O Evangelista São Lucas expõe, praticamente, todo o conteúdo do mistério de Cristo como um grande CAMINHO PARA JERUSALÉM. Tudo, em seu Evangelho, acontece neste caminho em demanda da Cidade Santa. Tudo irá adquirir sentido e o seu ponto culminante “nas coisas que lá irão se desenrolar”(Lc 9,31).
É uma descrição, rica de conteúdo, do próprio sentido da Quaresma, tempo de preparação e de em+caminhamento para o mistério central da vida de Cristo: a mais elevada demonstração de seu amor por nós, humanidade perdida, pecadora, carente de Deus, necessitada do sangue purificador e redentor: “Sem derramamento de sangue não há redenção” (Hb 9,22).
São Leão Magno, em um de seus sermões célebres (44) afirma, por isso, que a Quaresma tem sua origem na própria tradição apostólica, ou seja, a partir do primeiro século da era cristã.
Quando São Lucas fala “das coisas que iriam acontecer em Jerusalém” (9,31) ele sabe, bem melhor do que nós, o que significa para os judeus essa Cidade da Paz: centro da convergência nacional, da religiosidade, do sentido comunitário, da administração da justiça, do encontro com Javé: “Deus das misericórdias e do perdão” (cf. Ex 34,6).
Encontramos, como primeiro relato, o desempenho da mais alta função sacerdotal, no templo de Jerusalém, por parte de Zacarias, que estava de turno, diante do “Santo dos Santos”. Jesus, “O Santo de Deus”, irá consumar o sacrifício da nova aliança, com novo odor para a glória do Pai e a salvação de todos, também em Jerusalém, a perene Cidade da Paz… que parece fugir quanto mais a buscamos. A busca da paz será sempre um caminho de esperança em demanda do que, ainda, não se vê e não se tem em plenitude.
A Quaresma é esse caminho para a Páscoa, (passagem) junto com Cristo Jesus, guiados por Ele. Páscoa é o desfecho de um longo e inefável mistério de amor, de dor e de infidelidade humana. Quaresma é ininteligível sem a Páscoa e sem a abertura do coração de Cristo (Jo 19,34) escancarando “as fontes de salvação” (Is 12,3). Relembra o início da vida missionária de Cristo, como peregrino do Evangelho pela Judéia, Galiléia e Samaria: os seus quarenta dias de jejum, a transfiguração (antecipação da glória na dor) e o encontro com os Doze e com todo o tipo de seguidores… Todos iriam a Jerusalém “para morrer com Ele”, como afirma Tomé, no auge da entrega incondicional ao Mestre (Jo 11,16) ou, talvez até, em um certo desespero.
Entre esses “peregrinos para Jerusalém” estava um destacado e fiel “grupo de mulheres”, que acompanharam o Divino Mestre desde o Batismo no rio Jordão até a teofania da ascensão.
Para nós, a Quaresma começa com a Quarta-feira de Cinzas, e isto, desde uma data bem remota da história do Cristianismo. As cinzas relembram a fragilidade de nosso ser criatural, a dependência do Absoluto, a transitoriedade e a inevitabilidade da morte: “És pó e ao pó hás de voltar” (Gn 3,19).
A Quaresma evoca também o período da nossa história cristã, quando se praticava a chamada penitência pública. Determinados pecados ou crimes deveriam ser expiados mediante atos de reparação, impostos pela própria comunidade. Só depois de longo período de uma sucessiva conversão, esses pecadores eram readmitidos na comunidade. Havia, então, a consciência bem nítida de que todo o pecado tem ressonância na vida da própria Igreja, comunidade que tem o direito de apelar para a santidade de seus membros, embora sujeitos a erros e desmandos. A Quaresma propiciava um período favorável para acelerar e intensificar essa conversão.
Ainda hoje a Igreja recorda aos fiéis esse dever de conversão pela adesão ao Evangelho: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Liturgia da Quarta-feira de Cinzas).
Nosso caminho para a Páscoa coincide, neste ano, no Brasil, com a Campanha ecumênica da Fraternidade, de iniciativa da CNBB, e tem como tema: Solidariedade e Paz e como lema: Felizes os que promovem a Paz. Cada um de nós é convidado a devotar-se à cultura da paz por todos os meios ao seu alcance e pela decidida repulsa do que se lhe opõe: violência, revide, vingança, desrespeito à vida sob todas as formas, terrorismo, assaltos… fatores que externam a pseudo-cultura de morte, interferindo na “tranqüilidade da ordem” que fundamenta a paz.
Não há programas prefixados para isso, exceção feita aos temas e às propostas que a própria liturgia quaresmal nos oferece.
Só quem percorreu, com fé e dedicação, as semanas da Quaresma tem condições favoráveis para participar da Semana Santa com aquela disposição que Cristo nos pede: desapego, doação de vida pelas mais nobres causas, gratidão pela Eucaristia e pelo preço do seu Sangue, identificação com o homem novo, esperança da libertação plena na posse da Paz duradoura.
Cristo é o Caminho (Jo 14,6) que nos convida para essa nova jornada de amadurecimento de nossa responsabilidade cristã. Só Ele nos pode conduzir pelas estradas violentas e assustadoras de nosso século rumo a um novo tempo de solidariedade e de fraternidade que todos almejamos. Vamos com Ele para a nova Cidade da Paz! A Solidariedade nos levará à Fraternidade!
Cardeal D. Eusébio Oscar Scheid