por Dom Cláudio Hummes
Não somente as pessoas com vocação de especial consagração na Igreja, como sacerdotes e religiosos, são chamadas à santidade, mas todos nós, também os leigos. A santidade é vocação universal dos batizados e até mesmo de todas as pessoas de boa vontade, que seguem sua consciência. Esse princípio da liberdade de consciência, defendido pela Igreja, supõe a “boa vontade”, isto é, o empenho incessante de formar sua consciência, buscando a verdade e o bem. Assim o frisou o Concílio Vaticano II, dizendo: “Aqueles que sem culpa ignoram o Evangelho de Cristo e sua Igreja, mas buscam a Deus com coração sincero e tentam, sob influxo da graça, cumprir por obras a sua vontade conhecida através do ditame da consciência, podem conseguir a salvação eterna” (Lúmen Gentium 42).
“Sede perfeitos, como vosso Pai celeste é perfeito”, disse Jesus no Sermão da Montanha (Mt 5, 48). Podem buscar essa perfeição não somente alguns escolhidos. Pelo contrário, os caminhos da santidade são muitos e diferenciados, apropriados ao estado de vida, à vocação, profissão e personalidade de cada pessoa. Diz o papa no documento No Início do Novo Milênio (2001): “Os percursos da santidade são pessoais e exigem uma verdadeira e própria pedagogia da santidade, capaz de se adaptar ao ritmo dos indivíduos” (n° 31).
Em sua essência, para os cristãos a santidade significa viver coerentemente sua fé religiosa no dia-a-dia, em seu trabalho profissional e no seu estado de vida. assim, o matrimônio cristão e a conseqüente vida familiar são caminho e oportunidade de santidade para os casados. Igualmente, toda profissão honesta.
Aliás, a fé religiosa, no sentido bíblico do termo, não se resume a aderir intelectualmente à doutrina extraída da Bíblia, ainda que essa adesão faça parte da fé. Muito mais, fé significa aderir com toda a sua pessoa a Deus, entregar-se todo a ele, confiar incondicionalmente nele, ser capaz de investir toda a sua vida nele, deixar que ele invada nosso coração e nosso espírito e nos transforme. Portanto, trata-se de um envolvimento pessoal com ele.
Tal fé nasce normalmente de um encontro forte e pessoal com Deus, ao qual somos conduzidos por quem no-lo anuncia. Desse encontro, se tivermos abertura de coração, sairemos transformados e decididos a segui-lo. Esse seguimento nos leva a participar da comunidade dos que crêem e nesta faremos, então, a experiência comunitária de Deus, necessária para um fé integral. De fato, o Deus da Bíblia é Deus de um povo, com o qual fez aliança. Nós, os cristãos, cremos que Deus fez sua aliança definitiva conosco em Jesus Cristo, o qual cremos ser o Filho de Deus feito homem e o Messias prometido. Por isso, para nós, cristãos, o encontro com Deus se faz mediante o encontro forte, pessoal e comunitário com Jesus Cristo, mediador único entre Deus e os homens.
Daí se entende por que o seguimento pessoal e comunitário de Jesus comporta um duplo amor, qual seja amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo assim como Jesus nos amou. Nesse duplo amor, que se nutre mutuamente, está resumida toda a lei de Deus.
Como grande programa de santidade leiga, o Concílio Vaticano II propõe: “Faz-se mister que os leigos assumam a renovação da ordem temporal como sua função própria e nela operem de maneira direta e definida, guiados pela luz do Evangelho e pela mente da Igreja, e levados pela caridade cristã. Cooperem como cidadãos com os cidadãos, com sua competência específica e responsabilidade própria. Procurem por toda parte e em tudo a justiça do reino de Deus. de tal sorte deve ser reformada a ordem temporal, que, conservando-se integralmente suas leis próprias, se conforme aos princípios mais altos da vida cristã e se adapte às condições diferentes dos lugares, tempos e povos” (Ap. Act. n° 7).
Vê-se, pelo texto citado, como a Igreja Católica respeita a autonomia das realidades terrestres e temporais, ao mesmo tempo em que entrega aos leigos a tarefa de iluminá-la com critérios transcendentes. Uma coisa não contradiz a outra; pelo contrário, enaltece. Num outro momento, o mesmo Concílio Vaticano II explicita melhor esta autonomia das realidades terrestres, dizendo: “Se por autonomia das realidades terrestres entendemos que as coisas criadas e as próprias sociedades gozam de leis e valores próprios, a serem conhecidos, usados e ordenados gradativamente pelo homem, é necessário absolutamente exigi-la”. O concílio acrescenta que, pela própria condição da natureza criada, “todas as coisas são dotadas de fundamento próprio, verdade, bondade, leis e ordem específicas”, que requerem sua autonomia. E conclui que “o homem deve respeitar tudo isso, reconhecendo os métodos próprios de cada ciência e arte” e, “portanto, se a pesquisa metódica, em todas as ciências, proceder de maneira verdadeiramente cientifica e segundo as leis éticas, na realidade nunca será oposta à fé”. (Gaudium et Spes 36).
É nesse contexto que o falecido Papa Paulo VI disse que política é uma forma alta de exercer a caridade cristã, pois é serviço aos seres humanos e promoção do seu bem comum, respeitada a autonomia das realidades terrestres. O exercício da política pode ser um caminho de santidade. O mesmo poderia dizer-se do exercício da pesquisa científica.
Fonte: Revista Shalom Maná – Edições Shalom