Formação

«Recordando…», pelo cardeal Eusébio Scheid

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Em diversas datas do Ano Litúrgico – Cristo Rei, Oitava da Páscoa, Imaculada Conceição – celebramos Primeiras Comunhões: com bom preparo e muita seriedade. Quero, pois, abordar o assunto de um ponto de vista existencial, meio chocante, relatando dois casos que vivenciei, de crianças em preparação para a Primeira Comunhão e suas respectivas famílias. Os nomes que aduzo aqui são fictícios, para preservar a privacidade das pessoas envolvidas.

Começo pela história de Ângela, uma menina de dez anos, do Oeste de Minas Gerais. Morreu vítima de leucemia, doença considerada incurável, naquela época, quando ainda não existiam os transplantes de medula. Eu viera de São Paulo, para pregar naquela região, e a conheci por ocasião de uma visita à sua família. A menina logo se afeiçoou ao novo padre – eu ainda não me consagrara como bispo. Identifiquei-me, também, profundamente com o seu problema, a tal ponto que pude entrar na alma daquela criança enferma, que sofria muito por saber os detalhes da própria doença. E ela passou a ser muito querida para mim, desde aquela época.

Ângela era filha única de pais ainda jovens, casados há mais de 15 anos. A mãe, uma senhora gentil, delicada, mostrou-se uma pessoa extraordinária diante do sofrimento. Sua dedicação em ajudar a filha a superar a doença não conhecia limites. Quanto ao pai, o carinho que tinha pela filha pode ser resumido na expressão com que se referia a ela: “meu anjo”. Ao que ela retribuía chamando-o de “meu beijo de Deus”. Era um operário humilde, acostumado ao trabalho pesado, cujos únicos tesouros eram a esposa, a criança e o lar. Mas esse lar estava agora ameaçado por um luto prematuro, que já se via pairar sobre a família.

O lugar onde moravam era lindo. Recordo-me bem das laranjeiras, do pomar, do bicharedo doméstico. Havia até um pequeno riacho, com uma cascatinha. Não cito isto para evocar poesia, mas para descrever o visual daquelas cercanias, que compunham a vivência da pequena Ângela. Parece que tudo transbordava a presença de Deus, que se fazia perceber, principalmente, no coraçãozinho da menina – piedosíssima, porque piedosos eram os pais. Evidentemente, a filha era a resultante dessa formação e do seu ligame com a paróquia.

A pequena Ângela cursava o 3° ano escolar, sendo uma das melhores alunas. Um dia, por acaso, encontrei-a escrevendo no seu caderno de Ciências Naturais. Lembro-me bem de que ela estava estudando o desenvolvimento das plantas. Conversamos sobre o capricho de Deus em cuidar das flores. Então, ela me disse: “Parece que Deus olha bem mais para as flores do que para mim”. Era o seu jeito infantil de colocar o problema da doença. Enquanto a natureza, ao redor de Ângela, palpitava de vida e beleza, aquela criança, terna e pura, ia definhando aos poucos, a olhos vistos…

Como é difícil para cada um de nós reconhecer o amor de Deus nas provações!

Somente a força da fé pode nos sustentar, nesses momentos. Então, eu disse à minha pequena amiga: “Você nem imagina o quanto Deus olha para você. Ele conhece a sua doença, e aproveita disso para enriquecer você ainda mais.” Tenho certeza de que Ângela compreendeu aquelas palavras, pois chegou a me dizer: “Eu não estou zangada com Jesus. Aliás, eu nem o recebi, ainda, plenamente em mim, como vou receber no dia da Primeira Comunhão. Espero com ânsias esse dia.”

O preparo daquela criança para receber a Eucaristia foi dos melhores. A catequista ia à sua casa, apresentava-lhe o que hoje chamamos de “Encontro” de catequese, completo. E, como era uma menina singular, conseguia absorver tudo e ainda aprofundar o assunto. Os coleguinhas da paróquia fizeram a Primeira Comunhão antes de Ângela que, já acamada, iria receber Jesus Eucarístico em casa, na sala de visitas.

Nesse período, ocorreu um incidente grave. O pai de Marcela, uma das colegas de Ângela, havia sido preso. Marcada pela tristeza de ver o pai na cadeia, a menina ofereceu sua Primeira Comunhão pela libertação dele, o que, de fato, ocorreu alguns dias depois. Ângela parece ter sentido tanto a dor de Marcela, que a doença a abateu ainda mais fortemente.

Entrementes, chegou o dia esperado da Primeira Comunhão. Um grande número de crianças compareceu à sua casa. Apesar do clima de tristeza, todas cantaram com alegria e Ângela as acompanhou. O padre fez uma pequena homilia para elas e, de modo especial, para Ângela. A menina recebeu o Cristo Jesus, ladeada pelos pais, que comungaram junto com ela. Uma família toda unida pela Eucaristia.

Até o pároco, pouco hábil no trato com as crianças, havia sido tocado pela gentileza da menina. Ela dizia gostar do sacerdote, porque via nele a pessoa de Jesus. E quando ele lhe perguntou como se sentia, depois de ter recebido Nosso Senhor, na Eucaristia, Ângela deu uma resposta impressionante: “Recebi Jesus por inteiro, como Ele foi, como Ele é, hoje, no céu. E me sinto plena desse Jesus.” Naquele momento ela esqueceu sua doença, seus sofrimentos. Era Jesus que tomara conta dela por completo.

Mas, como diz Santa Teresinha, “até os dias mais lindos têm o seu ocaso”. Assim que passou a Primeira Comunhão, o ocaso de Ângela começou. Durante alguns dias, ela ainda foi à escola, mesmo que por uma hora, apenas. Finalmente, recebi a notícia de que ela estava às portas da morte. Deram-me o seu caderninho de Ciências Naturais, e lá estava escrito: “Este é o ponto 13. O ponto 14 não vou escrever mais aqui. Vou continuar a escrevê-lo lá no céu.” Chegada a sua hora, foi assistida pela Igreja, da melhor maneira possível. Tendo recebido o Viático, deixou este mundo como um anjo, que passou na vida de uma família para torná-la mais perfeita na fé, na aceitação do sofrimento, na entrega a Deus.

Olhando para esses fatos do passado, reflito sobre todas as crianças que se preparam para a Primeira Comunhão, a maioria, felizmente, gozando de boa saúde. Mas, é importante que nos lembremos daquelas que precisam superar muitos obstáculos, para receberem a mesma graça. Elas nos dão uma lição de amor ao Cristo e perseverança na fé. Esta foi, certamente, a missão da Ângela entre nós. É uma amiga que tenho, lá nos céus, e que deve me ajudar sempre, especialmente, nos momentos em que a palavra de Deus, aparentemente, se cala, a oração não consola e os problemas parecem não ter solução. Mas, quando se reconhece o amor infinito de Cristo, tudo adquire sentido e finalidade.

Ainda hoje, penso na Ângela muitas, muitas vezes… e tenho saudades. Lembro-me, também, da Marcela que, já adulta, deve seguir sua vida. Mas a minha amiguinha falecida conservará seu rostinho de criança, para sempre, na minha memória. Considerando-a já amadurecida para o céu, Deus a chamou para si. Na eternidade feliz, ela participa da Comunhão definitiva, com a Trindade Santa, e reza por nós.


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