Formação

Paixão de Cristo, paixão do povo. Ressurreição de Cristo, ressurr

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Desde a infância aprendi a conhecer e a meditar a paixão de Cristo participando da Via Sacra, durante a quaresma. A descrição dos sofrimentos de Jesus, de estação em estação, iam acendendo no meu coração a compaixão por tanta dor e a conseguinte tomada de consciência da gravidade do pecado, causa de todos esses sofrimentos.

A experiência brasileira me ajudou a abrir mais o horizonte e a compreensão do mistério da iniquidade, conjugando junto, fé e vida. Ou seja, aprendendo a ler em cada sofrimento, em cada fadiga, em cada dor da humanidade uma participação ao sofrimento de Cristo. Na cruz, com certeza, Ele levou todo o pecado do mundo, origem de todo sofrimento. Levou, por isso, todas as dores que cada homem experimenta dia após dia. A paixão está revelando-se na historia em maneira real, embora misteriosa, no sofrimento cotidiano de cada pessoa.

Durante a quaresma deste ano, procurei então observar com estes olhos, todos os sofrimentos ao meu redor para descobrir nestes, a misteriosa presença da paixão de Cristo que continua ainda hoje na vida, nos pecados, nas dificuldades e nas dores do povo no meio do qual eu vivo.

Tiro então do meu diário algumas lembranças vividas nestes primeiros meses de vida em Moçambique.

Como não vislumbrar os sofrimentos de Cristo no caminho do Calvário, na fadiga suportada pelo povo em percorrer a pé, longos trechos de estrada poeirenta ou cheia de barro?

Viajando de carro com um dos meus companheiros, em visita a uma comunidade, um dia demos carona a duas mulheres que carregavam na cabeça um cesto pesado. Quando chegamos à nossa destinação (não sei se era também a destinação delas ou se deviam continuar mais) tínhamos percorrido 32 km! Esta penitencia por caminhar quilômetros e quilômetros carregando sobre a cabeça fardos pesados e nas costas uma criança (e talvez mais uma na barriga) é a dura cotidianidade de muitas mulheres, que depois de ter cultivada a horta vão ao mercado para vender seus produtos e ganhar um trocadinho para alimentar seus filhos.

As mulheres ainda devem enfrentar uma Via Sacra, para ir buscar água num poço ou no riacho caminhando vários quilômetros, carregando na cabeça um tanque de água de 20/30 litros!

Não menos duro, è viajar por aqueles que – como os bem-aventurados missionários – não têm um meio de transporte próprio. Fico sempre impressionado vendo as carretas que transportam as pessoas que vão até Chimoio (a capital da nossa província, primeira verdadeira cidade distante 360 km). Muitas vezes, as pessoas estão apertadas em maneira inacreditável e tem viajar sem proteção nenhuma contra o sol, o vento e a chuva por mais de 8/9 horas. O diácono Vito me disse que um trecho de estrada é tão inclinado que às vezes os passageiros devem descer da camioneta para que esta possam avançar e devem andar a pé.

Como não reconhecer a paixão de Cristo nos sofrimentos causados ainda hoje pela prática da feitiçaria? As pessoas afirmam que há curandeiros que praticam homicídios para utilizar os órgãos sexuais das vitimas para resolver problemas sexuais dos fregueses. Há pouco tempo foram mortos em casa, um homem e sua esposa (e ferida uma criançinha) Pela boca do povo, se espalhou a notícia que o acontecimento estivesse ligado a esta pratica aberrante. O irmão da esposa, tendo necessidade de dinheiro para concertar o carro depois de um acidente, teria cometido este delito por encomenda de um curandeiro, que o teria pagado bem, por aquele serviço. A gravidade do fato me obriga a usar o condicional tão, é revoltante e muitos superficiais são às notícias que nós temos. Mas a suspeita que possa ser verdadeiro vem do fato que no ano passado um curandeiro teria sido preso com a acusação de ter matado varias pessoas por este mesmo motivo. Quantos destes fatos sejam verdadeiros, não tenho provas, mas igualmente nasce em nós à condenação destas práticas e desta mentalidade de morte denunciadas, até pelos bispos durante o último Sínodo para África no mês de outubro passado.

Como não reconhecer que a condenação de Jesus inocente, continua hoje na prática do infanticídio com o qual se elimina os filhos não desejados?

A parteira que trabalha no posto de saúde da missão, um dia me contou como algumas mães, quando por algum motivo não querem um filho, não veem na maternidade para dar a luz, mas dão à luz em casa, sozinha e depois eliminam o filho. É uma notícia que me fez arrepiar, embora na verdade, o fato não seja mais grave que aqueles semelhantes que acontecem em outras partes do mundo em clínicas modernas pagas pelo dinheiro dos cidadãos!

Às vezes a morte do inocente, acontece simplesmente por a falta de estruturas para a saúde que em outros lugares são oferecidas a todos. E na dor de muitas mães que perdem seus filhos, não posso deixar de rever Maria que acompanha o Filho ao Calvário e que fica de pé junto à cruz assistindo à morte dele. E da cruz, recebe nos seus braços, o corpo morto do Filho. Aqui, não posso não lembrar a experiência vivida pelo diácono Vito um mês atrás, quando com o carro, levou para a casa uma mãe que não podia voltar a pés (mais de 10 quilômetros de trilha) levando nos braços os dois gêmeos nascidos durante a noite anterior: um vivo e o outro para ser sepultado.

Ou a preocupação e a dor que ele tinha experimentado poucos dias antes, quando de noite, tinha sido chamado para levar no hospital de Espungabera (distante 17 km – único hospital, com a presença de dois médicos, atendendo toda a vastíssima área do nosso distrito) um nenê recém-nascido que se encontrava em perigo de vida.

Ou ainda, a dor que todos nós sentimos num outro dia, quando a única ambulância do hospital não estava disponível para vir até a missão e nós não tivemos a coragem, por causa da chuva, de enfrentar uma viagem perigosa até Espungabera para levar ao hospital uma criancinha de dois anos, doente grave de malaria cerebral, tendo de assistir impotentes, poucas horas depois, à sua morte.

A morte está em casa e parece estar sempre pronta atrás da porta. É a dor de Maria que se renova continuamente.

A estação que nos apresenta o encontro de Jesus com as mulheres de Jerusalém, sempre me tocou em maneira especial. Jesus com feridas em todo o corpo por causa da flagelação e da coroação de espinhos, cansado pelo peso da cruz, sem forças por tantos sofrimentos, consegue dirigir palavras de compaixão e de conforto àquelas mulheres que o acompanham chorando. Esta cena me leva a refletir sobre todos os sofrimentos que as mulheres africanas devem carregar ainda hoje, como consequências da situação de sua submissão ao homem. Em todos os lugares, se encontram mulheres com uma criança nas costas que trabalham ininterruptamente. Cabe a elas, em efeito, tomar conta da casa, da família, dos filhos, buscarem água, cultivar os campos e vender depois os produtos no mercado. Desde a manhã muito cedo até o por do sol, está sempre em movimento. Desde criança, são educadas para assumir este lugar: é muito comum ver meninas muito pequenas carregar nas costas um irmãozinho, para se acostumar aos muitos filhos que irá a carregar ao longo de toda sua vida. A escolha do marido às vezes é feita pelo pai que pode prometê-la como esposa, a filha, quando ainda é muito nova. O futuro esposo deve pagar o “lobolo”. Um valor que o pai estabelece. Em muitas comunidades – me disseram – que o pai dá a filha, somente a um jovem que vai a trabalhar na África do Sul porque assim, ele poderá pagar um preço mais alto. Ouvi falar também de 60.000 Meticais, (+ ou – 5.000,00 R$) que correspondem a uns 30 salários de um professor. O problema maior está no fato que o jovem que vai à África do Sul, volta sim, com o dinheiro necessário, mas muitas vezes, trazendo também o vírus da AIDS. Além disso, a moça prometida como esposa não pode mais sair de casa. Por exemplo, para ir a estudar. Um dia eu e o diácono Vito chamamos a atenção de um coordenador de comunidade porque a filha de dezoito anos interrompeu os estudos na sexta serie porque era prometida como esposa. Embora a escola se encontrasse a poucas centenas de metros da casa dela. Existe ainda, a prática da poligamia, que embora não seja reconhecida pela lei de fato é muito presente. Embora pareça ser uma prática bem aceita pelas mulheres (as varias mulheres convivem serenamente em casas vizinhas, se ajudam…) não é, sem duvida este o ideal de família, comunidade de vida e de amor de um homem e uma mulher, com iguais direitos e deveres.

Todos estes sofrimentos e humilhações fruto desta mentalidade machista foram acolhidos e carregados por Cristo sobre a cruz.

Em fim, não posso deixar de vislumbrar a paixão de Cristo nas duras condições gerais de vida deste povo. A mesma natureza parece às vezes pouco benévola com este povo. Toda a subsistência familiar depende da terra. Produto fundamental e quase exclusivo é o milho, que se semeia nos meses de novembro e dezembro quando inicia a chuva e é recolhido nos meses de abril-maio. Quando, porém a chuva atrasa o risco é de perder tudo. Este ano, por exemplo, depois de uma chuva em novembro e uma no inicio de dezembro, não choveu mais até a primeira semana de fevereiro. Muito milho recém-nascido não conseguiu crescer e parte daquilo que foi semeado foi perdido. E como consequência, se espera um ano com uma colheita reduzida e por isso a assombração da fome já preocupa. Neste período em que o milho está amadurecendo, a situação em algumas partes do distrito, se torna ainda mais dramática porque o milho deve ser vigiado durante a noite para impedir que as invasões dos elefantes e dos porcos do mato, as destruam.

Na verdade os sofrimentos parecem não acabar mais.

Esta panorâmica que estende um véu escuro sobre a vida e as condições deste povo, poderia levar ao pessimismo, ao desespero, ao fatalismo. Mas neste momento vem em meu auxilio a fé que me lembra que nós somos seguidores de um Deus, que sim, foi morto, mas que depois venceu a morte com sua ressurreição mostrou que o mal foi vencido pelo bem, pelo amor. E a ressurreição não é um acontecimento distante nos séculos, mas uma dinâmica presente na historia e que proclama que se a paixão de Cristo continua nos sofrimentos do mundo, a sua ressurreição também se prolonga na vida da humanidade manifestando a superioridade do bem, do amor sobre as trevas da dor e da morte.

Esta visão de fé me leva então a contemplar quanto bem, quanto amor, – participação do amor que Cristo plantou no mundo – existe ao meu redor. O mal faz barulho, é amplificado enquanto o bem muitas vezes é como um vento leve da madrugada ou como o perfume delicado de uma flor que não percebemos: ele tem em si mesmo a força da vida de uma semente que embora pequena, produzirá uma grande árvore. Muitas vezes, se estamos distraídos, não sabemos colher tudo isso, mas se ficarmos atentos para observar com os olhos de Deus descobriremos ao nosso redor, um mundo maravilhosos em continuo desenvolvimento rumo a plenitude de vida que o Senhor nos prometeu. O céu novo e a terra nova não estão longe, no futuro, mas já estão presentes no bem que cresce continuamente porque carrega consigo a força da vida da ressurreição.

Com estes sentimentos então procurei ficar atento aos tantos sinais de bem e de ressurreição ao meu redor e desejo partilha-los contigo, meu/minha amigo/a..

Conheci um grupo de famílias que formam uma “pequena comunidade” (grupo de base, circulo bíblico) que semanalmente realiza um encontro para alimentar a fé com orações e reflexões. “A fé sem as obras é morta” nos diz o apostolo Tiago. Assim, este grupo de famílias pensou de tomar conta das consequências do vírus HIV, que aqui está fazendo muitas vitimas e deixando muitas crianças órfãs. Pois bem, as famílias desta pequena comunidade se organizaram de forma, para acolher em suas casas, uma dúzia de órfãos, dando a eles o sustento necessário através de um projeto realizado juntos de criação de alguns porcos e o cultivo de um terreno. A doença tira a vida, mas esta, ressuscita no amor, na solidariedade, na partilha para que outros tenham vida e vida em abundancia.

Como não ficar admirados pelo amor e pela fé de quem faz horas de caminho a pés para poder participar da eucaristia, carregando também na cabeça, desde a própria casa – como vi fazer a poucas semanas – a mesinha que deve servir como altar? Ao amor de Cristo morto e ressuscitado que se renova sobre o altar acrescentam-se o sacrifício e o amor destas pessoas.

O clima pascal pode-se experimentar na acolhida sempre muito atenciosa que é oferecida aos hospedes que chegam numa casa. Há poucos dias, com o diácono Vito, fomos visitar a família de um catequista. Depois de terem sido acolhidos com muita alegria, com a oferta de um copo de água fria, percebemos alguns sinais que o casal trocou entre si e tendo-os entendidos conseguimos em tempo parar a senhora que já estava para matar um frango para oferecer-nos um almoço com frango e angu.

Como não vislumbrar um reflexo da ressurreição no sorriso sempre presente nos rostos desta gente, na alegria explosiva de seus cantos, na animação feita de danças e som de atabaques durante as celebrações e as festas? A alegria pela vida fala mais alto dos sinais de sofrimento e de morte.

Mas é, sobretudo, em re-percorrer a minha experiência missionária destes meses que vejo sementes de ressurreição que me enchem de alegria e de esperanças.

Os preparativos pela partida para esta missão e os contatos mantidos neste primeiro período, me permitiram de conhecer tantas pessoas, tantos grupos, tantas iniciativas que me confirmaram que a ressurreição de Cristo ainda está se realizando hoje.

Como entender em maneira diferente, a generosidade de tantas pessoas, muitas vezes anônimas, que do seu salário ou da mísera aposentadoria sabem tirar algo para colaborar com a obra de evangelização e de promoção humana dos missionários, muitas vezes até desconhecidos? É dinheiro que nos queima as mãos porque exige responsabilidade e sobriedade em seu uso, pois é dinheiro que carrega consigo o perfume e o valor do amor!

Como não admirar a generosidade de quem chegando à idade da aposentadoria sente ainda de ter forças e entusiasmo para dar um pouco de seu tempo e de sua preparação profissional ao serviço da obra missionária? Assim conheci quem ocupa seu tempo trabalhando na garagem da casa preparando instrumentos úteis aos missionários; ou quem voltou a estudar para ajudar o desenvolvimento da agricultura no sul do mundo; ou quem coloca a disposição sua competência profissional para realizar projetos de desenvolvimento sustentável; ou quem enfrenta – pagando com o seu bolso – viagens e dificuldades para oferecer o seu tempo e sua competência em realizar alguns trabalhos especializados úteis aos missionários; ou quem pessoalmente ou com a ajuda de outros amigos anima as mais diversas iniciativas para assim sensibilizar à missão e recolher fundos para garantir a tantas crianças de outros países, água, alimentos, escola, roupa ou outras coisas através de adoções a distancia, bolsas de estudo ou ainda outras ajudas..

Como, sobretudo não admirar a generosidade e a fé de tantas pessoas que todos os dias rezam e oferecem seus sofrimentos físicos e morais a fim de que, unidos à oferta de Cristo sobre o altar, se tornem oferta agradável ao Pai celestial e fonte de graça, de apoio, de luz por aqueles, que obedientes à palavra de Jesus, estão percorrendo o mundo anunciando que Deus é Pai de todos os homens e que não faz distinção de raças ou de língua, mas quer que todos formem a sua família e se amem como irmãos criando um mundo de justiça e de paz? Quantas destas pessoas conheci!

Quantas pessoas comprometidas em fazer o bem através do exercício honesto e competente da própria profissão, ou no dom do próprio tempo em iniciativas de voluntariado e de serviço gratuito aos outros. Os jornais não falam disso, mas é suficiente ter olhos bem abertos para enxergar quanta gratuidade, quanto bem se realiza continuamente ao nosso redor.

Talvez entre tantas pessoas comprometidas em fazer o bem, também você se reconheça. Se for assim, lhe agradeço porque você me ajuda a acreditar na ressurreição. Se por acaso você não entrou nesta lista não se queixe, provavelmente eu não consegui ainda descobrir todos os reflexos do bem ao meu redor… e depois fica sempre também a possibilidade para todos de engajar-se nesta aventura. É por isso que a Igreja, a cada ano celebra, ou seja, traz presente a Páscoa de Cristo, e nos oferece assim a possibilidade de recomeça de novo.

Todo este bem não se pode colhê-lo no barulho do mundo ou no meio das luzes artificiais das nossas cidades. Precisa que haja silencio, contemplação da natureza, escuta atenciosa das pessoas e observação de seus sentimentos. É necessária a luz da fé que transfigura a realidade e nos permite enxergar no meio de tanto mal e tanta negatividade, que os meios de comunicação nos apresenta continuamente, o tanto bem que está presente e que está mudando o mundo. Um provérbio diz: “Faz mais barulho uma árvore que cai do que uma floresta que cresce”. A fé na ressurreição de Cristo me dá a certeza que no mundo, está presente este fermento que o vai transformando e me dá a graça de vislumbrar um mundo diferente que está nascendo. É o céu novo e a terra nova que o Senhor nos prometeu. Esta constatação me enche o coração de alegria, de paz, e de esperança. Esta é a Páscoa de Cristo sempre presente e operante na historia dos homens, esta é a nossa Páscoa, é a Páscoa que lhe desejo de viver cada dia depois de tê-la celebrada na liturgia mais uma vez.

Paixão de Cristo que continua na paixão da gente, mas também ressurreição de Cristo presente na vida e no amor de muitas pessoas!

Feliz Páscoa de ressurreição a você também!

Padre Jorge Paoletto, PSSC
Missão de São Leonardo Mussorize, Moçambique


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