Formação

Razões religiosas contra o aborto

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Participar de um seminário em favor da vida e contra o aborto é sem dúvida uma responsabilidade: responsabilidade para quem apresenta razões científicas, responsabilidade para quem apresenta razões jurídicas, pois afinal estão em jogo valores fundamentais para todos. À primeira vista articular o discurso de cunho religioso pode parecer tarefa simples, uma vez que o Brasil continua sendo uma terra fértil para as mais diversas manifestações religiosas e que pressupostamente se caracterizam pela defesa e promoção da vida em todas as circunstâncias. E no entanto, por mais surpreendente que isto possa parecer, o discurso religioso encontra hoje fortes resistências em algumas áreas da sociedade. Criou-se artificialmente um clima de novo conflito entre religião e ciência, em contraposição a um pensamento de Einstein: quem julga haver conflito entre religião e ciência não entende nem de uma nem de outra.

Sem medo de errar podemos dizer que nunca a humanidade acumulou tantos conhecimentos e dispôs de tantos recursos para interferir nos segredos da vida quanto em nossos dias. Mas este fato pode gerar ao menos uma dupla reação: a primeira é de encantamento diante de tantas maravilhas que vão se desvelando aos nossos olhos e de santo orgulho de sermos administradores de tamanho saber e tamanho poder. A segunda reação se apresenta com as cores de um iluminismo racionalista e reducionista incapaz de perceber o que se esconde por trás da biogenética e os parâmetros para que nossa administração seja sábia. Em certos ambientes qualquer referência religiosa desperta reações emocionais nem sempre tranqüilas, como se ao defender a vida em todas as suas manifestações e em todas as suas etapas fosse a expressão de um certo obscurantismo diante do brilho das conquistas científicas. A expressão máxima da segunda atitude encontra-se numa frase contundente de James Watson em seu recente livro “DNA o segredo da vida:”a vida é uma simples questão de química”. Claro que ninguém nega que a vida também seja uma questão de química, mas os que não vêem contradição entre ciência e fé, vão tentar desvelar o que se esconde por trás de articulações químicas tão inteligentes, que, por si só, descartam o acaso.

Para articular de modo adequado estas posições contrastantes, convém, antes de mais nada, nos defrontarmos com uma questão vital referente ao autor do sempre de novo referido “Livro da Vida”. Num segundo momento convém formular, ao menos como pergunta, o que Blaise Pascal colocou como assertiva genial: não seria sinal de inteligência desconfiar que o racionalismo cartesiano não esgota toda a racionalidade humana? E finalmente o embevecimento pelas sensacionais descobertas com certeza não impedirá a percepção de que, por mais privilegiados que sejamos, não somos os primeiros seres humanos a pensar com profundidade sobre os fundamentos últimos das leis que devem reger as nações.

1) O que se esconde por trás de tanta complexidade?

Hoje se torna muito difícil falar de progresso em uma determinada ciência, uma vez que nos encontramos diante de convergências em quantidade e escala nunca antes imaginadas. As várias ciências se articulam em redes agilizando e aprofundando os conhecimentos numa velocidade estonteante. Da mesma forma, torna-se difícil descrever os progressos de uma determinada tecnologia, pois também aqui as convergências provocam revoluções contínuas que se interpenetram e se reforçam. Mas seguramente as convergências de conhecimentos e de tecnologias encontram sua melhor expressão na biogenética e nas diversas biotecnologias. É nestes campos que, sobretudo a partir do Projeto Genoma Humano, começamos a perceber melhor a complexidade dos mecanismos que comandam a vida, e de modo particular a vida humana. Trilhões de células, cada uma portadora de um genoma completo mantêm a identidade de cada ser e o colocam num processo de contínua evolução e mantendo a autonomia e a interdependência em relação a outros seres. O que caracteriza um ser vivo não é a imobilidade pressuposta no paradigma clássico da harmonia, mas a fervilhante e dialética atividade criativa que tentamos evocar quando em biogenética apelamos para o paradigma da complexidade. Em vez de nos encontrarmos diante de seres acabados, nos encontramos diante de potencialidades conectivas, com quase ilimitado poder endógeno de produzir novas relações, novas conjugações, novas combinações, novas constelações, num fluxo de formatações onde não se conseguem estabelecer os limites do início e do fim. De alguma forma deve-se dizer que as biotecnologias apenas tentam imitar aquilo que a biogenética vai descobrindo nas múltiplas expressões da vida.

Foi certamente na percepção da complexidade que caracteriza os seres vivos, que já há algumas décadas foram sendo aproximadas ciências da comunicação e biogenética. Na gênese de todos os seres vivos encontram-se como que compactadas milhares de informações e instruções responsáveis por todas as articulações. Este complexo de informações, por sua vez, é comandado por uma prodigiosa memória que tudo conserva e tudo articula. Esta prodigiosa memória age de modo semelhante à do computador, que através de uma lógica informacional garante a coerência de processos tão díspares quanto os que caracterizam as múltiplas formas de vida. Foi, certamente, a partir desta compreensão que se passou a falar em “código genético”, como uma espécie de linguagem com a capacidade de produzir e reproduzir infinitas receitas diferentes no campo da vida. Mas os mesmos cientistas que buscavam nas ciências da comunicação uma linguagem capaz de traduzir algo do que constatavam em suas pesquisas logo se depararam com uma pergunta inevitável sobre quem escreveu o complexo e desconcertante “Livro da Vida”, onde a lógica convencional se sente incapaz de explicar a lógica dos fatos. Na exata medida em que avançam as descobertas parece ser cada vez mais irracional não admitir um desígnio inteligente que se esconde por trás de mecanismos aparentemente apenas materiais.

É nesta altura que as religiões, de modo geral, e o cristianismo de modo particular, apontam para um mesmo princípio criador que se encontra na origem de todas as coisas. Para o cristianismo este princípio tem um nome: Jesus Cristo. Nele e por ele tudo foi criado e nele subsistem todas as coisas ( Col 1,15s; Hb 1,6). Primogênito de toda a criação, Cristo nos assegura que não somente ele foi enviado a este mundo, com uma missão especial, mas que todos os seres humanos são igualmente enviados. Neste contexto do início da vida humana é muito auspicioso para nós cristãos termos a certeza de que ninguém é gerado por acaso. Todos somos vocacionados à vida pelo próprio Deus, que nos chama a cada um pelo nome: “ e foi-lhe dado o nome de Jesus, como o anjo o havia chamado, antes de ser concebido no ventre materno” ( Lc 2,21). A propósito da vocação do profeta Jeremias não deixa de ser significativo que ela venha assim enunciada: “ antes mesmo de te formar no ventre materno, eu te conheci; antes que nascesses, eu te consagrei……” ( Jr 1, 5). A decorrência lógica parece ser esta: se a vida é Dom de Deus, então cabe aos seres humanos manter-se abertos para sua alegre acolhida, desde seu início até o seu fim. À luz desta compreensão vai emergir outra lógica paradoxal: a da força de Deus que se manifesta exatamente na fraqueza, a da beleza daquilo que à primeira vista pode parecer feio, e a do significado daquilo que pode parecer sem sentido. Claro que esta percepção se torna difícil para um mundo marcado pela normose, ou seja, pela patologia do que parece normal, porque aceito por muitos. Mas sem esta percepção se torna impossível a compreensão de um princípio fundamental do convívio humano: de que os denominados direitos humanos, a começar pelo direito à vida, não são outorgados por instâncias humanas, mas pelo próprio Criador.

2) A surpreendente percepção dos intuitivos

Na virada do milênio a revista Times fez ampla pesquisa para escolher o personagem que mais teria marcado o século e o milênio. Este personagem deveria encarnar a expressão máxima de humanidade, portanto de bondade, de sensibilidade e até mesmo de inteligência. Curiosamente esta revista, nada religiosa, viu-se obrigada a fixar-se na figura de Francisco de Assis, que não era nenhum intelectual, mas um homem de uma percepção extraordinária da realidade. É tão verdade que ele transita com facilidade em todas as religiões e até mesmo em ambientes não religiosos. É difícil encontrar alguém que não se sinta encantado por aquele homem pequeno, subnutrido, com o corpo marcado pelo sofrimento, mas portador de uma intuição incomparavelmente profunda e por uma contagiante alegria de viver. Para ele tudo o que existe remete para um mesmo Criador: o grande, poderoso e bom Senhor. Por isto mesmo, tudo o que existe vem congregado por um abraço fraterno que não conhece limites. Todas as criaturas, masculinas e femininas são simplesmente irmãos e irmãs, porque filhos e filhas de um mesmo Pai comum.

Foi desta intuição profunda que, já quase cego e debilitado pelas enfermidades, do alto dos jardins da Igreja de São Damião, Francisco entoou o Cântico das Criaturas: “ Louvado sejas meu Senhor pelo conjunto de tuas criaturas, com o Senhor irmão sol principalmente, que por ele nos vem o dia e com sua luz nos alumia. Louvado sejas meu Senhor, pela irmã lua e as irmãs estrelas…. Louvado sejas meu Senhor pelo irmão vento, o ar e a nuvem e o tempo sereno e todo tempo…. Louvado sejas meu Senhor pela irmã água… pelo irmão o fogo, pela irmã terra …”

Reconhecidamente este cântico não se constitui apenas numa manifestação extraordinária de vibração poética, mas também numa obra de rara profundidade antropológica, ecológica e teológica. O seres humanos não existem por si e para si. Eles fazem parte de um projeto maior e só se realizam na medida em que se compreendem como partícipes deste projeto que engloba todos os seres. Cabe aos seres humanos administrar todas as coisas, inclusive a si próprios, mas com sabedoria. Só assim eles serão capazes de perceber que por trás do aparente caos se esconde um cosmos a ser explicitado. Por isto mesmo, a consciência de ser criatura entre as demais criaturas não se constitui numa diminuição, mas num engrandecimento do ser humano. Pois, é só quando confrontado com a grandeza do projeto criador, que tanto se manifesta no macro, quanto no micro cosmos, que o ser humano deixará dirigir sua inteligência para criar sempre novos mecanismos de destruição, e passará a criar mecanismos que possibilitem vida digna para todos. Sem, dúvida estamos pressupondo aqui um outro tipo de racionalidade, mas a gravidade dos problemas que não remetem nem só, nem sobretudo para os genes, mas para causas sociais, econômicas e políticas, nos levam a nos perguntarmos: que racionalidade é esta que está provocando tantos dramas ecológicos e decreta a morte de tantos inocentes, só porque não cabem dentro dos nossos parâmetros de normalidade por nós estabelecidos ou nos parecem indesejados?

3) As principais leis não precisam ser transcritas

Com certeza nenhuma sociedade conseguirá sobreviver sem um aparato legal que contemple os principais aspectos da vida. Entretanto, nem sempre o aparato legal de um país é suporte para a vida pessoal e social. Ficou célebre um confronto ocorrido há 30 anos atrás entre um ministro e um bispo, no contexto de uma conhecida greve. O ministro argumentava: esta greve é ilegal; o bispo lhe respondia, mas esta lei antigreve é imoral. É muito curioso que um confronto semelhante já aparece há mais de 3 mil anos atrás, relatado numa tragédia de Sófocles, quando Antígone enfrenta os decretos de Creon com estas palavras: “ … Não creio que teu decreto tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis… Elas não existem a partir de ontem ou de hoje, pois elas são eternas.” E na mesma linha de raciocínio Cícero, o grande tribuno romano assegurava: “ Existe uma verdadeira lei, conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna; sua voz ensina e preserva o bem; suas proibições afastam o mal… Essa lei não pode ser contestada, nem anulada, nem alterada em parte. Nem o povo, nem o Senado podem dispensar-nos de seu cumprimento; não há que procurar para ela outro comentador nem intérprete. Não é uma a lei em Roma, e outra em Atenas, uma agora, e outra depois, senão uma lei única, eterna e imutável, que obriga entre todas os povos e em todos os tempos; um só será sempre o seu imperador e mestre, Deus, seu inventor, sancionador e publicador, não podendo o homem desconhecê-lo sem renegar-se a si mesmo, sem despojar-se de seu caráter humano e sem deixar de atrair sobre si as penas máximas, ainda que tenha conseguido evitar os demais suplícios” (Cícero, República, Livro III, 17).

Com certeza estes dois testemunhos podem parecer extemporâneos e fora de propósito quando se tem uma compreensão histórico evolutiva da criação e da sociedade. Muito mais fora de propósito podem parecer quando hoje dispomos de conhecimentos e mecanismos capazes de mergulhar nos mais recônditos segredos da vida, produzindo seres sob medida. E no entanto, é justamente neste contexto que emergem ao menos três grandes riscos. O primeiro é da prepotência onde a única lei vigente seja a do mais forte. O segundo risco é o da eugenia, na busca de um mundo onde só haja lugar para seres considerados perfeitos. O terceiro risco é o de se apoiar em argumentos pretensamente científicos para contradizer as evidências do bom senso: embriões e fetos não são órgãos do corpo de uma mulher; são seres portadores de um DNA próprio e original. Talvez aqui convenha reproduzir o pensamento de Davor Solter, do Instituto Max Planck de Freiburg, Alemanha, e citado por Marcelo Leite na Folha do último Domingo, dia 4 de dezembro: “ Fazer o jogo da política em favor da ciência é provavelmente necessário e às vezes nobre; manipular a ciência em favor da política é em geral um desperdício de tempo”. Pois os fatos acabam por derrubar as teorias. E até hoje nenhuma teoria conseguiu provar que sejamos frutos do acaso ou mera expressão de genes e de arranjos químicos fortuitos.

Conclusão:

Todos temos muita consciência de estarmos vivendo um momento ímpar da história. Todos vibramos com as conquistas nos campos da biogenética e das biotecnologias. Nunca como hoje o mundo se encontra em nossas mãos. Por isto mesmo, todos nos sentimos chocados com uma realidade paradoxal: em meio a tantos progressos perambulam pelo mundo milhões de pessoas que vivem em condições infra-humanas; milhões de deficientes que não nasceram como tais, mas que assim foram transformados pelas máquinas das várias formas de violência; milhões de famílias que vivem sem condições mínimas por falta de uma verdadeira política familiar; milhões de seres deprimidos por serem vítimas de uma felicidade ilusória. Nós nos sentimos muito mais chocados ainda quando confrontamos o Projeto TAMAR, declarando crime inanfiançável matar tartaruguinhas, com projetos sempre de novo retomados de liberar o aborto, bem como a previsão de projetos destinados a legalizar a eutanásia.

Esta situação paradoxal nos faz lembrar a cena relatada pelo Livro do Deuteronômio, quando às portas da Terra da Promessa, Moisés lembra que existem dois caminhos, um da vida e um da morte, dirigindo estas palavras ao seu Povo: “ Eis que ponho diante de ti a vida e a felicidade ou a morte e a desgraça. … Escolhe a vida para que vivas com tuas descendência, amando ao Senhor teu Deus, escutando sua voz e apegando-te a ele. Se obedeceres aos mandamentos do Senhor teu Deus… seguindo seus caminhos e guardando seus mandamentos… viverás e te multiplicarás e o Senhor teu Deus te abençoará na terra em que vais entrar ” ( Dt 30). Pois isto significa vida para ti e tua permanência estável sobre a terra que o Senhor jurou dar a teus pais…” ( Dt 30, 20). Esta é a situação na qual nos encontramos no Brasil de hoje: prosseguir nos caminhos da morte, ou abrir novos caminhos para a vida, através de políticas sociais eficazes, garantidas por uma legislação que crie condições de vida para todos .


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