A maestria educativa do grande apóstolo Paulo, dirigindo-se aos Gálatas, 5,1-13, focaliza a razão mais profunda do dom da vida de cada pessoa. Ele diz: “É para a liberdade que Cristo nos libertou. Sim, irmãos, fostes chamados para a liberdade”. O entendimento da vivência da liberdade é determinante nos rumos da sociedade, na configuração das relações institucionais e entre as pessoas. Não menos determinante o é na configuração da dinâmica de uma cultura. Muitos entendimentos a respeito da liberdade podem levar culturas a produzir hábitos pouco saudáveis para o andamento da vida de um povo. Não é raro ouvir dizer, por exemplo, até de maneira jocosa insinuando vantagens, que uma determinada cultura cultiva no coração do seu povo o hábito de não mentir, porém de nunca dizer a verdade toda. É um entendimento, entre tantos outros, que proporciona a vivência da liberdade como possibilidade de enganar os outros, comprometendo a inteireza da verdade, em função de interesses próprios, não raramente mesquinhos.
Ora, a liberdade é um dom inerente ao dom da vida recebida. Paulo apóstolo, conhecedor dos acontecimentos e das reações existentes nas suas comunidades, sublinha que o entendimento da verdadeira liberdade e sua vivência tem sua centralidade em Cristo. Na verdade, é um risco entender a liberdade apenas segundo os parâmetros dos próprios interesses e razões. O entendimento da liberdade fica ainda mais empobrecido, e manipulável à sua vivência, quando esta é entendida simplesmente como mecanismo político para se alcançar interesses comprometidos. É a centralidade de Cristo, na vivência da liberdade que estabelece como imperativo categórico o amor ao próximo. A liberdade como dom a cada pessoa, entende o Mestre Paulo, não pode desvincular-se da referência ao outro. Por isso, Paulo, sem meias palavras, refere-se ao que acontece no seio da comunidade, como conseqüência do modo de se viver o dom da liberdade, quando se abandona o princípio determinante da vida cristã, ‘amarás o teu próximo como a ti mesmo’: “Se vos mordeis e vos devorais uns aos outros, cuidado para não serdes consumidos uns pelos outros”. Se vos mordeis é uma expressão forte e remete aos ódios caninos que sem referência alguma à integridade do outro, tudo destroem.
Na verdade, usam a destruição do outro como mecanismo ilusório para a afirmação de interesses, para perpetuação de apegos e para a conservação de um entendimento falso a respeito de si e dos processos históricos e sociais. Se vos mordeis não é uma referência a possíveis briguinhas no interno das comunidades. É uma referência a uma verdadeira guerra travada entre grupos e pessoas. Uma guerra alimentada pela mágoa que se desabrocha em ódio. Esta guerra compõe o cenário terrível e desolador de muitas outras guerras que estão sendo travadas no coração da sociedade, dizimando gente, negando a vida e emperrando o progresso das comunidades. Há um cenário desolador de guerra nas aparências de uma paz comprometida na vida da sociedade contemporânea. Os números dos mortos nas estradas, exemplo preocupante, são números de guerra. Só numa guerra as vidas são ceifadas tão facilmente e em número tão grande.
É assustador o número dos que morrem na guerra estabelecida pelo tráfico de drogas, o crime organizado, bem como pela violência nas ruas, abatendo vidas. Tudo somado deveria produzir um alarme constante na sociedade, providências mais urgentes e contundentes dos responsáveis primeiros pelas soluções. Assim, nas contas deste rosário de guerras, há também uma guerra fria, horrorosa e asquerosa que se produz nesta dinâmica que o apóstolo Paulo insinua na recomendação que faz ao dizer ‘se vos mordeis e vos devorais uns aos outros’. Esta terrível dinâmica destrói famílias, amizades, grupos, projetos. Uma destruição que atinge também muitas instituições, mesmo as religiosas e aquelas que têm propósitos e ações altruístas. As raízes provocadoras deste tipo de destruição são facilmente detectáveis, embora suas conseqüências sejam nefastas. As raízes desta guerra estão na perda e completa ignorância do princípio fundamental do amor ao próximo.
O obscurecimento deste princípio ocorre em razão de apegos ao poder, invejas e ciúmes, incapacidade de trabalhar a própria estima, a insaciabilidade no que diz respeito às posses, a ilusória e desastrosa egolatria de muitos. São famílias, grupos, instituições em verdadeiro pé de guerra. Um tipo de guerra que no dizer de Paulo, ‘se vos mordeis e vos devorais’, é referência à perda da verdadeira dignidade da pessoa. Há um convite para que cada um, no horizonte de sua dignidade, recupere sua nobreza própria, faça valer o princípio insubstituível do amor ao próximo como a si mesmo, abandonando a maledicência, escolhendo a misericórdia. Esta guerra tem solução. Sua solução está no coração de cada pessoa, como coração da paz. Uma dignidade que vale.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo