Amar a Deus com toda a inteligência
“Que têm em comum Atenas e Jerusalém? Ou, a Academia e a Igreja?” – perguntava-se Tertuliano, um grande escritor cristão dos primeiros séculos da nossa era. No Evangelho, Jesus louva o Pai porque escondeu os mistérios do Reino “aos sábios e entendidos” e os revelou aos pequenos (cf. Mt 11, 25). Mas são realmente assim inconciliáveis a reflexão racional e a fé? O conhecimento é obstáculo para a experiência com Deus? Qual é o sentido do mandamento de amar a Deus “com toda a inteligência” (cf. Mt 22,37)?
Breve premissa terminológica e histórica
Antes de desenvolver a nossa reflexão, precisamos definir a teologia, que ao longo dos séculos foi entendida de diferentes modos. Na filosofia antiga, e, em âmbito ocidental, até o início do segundo milênio, teologia era sinônimo de mitologia. Foi Abelardo, famoso mestre que ensinava em Paris no século XII, quem introduziu o termo no sentido no qual o compreendemos hoje: como busca de uma compreensão racional dos mistérios revelados aos quais se presta a própria adesão de fé.
A abordagem de Abelardo sofreu grande oposição sobretudo da parte de São Bernardo de Claraval, que entrevia o perigo de uma audácia desrespeitosa do mistério divino que em vez de iluminá-lo, o altera. Porém, reconhece-se a Abelardo, o mérito de ter contribuído “decisivamente para o desenvolvimento da teologia escolástica, destinada a expressar-se de modo mais maduro e fecundo no século seguinte” . No pensamento do grande São Tomás de Aquino, por exemplo, a reflexão teológica se desenvolve de forma sublime como ciência propriamente dita, e esta foi, sem dúvida, uma das mais importantes conquistas da teologia .
O divórcio entre fé e razão
Todavia, a partir da Baixa Idade Média, fé e razão começam a estranhar-se nas ideias de alguns pensadores, até que, com o Iluminismo, chega-se a uma nefasta separação. “Nos tempos modernos, pensou-se que tal luz (a fé) poderia ter sido suficiente para as sociedades antigas, mas não servia para os novos tempos, para o homem tornado adulto, orgulhoso da sua razão, desejoso de explorar de forma nova o futuro. Nesta perspectiva, a fé aparecia como uma luz ilusória que impedia o homem de cultivar a ousadia do saber”.
A separação é nociva para ambas as partes: a fé que desconfia da razão degenera em fideísmo; a razão que rejeita a fé não alcança o conhecimento para o qual é feita, conhecimento que a supera e que lhe vem dado gratuitamente pela revelação.
Uma união fecunda
Com a constituição dogmática Dei Filius do Concílio Vaticano I, o Magistério intervém pela primeira vez, de forma solene, sobre a relação entre razão e fé. Por um lado defende a capacidade da razão de conhecer a verdade; por outro lado, afirma a superioridade da Revelação em relação às capacidades naturais do homem.
Uma imagem sugestiva que ilustra a necessidade da reconciliação entre a fé e a razão podemos encontrar nas primeiras linhas da carta encíclica de São João Paulo II intitulada exatamente Fides et Ratio: “A fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade” . Não existe, portanto, contraste entre as duas, mas complementaridade na elevação do espírito humano às alturas que almeja.
Um documento da Congregação para a Doutrina da fé, Donum Veritatis (1990), oferece ulteriores clarificações:
“A verdade doada na revelação de Deus ultrapassa, evidentemente, as capacidades de conhecimento do homem, mas não se opõe à razão humana. Pelo contrário, ela a penetra, eleva e apela à responsabilidade de cada um (…). Mesmo sendo a verdade revelada superior a todo o nosso falar, e sendo os nossos conceitos imperfeitos frente à sua grandeza, em última análise insondável (cf. Ef 3, 19), ela convida porém a razão — dom de Deus feito para colher a verdade — a entrar na sua luz, tornando-se assim capaz de compreender, em certa medida, aquilo em que crê. A ciência teológica, que respondendo ao convite da verdade, busca a inteligência da fé, auxilia o Povo de Deus, de acordo com o mandamento do Apóstolo (cf. 1 Pd 3, 15), a dar razão da própria esperança, àqueles que a pedem”.
Portanto, se é verdade que a fé não consiste no êxito da reflexão racional e que não solicita somente o intelecto, ao mesmo tempo não pode prescindir da razão. Com efeito, seguindo o pensamento do Doutor Angélico, São João Paulo II afirma: “Como a graça supõe a natureza e leva-a à perfeição, assim também a fé supõe e aperfeiçoa a razão” . Logo, não pode existir vida de oração, relacionamento com Deus pela fé, sem o exercício da razão que busca penetrar na verdade que lhe é revelada para conhecer Aquele que gratuitamente quer Se dar.
Para além das declarações magisteriais e do esclarecimento dado pela Instrução Donum Veritatis, é fácil intuir a necessidade da dedicação intelectual para o progresso na vida de oração se pensamos nos nossos relacionamentos humanos. O amor cresce e se aprofunda junto com o conhecimento, enquanto a incapacidade de descobrir o outro sempre de novo, de se surpreender – por comodismo, dispersão, ou preguiça – sufoca e torna árido o amor.
Isso não quer dizer que para rezar seja imprescindível frequentar um curso de teologia, mas indica que existe entre fé e conhecimento intelectual de Deus uma profunda conexão. Nas palavras de Evágrio Pôntico, “se és teólogo, rezas verdadeiramente, e se rezas verdadeiramente, és teólogo” .
Qual teologia?
Portanto, é preciso interpretar os doutos a quem o Pai esconde os mistérios do Reino não como aqueles usam a razão, mas como aqueles que a absolutizam, incapazes de aceitar e aderir a algo que supere a sua capacidade de compreensão. Embora o papel da razão seja imprescindível, não é suficiente. Jesus exige – revelando a exigência da nossa própria natureza – um amor total, que envolve todas as nossas potências e faculdades. Nas palavras de Santo Inácio de Loyola: “Não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear as coisas interiormente” .
A teologia, portanto, enquanto esforço racional de compreensão do mistério, não deve pretender esgotá-lo, mas humildemente reconhecer o próprio limite e prostrar-se em adoração. A teologia verdadeira e sã é contemplativa e amante, e está, na famosa imagem do teólogo Hans Urs von Balthasar , “de joelhos” diante do mistério.
Concluímos com o augúrio-oração feito por São João Paulo II ao final da sua carta encíclica Fides et Ratio: “O caminho para a sabedoria, fim último e autêntico de todo o verdadeiro saber, possa ver-se livre de qualquer obstáculo por intercessão d’Aquela que, depois de gerar a Verdade e tê-La conservado no seu coração, comunicou-A para sempre à humanidade inteira” . Amém.
Élica Melo, teóloga e missionária da Comunidade Católica Shalom em Roma
Bibliografia
1) Biffi,Il Cristo Glorioso e la storia universale in Lui predestinata, Facoltà di Teologia de Lugano, Anno Accademico 2013/2014, Promanuscripto.
2) Papa Bento XVI Audiência Geral, 17 de março de 2010 em:
https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2010/documents/hf_ben-xvi_aud_20100317.html
3) Constituição Dogmática Dei Verbum Sobre a Revelação Divina em:
https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html
4) Instrução Donum Veritatis Sobre a Vocação Eclesial do Teólogo em:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19900524_theologian-vocation_po.html
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