Ao passar diante de certas igrejas cristãs, tem sido comum encontrar cartazes que fazem uma proposta no mínimo tentadora: “Pare de sofrer!”. Também é possível perceber esse tipo de apelo em pequenos cartazes fixados em postes de luz com dizeres semelhantes, em geral, propaganda de serviços esotéricos.
A primeira constatação, bastante óbvia, mas nem por isso irrelevante, é a experiência do sofrimento que persegue o ser humano, tornando essa temática sempre atual. Na realidade, a dor é inerente à existência humana, o que implica considerar que é impossível à pessoa não viver a experiência do sofrimento, qualquer que seja a sua intensidade e em diferentes momentos de sua vida. Ao longo da história da humanidade, ao contrário do que talvez façam crer certas concepções, foi e é justamente a perspectiva cristã que de fato assumiu a dor humana e lhe conferiu um sentido. Mais que isso: ao transcender o sofrimento, o cristianismo conferiu um sentido para a própria razão de ser da pessoa humana.
Aos 62 anos, Jorge Zogheib foi internado às pressas em razão do agravamento de seu estado de saúde, comprometido há alguns anos pelo Mal de Parkinson. Por isso, sua experiência com a dor já tem algum tempo. Sobre ela,seu irmão, Saad, narra: “Quando ficou acertado o diagnóstico de Parkinson, ele sofreu, pois tinha plena consciência do que aquilo implicava: um longo caminho de crescentes limitações”. Mas a reação de Jorge surpreende a todos ao seu redor. O médico queria saber o seu segredo, porque jamais se deixou vencer pela doença, nem pela depressão, nem pela falta de coragem, mas por uma grande vontade de viver e de dar a vida, conta Saad.
A julgar pelo testemunho de todos que convivem com Jorge, sua reação diante da doença e da dor é incomum. Assim como surpreende a impressão de que, na dor, Jorge torna-se grande, conforme conta o seu irmão Saad: Quem vem ao seu encontro prova algo inefável na sua disposição que, mesmo realista, deixa passar o perfume da esperança. A sua sensibilidade conheceu uma mais aguda e apurada expressão e cada encontro deixa nas pessoas o desejo de continuar com ele.
Com efeito, a postura de Jorge indica a superação de um estado que, naturalmente, leva o ser humano a uma atitude egocêntrica. Para especialistas, frente a uma situação de grave sofrimento, a pessoa volta a considerar-se o centro do mundo, como se só ela e sua dor existissem, podendo assim refugiar-se em posições irreais, negando a realidade. Por exemplo, fugir da situação por meio de uma atividade desenfreada ou mil outras formas de compensação e alienação.
É também consenso entre os estudiosos que a cultura atual, ao enfatizar a saúde, leva o ser humano a excluir tudo o que possa lembrar o sofrimento, o limite, a morte. Eles se referem a uma série de modelos de saúde que enfatizam o bem-estar por estarem fundamentados numa visão consumista, materialista e individualista, como o culto ao corpo e o chamado, salutismo, com sua consequente medicalização excessiva.
Nesses casos, a saúde é confundida com a felicidade e com aquilo que dá sentido à existência, e aí o sofrimento e a doença não têm mais lugar. Segundo o médico e psiquiatra austríaco Viktor Frankl, criador da logoterapia, 95% dos males (do mundo) provêm do fato de os indivíduos estarem por demais concentrados em si mesmos.
Os argumentos dos especialistas parecem conduzir à conclusão de que a falta de sentido da vida diante da dor e da própria morte corresponde a uma falta de sentido para uma vida saudável. Por esse motivo, o filósofo e psiquiatra alemão Karl Jaspers chegou a afirmar que a consciência da solidão e da inutilidade gerou uma infelicidade tão radical a ponto de o homem moderno se julgar doente quando se sente infeliz.
Nessa perspectiva, muitos especialistas defendem que o ser humano é sadio, justamente, quando encontra a sua verdadeira identidade, quando encontra um objetivo, um sentido à própria vida, sendo capaz de, nas diversas situações, utilizar todas as faculdades e energias que possui para realizar esse objetivo.
Busca de um sentido
De acordo com o psicólogo e professor doutor André Faro Santos, de Aracaju (SE), “a dor e o sofrimento podem ser entendidos como momentos que incitam à reavaliação dos próprios valores e atitudes perante a vida, já que cada experiência dessas é única e revestida de significados particulares à vivência da dificuldade”. Inspirado nas concepções de Viktor Frankl, o professor afirma ainda que, diante do sofrimento, o indivíduo descobre que nada está ausente de sentido e isso o motiva a encontrar alguma razão nesse tipo de experiência e a transformá-la em conquista, em realização de valores, em criatividade.
O psicólogo André Faro ressalta ainda o valor da espiritualidade no enfrentamento da dor. “Pelo fato de propor o significado da existência para a transcendência, a religião revela uma realidade-fim ou um sentido maior para o existir, para o qual podem convergir os demais sentidos do indivíduo”.
O professor sergipano respalda essa sua afirmação com os resultados de inúmeras pesquisas que demonstram os efeitos benéficos da religiosidade sobre a saúde física e mental, “que passam a ser incorporados ao autocuidado, à integração social e à vivência em grupo, além da possibilidade de encontrar a felicidade em meio às dificuldades que possam surgir”.
Energia para amar
Possivelmente, uma das primeiras constatações a que se chega diante da dor é a da limitação humana. Parece óbvio. Mas não é. Num contexto cultural em que o ser humano é levado a fechar-se e, ainda que de forma legítima, a buscar o sentido definitivo para a sua existência apenas em si mesmo, ele tem a oportunidade de reconhecer que essa tarefa exige algo que supera as próprias capacidades. Sobre esse aspecto, a mais genuína experiência cristã vai além de abstrações e aponta para uma dinâmica bastante concreta: a experiência da relação. Conta Saad a respeito da experiência do seu irmão Jorge: “mesmo debilitado, quer sempre servir e dispor-se a ouvir. Quem o ouve, sai consolado por tanta sabedoria, na simplicidade”.
A mesma experiência fez a jovem italiana Chiara Luce Badano, beatificada pela Igreja Católica. Aos 18 anos, vítima de um câncer nos ossos, Chiara fez da sua dor um “trampolim” para lançar a todos sua descoberta de um Deus que supera todo e qualquer sofrimento. Mesmo sem ter protagonizado feitos grandiosos, ela se tornou um modelo de vida para muitas pessoas, sobretudo jovens. Ao receber visitas em sua casa, imóvel na cama, era ela quem consolava aqueles que deveriam consolá-la. Sua paz desconcertante foi sustentada pela fé capaz de transformar a realidade ao seu redor.
Nesse sentido, o testemunho dela é perturbador à medida que,na sua limitação, revela-se dotada de uma capacidade enorme de amar e de viver pelos demais. O segredo de Chiara Luce, assim como o de Jorge Zogheib, está em unir o próprio sofrimento ao de Jesus na cruz: Jesus crucificado e abandonado, como lhes ensinou Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares.
Paradoxalmente, a experiência da perda, típica da dor e do sofrimento, pode levar à conquista da liberdade. Carl Jung, considerado o estudioso que procurou analisar psicologicamente o “perder” como dom, como sacrifício de si e como consequente liberdade de si mesmo no sentido de a pessoa “ser” capaz de “por” a própria vida a serviço dos outros, tendo a missa como objeto de interpretação, afirmou: “O fato de sacrificar-se a si mesmo demonstra domínio de si mesmo (de ser ele mesmo)”.
Para Jung, fundador da chamada Psicologia Analítica, “com o sacrifício, demonstramos estar de posse de nós mesmos, pois sacrificar-se não é deixar-se apanhar, mas é uma consciente e intencional entrega, que demonstra o quanto podemos dispor de nós mesmos, isto é, do nosso eu”.
Essa relação entre a perda e a conquista da liberdade interior é enfatizada pela psicanalista Françoise Dolto, que focaliza na pessoa de Jesus a experiência da liberdade plena, justamente porque realizou a doação total de si na sua morte de cruz. “Jesus realizou” e pode realizar em qualquer homem que o leve a sério “um processo de libertação de complexos e de tabus para alcançar a verdadeira liberdade: liberdade dos condicionamentos individuais e sociais, liberdade das fixações infantis que impedem o amadurecimento e a superação da tranquila normalidade para arriscar a própria vida na busca da própria estrada, tendo em vista a autorrealização plena”.
Valor redentivo
Segundo a teologia cristã, o próprio Jesus “ao atualizar o significado da doença até então existente na religião judaica ” buscou superar o sentido do sofrimento presente no Antigo Testamento. O sacerdote e teólogo Pasquale Foresi afirma que, entre os significados para a dor apresentados nas Escrituras, o salvífico é o mais profundo, superando o punitivo-pedagógico (que vê a doença como uma punição do pecado) e o ascético (que considera a doença uma purificação dos pecados cometidos).
Foresi salienta que, especificamente no Novo Testamento, “a palavra corpo significa geralmente todo o homem: não há na concepção hebraica, que é a raiz do pensamento cristão, a clara separação entre a alma e o corpo,que é típica, ao invés, da filosofia clássica grega”. Ele quer dizer que a salvação protagonizada por Jesus é para o homem “inteiro”, corpo e alma.
A concepção cristã de salvação corresponde à ideia de redenção, ou seja, de realização plena, para além da dor e da morte, do ser humano. Segundo Foresi, com a Ressurreição de Cristo, a doença e a dor se tornam instrumentos de vida, ressurreição e redenção do ser humano, porque,mediante a cruz, Jesus revela a plenitude do amor-doação, aquilo que,verdadeiramente, redime o homem dos seus condicionamentos e fraquezas. Nisso consiste o testemunho essencial dos santos .
Para tanto, “Cristo aproximou-se do sofrimento humano, sobretudo pelo fato de ter ele próprio assumido sobre si este sofrimento”, escreveu São João Paulo II na carta apostólica Salvifici doloris. “É por meio deste seu sofrimento que ele tem de fazer com que ‘o homem não pereça, mas tenha avida eterna’ “, conclui o papa. Ele chama atenção para o fato segundo o qual, ao assumir a nossa humanidade, Jesus não se furta nem mesmo do direito da dúvida diante da extrema dor, tão típica do ser humano que se confronta com a experiência do sofrimento. Na cruz, ao constatar que perdera tudo, inclusive a própria presença de Deus a quem chamava Pai, ele grita: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”
Desse modo, para a teologia cristã, o fiel é capaz de conviver e até superar o sofrimento, à medida que, como Jesus Crucificado e Abandonado, “carrega a própria cruz” (assume a dor e não foge dela) e, por amor, doa-se completamente ao outro. Afinal, foi, justamente, na cruz, onde e quando Cristo mais sofreu, que ele mais amou a humanidade.
A postura ativa diante do sofrimento, no cristianismo, implica a participação do ser humano à própria Paixão e Redenção de Cristo. É o que conclui Saad Zogheib a respeito da experiência de irmão Jorge: “O modo como ele está vivendo essas situações todas, passou a ser para mim uma fonte de edificação”.
Procurando estar sempre disponível, sem fazer pesar o seu sofrimento sobre os outros. Dessa forma, Jorge infunde muita paz ao seu redor. Sem muitas palavras ou explicações, como é o seu estilo, toma tudo como predileção de Deus por tê-lo escolhido para viver na própria carne, “aquilo que deveria completar à paixão de Cristo”. Uma experiência para a qual, segundo o próprio Jorge, “o amor e a presença constante dos irmãos é fundamental”.
É preciso que o sol se ponha
Por que alguns homens, sem conhecimento das ciências, inclusive ciências religiosas, tornaram-se santos tendo como único livro o Crucificado?
Porque não se limitaram a contemplá-lo ou a venerá-lo e a beijar-lhe as chagas, mas procuraram revivê-lo em si mesmos. E quem sofre e está na escuridão enxerga mais longe do que quem não sofre, exatamente como é necessário o sol se pôr para que se vejam as estrelas.
O sofrimento ensina aquilo que não se pode aprender de nenhuma outra maneira. Ele ocupa a mais alta cátedra. É mestre de sabedoria e quem possui a sabedoria é bem-aventurado (Cf. Pr 3,13). “Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados” (Mt 5,5), não só com o prêmio na outra vida, mas também com a contemplação de realidades celestes já na terra.
É preciso aproximar-se de quem sofre com aquela reverência, e até mais, com que outrora nos aproximávamos dos anciãos, quando deles esperávamos a sabedoria.