Conto de Maria Emmir Oquendo Nogueira
“Lol! O pai acabou de sair daqui. As luzes estavam apagadas e as cortinas fechadas, ele nem me viu direito. Foi show pintar as paredes de azul escuro e laranja. Fica tudo na bruma, meu! Só gritou: ‘Seu Kauê, quero ver o dever feito quando chegar!’ Bizarro! Nunca ligou para dever, nunca foi me pegar no colégio, nunca pôs o pé em reunião de pais, nunca saiu comigo e agora quer dar uma de careta! Pô, qual é, bicho? Que foi que te mordeu? Aposto que a mãe te deu aquele livro careta dela prá ler… se é que ‘tu sabe’ ler… só te vi até hoje com a Playboy e olhe lá… Isso cheira a perigo! É preciso planejar um contra-ataque. Fácil! Um toque no controle remoto do som “nas alturas”, como ele diz. O jogo que downloadei, cheio de tiros e barulho de carros correndo, cantando pneu, derrapando, freiando… Pronto! Perfeito! Para completar, um clipezinho básico da MTV com acompanhamento fera de guitarra do gatinho aqui e, como toque final, os headphones para fingir que não ouço, caso ele fale comigo. Agora é contagem regressiva: ‘três… dois… um… fogo!… três… dois… um… fogo!’ Ué?!? Cadê ele? Sair não saiu, que ainda estava de pijama… Será que coloquei a corrente no trinco? … Vou deixar a porta só encostada e tentar novamente… Força total, galerinha…’três… dois… um…um… um… ‘ ué, será que displugou? Já sei! Arrependeu-se porque quis mandar em mim e foi pedir o milk shake. É esperar… Daqui a pouco bate na porta: ‘Kauê, meu filho, vem tomar teu lanche… É o shake que você gosta… porção especial de calda de chocolate…’ Eh, eh… tá no papo…”
Alguns minutos se passam e, interrompendo sua “diarréia mental” característica, com completa ausência de lógica e de parágrafos, em um verdadeiro atentado ao português, Kauê verifica a área para montar nova estratégia:
“Melhor abrir um pouco mais a porta. Vai ver ele deixou a bandeja no chão… Nada… Lô! O que deu nele? … Pô, cara, vou ter que fumar o último baseado! Ontem a Nadine acabou com meu estoque! Vá lá… bem que valeu a pena…” E, após um breve devaneio apaixonado:
“É infalível! Ele sente o cheiro e logo vem, desconfiado, bater na porta, inventar uma desculpa para me tirar do quarto… Tudo pronto: som ‘nas alturas’, game on, MTV, guitarrinha básica do fera aqui no acompanhamento, fumacê e porta entre-aberta. Contagem regressiva para ele vir se arrastar aos meus pés e nem mais se lembrar de tarefa – ou ‘dever’, como diz o careta. ‘Três… dois… um… fogo!'”
“Kauê, Kauê, meu filho!”, bate o pai na porta. “Você quer que peça aquele shake de que você gosta?”
Vitorioso, Kauê soca o ar, triunfal: “Não responde, Kauê, não responde! Tá na mão! Tá na mão, bicho!”, festeja, aumentando para o volume máximo o amplificador da guitarra, já meio lombrado.
“Kauê, posso entrar, filho?”, suplica o pai, enfraquecido, ensurdecido pelo barulho infernal, tendo por resposta um acorde esganiçado da guitarra amplificado pelo pedal de distorção.
“Tá no papo!”, pensa Kauê, tomando uma última, longa, profunda tragada e jogando a fumaça pela fresta da porta apenas encostada, após escorregar no preservativo usado que ficara no chão na noite anterior: lembrança da Nadine. “Paiêêê!”, gritou.
“Diga, filhão!”, respondeu o pai, animado.
“Será que a mãe lembrou de comprar as camisinhas no supermercado? Usei a última ontem …”
“Não sei, filho, ligue para o celular dela… Kauê… posso entrar?”
“Não! Agora estou ocupado!”, responde Kauê todo-poderoso em mais esta pequena vitória, enquanto o pai, angustiado, culpado, esmagado, senta-se ao chão, a esperar pacientemente que ele o admita ao quarto, a pensar porque, apesar de todas as suas tentativas de tornar-se amado e amigo do filho, estava agora nesta situação. Logo ele, que sempre tivera tudo o que queria e tudo o que os amigos tinham. Logo ele, por quem o pai e a mãe se haviam sacrificado, deixado de viajar, de jantar a dois, de curtir a vida. Logo ele… filho único por decisão dos pais, resolvidos a lhe dar a melhor educação, as melhores roupas, os melhores brinquedos, o melhor som, a TV de 29 polegadas, a guitarra Fender, o computador de última geração… Logo ele!
Encostado, em completa desolação, à parede do corredor, pensou, em um laivo de lucidez:
“Será que tinha razão a minha mãe quando me dizia que ‘é de menino que se desentorta o pepino’? Será que, como dizia sua ‘velha’, lhe haviam faltado uns bons ‘relas’? Ou será que tinha escolhido a escola errada? Será que era melhor telefonar para o Dr. Gutemberg? Podia ser algum distúrbio hormonal… Ou será que era ele quem devia fazer alguma coisa? Mas, fazer o quê? Como? Quando? Invadir o quarto? Nem pensar! Tinha de respeitar a individualidade do filho. O jeito é conversar, explicar tudo direitinho, com paciência, agüentar grito e xingação para não traumatizar o Kauê, como tinha feito a vida inteira. Não, não iria morrer na praia… Acreditava em dar boas razões, em convencer com bom argumentos, em aguardar que o filho tomasse suas próprias decisões. Tinha sido assim desde suas primeiras semanas..”
E, perdido em seus pensamentos, ali mesmo, sentado ao chão como um verme aprisionado, lembrou-se do Padre Peter, do encontro de jovens, citando a velha Bíblia: “quem educa seu filho encontrará nele motivo de alegria”, enquanto de soslaio avistava sobre o criado mudo do seu quarto, ainda na embalagem plástica, o livro suspeitamente ameaçador do ponto de vista de Kauê: “O direito dos pais”, Tânia Zaguri. Cansado, exausto, chorou amargamente enquanto ainda inalava o odor inconfundível da marijuana que também ele “pegara” nos tempos de Woodstock.
Fonte: Revista Shalom Maná