amor. “Não há, fora de vós, Senhor, um Deus que se ocupa de tudo”. (Sab 12,13) A eliminação do mal não é obra nossa, é obra de Deus, que envia o Seu Filho, Aquele que é “o Ressuscitado que passou pela Cruz”. É preciso acolher o modo divino de amar, do Cristo Ferido e Glorioso, cujo esplendor brota de dentro das chagas, não sem elas! 

Esse é o Amor Divino, que assume o hoje do homem “assim como é”, não para deixá-lo como é, mas para transfigurá-lo, para operar nele uma nova criação. “O Espírito vem em ajuda à nossa fraqueza; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele que examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito; e é ele que segundo Deus intercede pelos santos.” (Rm 8,26-27) Se acolhermos a Sua ação, Ele fará Sua obra de santificação em nós; não exatamente como pensamos, pois não sabemos o que realmente nos convém, mas de uma forma infinitamente mais elevada, “segundo seus desígnios”. 

Pe. Cristiano Pinheiro, Comunidade Católica Shalom


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