Formação

Que saudade dos velhos tempos!

comshalom

Outro dia estava me lembrando dos velhos tempos. Lá para trintaanos atrás, bota velho nisso! Pois é: naquele tempo, a gente costumava carregara Bíblia para onde ia. Ia à escola? Conosco ia a Bíblia. Ia à Missa? Bíblia namão! Ia ao cabeleireiro, ao ‘mercantil’? A companhia da Bíblia eraindispensável. A Bíblia ia para as visitas à família, para a casa da sogra,para a conversa com o chefe, para a merenda – não se dizia ‘lanche’, pois não havialanchonetes, exceto nas Lojas Brasileiras, no centro. A Bíblia ia a todo lugar.

Nos grupos de oração, encontros, pregações (não se admitia apalavra ‘palestra’), aí, então, é que a Bíblia aparecia mesmo. E aí,naturalmente, ela tomava destaque especial. Era o centro das conversas, àsvezes santas, às vezes santas só na aparência:

– Imagine que no ônibus perguntaram seeu era crente…

– Ih! Acontece comigo todos os dias,mas aí eu aproveito e… tome conversa sobre o senhorio de Jesus!

– E não foi o que fiz? Logo que asenhora me perguntou, aproveitei a deixa e falei até chegar minha parada! Nofinal, acabei rezando por ela ali mesmo.

– Pois é, ninguém pode perder a chance!Só porque a gente está com Bíblia na mão pensam que a gente é crente!Precisamos mostrar que católico também lê a Bíblia.

Ter uma Bíblia católica, porém, não eratão fácil como hoje. Era preciso arriscar encontrar uma em uma livraria docentro da cidade. Quando se conseguia uma era uma festa, motivo deexibicionismo geral. Eram Bíblias grandes, grossas, uns quatro dedos delargura. Quando novas eram exibidas como um troféu. Porém, prestígio mesmoganhavam quando estavam muito, mas muito usadas mesmo, a capa marcada, rota,cheia de ranhuras. Era sinal de muito uso, de muito serem carregadas, mas nemsempre de muita leitura. O sinal da leitura estava, mesmo, era dentro, onde ahistória de Noé parecia se derramar em um perene arco-íris: vermelho para asordens de Deus; verde para as Suas promessas; azul para as verdades eternas eamarelo para as advertências. Isso fazia com que, no mais das vezes, a Bíbliafosse acompanhada de uma indefectível bolsinha com lápis de cores. Afora oarco-íris, havia ainda as observações escritas, os versículos copiados paraserem melhor lembrados, os versículos de referência que, não vindo impressos,descobríamos e anotávamos com orgulho, como ‘exímios exegetas’. Bons velhostempos, aqueles! Bons e simplórios papos:

– Hoje terminei de ler a Bíblia pela quinta vez!

(Silêncio de profunda admiração)

– Vocês nem imaginam o que senti! Foiuma bênção do Senhor (usava-se as palavras ‘bênção’ e ‘Senhor’preferencialmente às palavras ‘graça’ e ‘Deus’).

– Eu ainda estou na segunda vez,retrucava o outro, humildemente, para logo ser socorrido por um terceiro:

– É, mas você fez o seminário quando?

– Há um ano, mais ou menos.

– Então!?! Ler duas vezes em um ano jáé muito! Ouvi dizer que a média é uma vez por ano se você ler quatro capítulospor dia…

Bons velhos tempos! Mas bom mesmo eraque conhecíamos de cor todas as passagens que se referiam à Palavra: ‘espada dedois gumes’, ‘penetra até a medula, até as junturas, entre as articulações’, ‘éa verdade, e a verdade liberta’, ‘luz para os nossos passos’, ‘espada da fé’,‘comida amarga que se torna doce’. Colecionávamostestemunhos de como a Palavra corrige, restaura, alimenta. E lá íamos nós, paracima e para baixo, Bíblia debaixo do braço, embalados pelas primeiras cançõesdo Pe. Zezinho, a anunciar o Evangelho, ‘ao cair da tarde, sem muito – nemtanto! – alarde’.

Nomês de setembro, era uma verdadeira competição: todos queriam fazer ou darcursos sobre a Bíblia e o último domingo, o ‘Dia da Bíblia’, era dataimportante, comemorada com alegria e gratidão. As pregações eraminvariavelmente baseadas em uma passagem bíblica e havia competições veladas dequem sabia mais versículos de cor, com a devida referência, claro.

A Bíblia era usada para tudo: oração,discernimentos, orientações, aconselhamento. Ainda se abria a Bíblia para pedira Deus a confirmação de uma profecia, de uma palavra de ciência ou sabedoria.Direcionava-se ou redirecionava-se uma oração comunitária inteira, retiros eencontros por causa de uma ‘palavra’ tirada da Bíblia. Recomeçava-se umdiscernimento já praticamente fechado quando se tinha um direcionamento novoatravés da Palavra. Orava-se com a Bíblia no início de cada reunião. Bonsvelhos tempos!

Passam-se os setembros e cá estamosnós, a escrever estas Entrelinhas,cheios de saudade. Nos setembros de hoje, na pregação, pedimos que abram asBíblias para descobrir que ninguém as trouxe. Referimo-nos a uma passagem quetodos deveriam conhecer de cor, mas ninguém jamais ouviu falar. Preparamos todoum encontro sobre um tema bíblico e, logo na primeira palestra, percebemos quetodos o desconhecem. Falamos de ‘estudo bíblico’ e as pessoas pensam que nosreferimos a uma disciplina da Faculdade de Teologia. Referimo-nos à Lectio Divina e logo pensam que estamosusando línguas estranhas. Saudade, saudade, saudade!

É. Saudade! Saudade acompanhada detristeza, perplexidade. ‘Crescemos’, dizem alguns. ‘Não precisamos mais nosexibir com as Bíblias debaixo do braço por toda a parte’. Será mesmo assim?Certamente havia um certo exibicionismo, uma certa tentação de vaidade, deautoafirmação. Mas, de uma forma ou de outra, na bela ingenuidade típica dosprincípios, lia-se a Bíblia, orava-se com a Bíblia, conhecia-se a Bíblia,amava-se a Bíblia. Ela era luz para nossa conduta moral, pessoal, familiar,comunitária. Saudades!

Para infelicidade nossa, os nossosbraços e mãos, agora ‘livres’ da Bíblia carregada para todo o lado, mais do queo talvez ingênuo glamour dos começos,não teriam perdido o ardor apaixonado que nos fazia ter o nome e o poder doVerbo no coração e nos lábios? Saudades!


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