Formação

Para entender bem o dom e o mistério feminino

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Reflexões sobre a encíclica “Mulieris Dignitatem – A dignidade e a vocação da mulher”, de João Paulo II

mulherDentre o excepcional legado do magistério de João Paulo II, Mulieris Dignitatem mais do que uma surpreendente iniciativa trata-se de uma das mais ousadas manifestações de sua atuação como pontífice. Dirigir-se à mulher como um tema não apenas especifico, mas indispensável, foi verdadeiramente avançar na superação daquelas mentalidades geradas e respaldas por interpretações igualmente vazias sobre o dom e o mistério feminino. Deter-se nesse misterioso e sacro universo foi uma tarefa delicada devido ao frágil contexto histórico, mas indiscutivelmente necessária e, na maturidade apostólica de João Paulo II, um êxito incomparável.

Ao longo da história estendeu-se a equivocada expressão e a impressão de tudo relativo ao feminino ser imediatamente sinônimo de frágil e levantaram-se muitas tentativas de provar o contrario ou de corrigir essa “falha de natureza”. São dadas ao desgaste forças que poderiam e deveriam ser aplicadas para aprofundar o que se trata de um misterioso dom, não a ser especulado, mas a ser contemplado. Ao mesmo tempo insiste em nosso meio uma tendência a reduzir o mistério do feminino a aspectos meramente exteriores, quando este valioso dom implica, sobretudo, num mundo interior dotado de riquezas para uma missão bem específica. É necessário enfocar este mundo interior, contemplá-lo, invocá-lo para fora onde desdobrar-se plenamente não se traduz por uma liberação exacerbada, acatando elementos estranhos à sua natureza, mas exatamente em reservar-se para sua missão original de servir à humanidade com as riquezas que configuram o seu mistério pessoal.

Difundiu-se uma visão de inadequado ou defeituoso exatamente a respeito de questões essenciais sobre a missão o mistério pessoal da mulher. Muitos aspectos da sua realização pessoal são vistos como “algo a ser corrigido” e o que lhe é estranho, tem-se forçosamente atrelado quase que à sua natureza. Essa concepção deformada tem minado particularidades bem essenciais ao feminino, a saber, ser receptáculo e transparência de Deus e ainda doadora generosa da sua presença. É muito próprio do seu ser uma missão de presença uma vez que Deus disse “não é bom que o homem esteja só”(Gn1,18). A presença do feminino tem a missão de ocupar espaços com a presença de Deus de uma maneira que só ela sabe expressar porque quis Deus expressar-Se nela de maneira distinta e não menos excelente que no homem. Essa compreensão deveria dissipar a competição viciosa e desnecessária que muito tem nos impedido de amadurecer, servir e nos realizar na distinção dos nossos papéis. Este documento eclesial vem exatamente ao encontro dessa mentalidade não sadia sobre a origem e a valor de cada gênero, repondo o tecido da fundamentação bíblica especialmente sobre a criação e a missão da mulher.

João Paulo II alcança acertadamente esse ponto nevrálgico com a premissa de que o “aprofundamento dos fundamentos antropológicos e teológicos necessários para resolver os problemas relativos ao significado e à dignidade do ser mulher e do ser homem. Trata-se de compreender a razão e as conseqüências da decisão do Criador de fazer existir o ser humano sempre e somente como mulher e como homem. Somente a partir desses fundamentos, que consentem colher em profundidade a dignidade e a vocação da mulher, é possível falar da sua presença ativa na Igreja e na sociedade.” (1)

Ecoa nesse argumento a descoberta experimentada e defendida de Edith Stein (Santa Teresa Benedita da Cruz), uma santa mulher que influenciou nossos tempos que, tendo amado a Verdade e, em Deus captado o ethos feminino, por experiência escreveu: “Todo o nosso ser e o nosso vir a ser e atuar no tempo é disposto desde a eternidade e tem um sentido para a eternidade e só se torna claro para nós na medida em que nos colocamos sob a luz da eternidade.” Não é qualquer essência o íntimo da mulher. É uma riqueza que lhe foi concedida e que só pode ser conservada mediante uma profunda e estreita relação com seu Autor, e esta verdade está imutavelmente fixada na sua experiência (2) . É o Criador que deseja expressar-se e atuar no dom do feminino que Dele apartado, reduz-se à superficialidades inconsistentes. É Deus na mulher sua beleza. É o Belo que torna o feminino o motivo da exclamação estupefata do homem: “Esta sim!” (Gn1,23). O que pode ser belo e admirado fora do Belo e Admirável? Nossos acessórios? Nossas etiquetas? O nosso “não essencial”? Ser mulher não se resume à acertada combinação entre vestes e maquiagens, ultrapassa imensamente o longo que nos alcança o calcanhar e excede mesmo os ricos detalhes dos acessórios que ornam nossa aparência mais exterior.

É com a sua essência original que a mulher influencia e serve à humanidade. É transparecendo o Autor da sua vocação que ela pode e deve influenciar qualquer que seja o contexto que lhe cabe atuar, sem necessariamente atuar em tudo, embora seja capaz. Importa mais ser no que lhe cabe do que atuar superficialmente no que não lhe compete, não por impotência, mas por estar potencialmente reservada à outros desígnios, à outras prioridades. Todo o ser da mulher é para o serviço. Aquilo que não obedece ao que lhe é específico por chamado de Deus, tende a atrofiar e comprometer séria e gravemente sua plenitude e realização pessoal.

João Paulo II relembra a dignidade essencial da mulher no plano de Deus, recordando seu papel fundamental exatamente no mistério da Salvação, evento no qual toda a humanidade foi devolvida à Sua intimidade. A mulher tem papel de religar a Deus sua criatura desencontrada e o faz mediante ativa cooperação no mistério da encarnação e todo o seu desenrolar. Recordava o Santo Padre nessa ocasião o papel perfeito de Maria no resgate desse plano original a respeito da mulher afirmando que a mesma “se encontra no coração desse evento salvifico” (3)e isso revela sua altíssima dignidade: “a plenitude dos tempos manifesta a extraordinária dignidade da mulher” (4).

O entendimento de que reinar tem por sinônimo imediato uma vida de serviço realça a verdadeira essência feminina e o seu papel, “significa ao mesmo tempo, a plenitude da perfeição daquilo que é característico da mulher, daquilo que é feminino” (5) . A caridade fraterna como um prelúdio da vida trinitária também marca fortemente a mulher e sua missão, um vez que obedece aos vínculos de comunhão que lá se perpetuam. O ethos humano é communio, mas especialmente o feminino está configurada a este vértice do mandamento do amor.

O polemico tema da submissão da mulher ao gênero masculino também encontra nesse documento sua autentica interpretação, esclarecendo que a mulher não sucumbe ao domínio do homem quando realiza sua legitima feminilidade, mas que imitando o masculino, prescindindo de seus traços próprios, sucumbe a uma dominação do próprio complexo: “a mulher – em nome da libertação do domínio do homem – não pode tender a apropriação das características masculinas, contra a sua própria originalidade feminina. Existe o temor fundado de que por este caminho a mulher não se realizará, mas poderia, ao invés, deformar e perder aquilo que constitui a sua riqueza essencial” (6).

Poderíamos dizer que o ápice do documento está na apresentação da relação de Jesus com as mulheres, “o modo de agir de Cristo, o Evangelho de suas obras é um protesto coerente contra tudo quanto ofende a dignidade da mulher. Por isso, as mulheres que se encontram perto de Cristo reconhecem-se na verdade que Ele ensina e que Ele faz, também quando essa verdade versa sobre a ‘pecaminosidade’ delas. Sentem-se libertadas por esta verdade, restituídas a si mesmas, sentem-se amadas por amor eterno, por um amor que encontra direta expressão no próprio Cristo” (7) . O respeito, a confirmação e mesmo a predileção são fortemente destacadas nessa verdadeira lectio divina do ethos feminino em Mulieris Dignitatem. Evidentemente essa postura de Cristo causou polemica, espanto e até mesmo a rejeição dos seus muitos interlocutores e seguidores, e “o principio desse ethos, que desde o inicio foi inscrito na realidade da criação, é agora confirmado por Cristo contra a tradição, que comportava a discriminação da mulher” (8).

Dentre muitos outros, um ponto indiscutível na magnitude da sua ousada apresentação nesse documento é certamente a missão de humanizar inscrita na missão feminina, a qual sua realização está profundamente ligada: “a força moral da mulher, a sua força espiritual une-se à consciência de que Deus lhe confia de uma maneira especial o homem, o ser humano. Naturalmente, Deus confia todo homem a todos e a cada um. Todavia este ato de confiar refere-se de modo especial à mulher – precisamente pelo fato de sua feminilidade – e isso decide particularmente a sua vocação. (…) A mulher é forte pela consciência dessa missão” (9). O dom do feminino é, sobretudo, a expressão de um Deus incansável em atrair para Si sua criatura amada. É para Deus que deve levar o mistério da mulher e jamais para si mesma. Sua missão de expressar a Presença com a sua presença deve sanar as ausências que as nossas fracas predileções causaram.

É Deus que deseja servir mais uma vez à sua criatura no dom da mulher que, servindo à humanidade com o seu essencial, provoca mudanças, favorecendo que a ordem e a beleza se instalem ao longo dessa mesma história que ainda está aprendendo a lidar com o seu mistério. Exatamente por essa indiscutível propriedade, a Igreja e a humanidade inteira se rendem a esse particular modo de Deus se revelar às suas criaturas e “agradece todas as manifestações do ‘gênio’ feminino surgidas no curso da história, no meio de todos os povos e Nações; agradece todos os carismas que o Espírito Santo concede às mulheres na história do Povo de Deus, todas as vitórias que deve à fé, à esperança e caridade das mesmas: agradece todos os frutos de santidade feminina” (10) e a mulher retoma seu insubstituível posto na salvação do gênero humano.

(1) MD 1
(2) MD 1
(3) MD 2
(4) MD 4
(5) MD 5
(6) MD 10
(7) MD 15
(8) MD 12
(9) MD 30
(10) MD 31

Meyr Andrade

Artigo originalmente publicado na Revista Shalom Maná


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