Formação

Péguy, homen de Deus

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Péguy nasceu em 1873, na França. Filho de um pai “formalmente, oficialmente não crente”, aluno de professores que tratavam a Igreja Católica como um resíduo decrépito do Ancien Régime, paroquiano de uma paróquia “pouco freqüentada, onde a classe operária, o povo, não é atingido, e onde aos domingos, exceto em algumas solenidades, a igreja fica deserta”, aos 17 anos ele diz ter arquivado o cristianismo. E, aos 27 anos, escreve: “Todos os meus colegas se desembaraçaram, como eu, do cristianismo. (…) Os 13 ou 14 séculos de cristianismo entregues aos meus antepassados, os 11 ou 12 anos de instrução religiosa recebida sincera e fielmente, passaram por mim sem deixar rastros”…

Em 1897, casa-se no civil com Charlotte Baudouin, pertencente a um clã familiar revolucionário, num clima de socialismo místico. Três anos depois, funda a revista Cahiers de la Quinzaine, que se torna logo um cenáculo de livres pensadores, agnósticos e judeus revolucionários. Oito anos depois, confidencia a um amigo: “Não lhe disse tudo… reencontrei a fé, sou católico”. Posteriormente, escreverá em uma de suas obras: “A graça toca os corações quando menos se espera… É a própria fórmula da mordida, é a fórmula do ataque, do golpe, da penetração da graça. Mas essa fórmula implica também que aquele que se põe a pensar, que tem o hábito de pensar, que está recoberto da camada desse hábito é também aquele que se expõe menos e que, por assim dizer, tem menor possibilidade de ser pego”. Isso aconteceu a Péguy entre 1907/08, quando tem cerca de 35 anos e já é pai de três filhos.

Esse reencontro de Péguy com a “Boa nova”, fá-lo profundamente encantado das coisas novas e sedento de novidades. Em um de seus poemas, o “Mistério da caridade de Joana d’Arc”, a donzela de Orléans pede uma graça nova: “Há algo errado. Existem santos. Existe a santidade, mas nunca o reino da esfera da perdição dominou tanto sobre a face da terra. Talvez fosse preciso outra coisa, meu Deus, tu sabes tudo. Sabes o que nos falta. Talvez fosse preciso algo novo, algo nunca antes visto. Algo que nunca antes tivesse sido feito”.

E leva-o a dizer coisas belas sobre as virtudes teologais: “A fé é uma igreja, é uma catedral enraizada no solo da França. A caridade é um hospital, um sanatório que recolhe todas as misérias do mundo. Mas sem esperança, tudo isso nada mais seria que um cemitério”. Esperança tem de que cada pessoa, diante do Ressuscitado, experimente aquele mesmo fascínio que Pedro, Tiago, André, João…

Aos pés da Virgem

A vida de Péguy, depois de 1908, segue repleta de sofrimentos. São tribulações, como a saúde delicada do filho caçula; dificuldades econômicas que tem de enfrentar para continuar a publicar os Cahiers; o relacionamento com a esposa que, atéia, julga que o marido esteja sofrendo de uma “crise aguda de catolicismo” e, recusando-se a casar-se na igreja e a batizar os filhos, priva o esposo dos sacramentos; dificuldades com os amigos católicos, que tentam persuadi-lo a “obrigar” a esposa a casar-se na Igreja ou a abandoná-la. Mas Péguy, de alma magnânima, entende o que é a liberdade que Deus deu a cada um de seus filhos e, portanto, não pretende usurpar a liberdade de sua esposa e, acima de tudo, confia na misericórdia de Deus.

Em meio a todo seu sofrimento, ele consola-se e pede o auxílio da Virgem, Mãe de Jesus e sua. Ele mesmo escreveu a um amigo em 1912: “Faço parte daquele grupo de católicos que trocariam Santo Tomás inteiro pelo Stabat, pelo Magnificat, a Ave-maria e a Salve Rainha”. E em outro lugar: “No mecanismo da salvação, a Ave-maria é o extremo socorro. Com ela não podemos nos perder”.

Vai a Chartres, em peregrinação, para diante dos pés da Virgem pedir e agradecer por graças concretas. No trecho de uma carta escrita a um amigo, é possível perceber a confiança que nutria pela Virgem e o espírito com o qual se dirigia ao santuário: “Dá para ver o campanário de Chartres a 17 quilômetros na planície. De quando em quando desaparecia dentro de uma ondulação, uma linha de bosques. Tão logo o vi, prossegui em êxtase. Todas as minhas impurezas desapareceram de um golpe. Eu era um outro homem. Rezei durante uma hora na catedral, no sábado à noite; rezei durante uma hora no domingo de manhã, antes da missa solene. Mas não acompanhei a celebração: tinha medo da multidão. Rezei, meu amigo, como nunca antes daquele momento”.

De volta ao lar, Charles Péguy encontra os mesmos problemas, mas tudo parece diferente, a Virgem semeia graças abundantes em todos os aspectos de sua vida: sobre os Cahiers; sobre o filho, que melhora e tem finalmente diagnóstico e medicamentos acertados; sobre a senhora Péguy, cujo espírito passa por um movimento misterioso, chegou até a confessar que se o menino não tivesse melhorado chamaria o padre para batizá-lo; também sobre a inspiração poética, escreve vários poemas dedicados a Maria e como recordações das graças da peregrinação. Charles escreve a um amigo: “… eis-me novamente devedor para com Nossa Senhora de Chartres. Acho que irei todos os anos”; “Vivo sem sacramentos. É uma louca empresa. Mas gozo do dom da graça, de uma superabundância de graça inconcebível. Obedeço às indicações”.

De fato, em 1913, novamente Péguy vai em peregrinação a Chartres. Na volta, escreve a um amigo: “Quase morri. Fazia um calor enorme! Eu havia percorrido 40 quilômetros. Seria bonito morrer ao longo de uma estrada e ir para o céu num instante”.

Em 1914, vai novamente a Chartres. No entanto, dessa vez de trem, não mais a pé. E escreve: “Foi lá que deixei o meu coração e creio realmente que lá me farei sepultar, já que ali recebi graças extraordinárias”.

O Paraíso

Depois, começa a Primeira Guerra Mundial e Péguy parte para o fronte. Antes, porém, dirige uma exigência testamentária a três mulheres: a esposa Charlotte (atéia) e as amigas Jeanne Maritain (católica) e Blanche Raphaël (judia). Pede a elas que vão por ele a Chartres, todos os anos, se ele morrer na guerra. Um pedido incomum, dirigido a uma esposa não batizada e a uma amiga judia incrédula. Do fronte, escreve uma carta pedindo que em Chartres rezem três orações: Pai-nosso, Ave-maria e Salve Rainha.

Em 15 de agosto de 1914, o subtenente do exército, Péguy, assiste à missa da Assunção em Loupmont, pequena paróquia da região da Lorena. Três semanas depois, em 5 de setembro, aos 41 anos, parte para o paraíso. É morto no comando de um batalhão, próximo a Villeroy.

Suas preces expressas durante tantos anos em silêncio e sem forçar as circunstâncias serão respondidas após sua morte: a esposa Charlotte irá todos os anos em peregrinação a Chartres, levando consigo as crianças, e o fará durante meio século. Entre 1925 e 1926, ela e três dos quatro filhos – o último nasceu depois da morte do pai – receberão o batismo na Igreja Católica. O primogênito o receberá em uma comunidade cristã, mas não católica.

Trechos do poema “O pórtico do mistério da segunda virtude”

Charles Péguy

Nunca se pensa no que é simples.
As pessoas procuram, procuram, fazem mal a si mesmas (…)
Enfim, somos mesmo tolos, e é melhor dizê-lo logo.
(…)
É o contrário de um homem que colocou
seus filhos em uma feitoria.
Pois aquele que colocou seus filhos em uma feitoria
continua a ser proprietário de seus filhos.
E o feitor passa a ser o locatário deles. O feitor.
Ele, ao contrário, nada mais tem que seu usufruto.
E é o bom Deus quem tem a nua (e plena) propriedade deles.
Mas é um bom proprietário o bom Deus.
Veja como é sábio esse homem.
Esse homem que não quer ser mais que o feitor de seus filhos.
Esse homem que vai embora, que volta de mãos vazias.
Pois Deus não é ciumento, e nem a Virgem Santa.
Eles lhe deixarão tranqüilamente todo o gozo de seus filhos.
É um prazer ter Deus como proprietário.
Esse homem é astuto, recolocou seus pequenos nos braços da Santa Virgem,
nas mãos de Deus.
De Deus, criador deles.
Toda a criação não está, por acaso, nas mãos de Deus?
Toda a criação não é, por acaso, propriedade de Deus?


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