No ano 1980, no terceiro do seu pontificado, o Papa São João Paulo II publicou a Carta Encíclica Dives in misericórdia que traduzimos ao português como “rico em misericórdia”. Esta encíclica é dedicada à reflexão sobre a misericórdia de Deus, aquilo que o Papa polonês considera “o mais admirável atributo do Criador e do Redentor”[1].
Este documento ganha particular importância quando se considera o momento do pontificado de São João Paulo II em que foi publicado, como também a relação profunda que existe entre o objeto de reflexão do documento e a vida do Sumo Pontífice.
A segunda encíclica do pontificado
Em primeiro lugar, cabe destacar que Dives in misericordia é a segunda Carta Encíclica do Pontífice. Sucedeu Redemptor hominis (o Redentor do homem), a primeira das quatorze encíclicas com as quais São João Paulo II viria presentear a Igreja ao longo dos seus vinte e seis anos de pontificado e que traça algumas linhas gerais da sua missão como Pastor da Igreja[2]. Este não é um detalhe sem importância. O fato de que a segunda Encíclica fosse dedicada à misericórdia divina, no meio a tantos temas importantes aos quais o Papa poderia se referir – e que de fato, abordará mais tarde – expressa a urgência com que o Santo Padre procura levar a misericórdia divina ao homem moderno. Trata-se de uma urgência verdadeiramente profética de um homem que compreende quão necessitado está o ser humano da misericórdia de Deus.
Nas primeiras páginas da Carta Encíclica, o Papa constata, com certo pesar, quão afastado está o homem contemporâneo do coração misericordioso de Deus:
“A mentalidade contemporânea, talvez mais do que a do homem do passado, parece opor-se ao Deus de misericórdia e, além disso, tende a separar da vida e a tirar do coração humano a própria ideia de misericórdia. A palavra e o conceito de misericórdia parecem causar mal-estar ao homem, o qual, graças ao enorme desenvolvimento da ciência e da técnica, nunca antes verificado na história, se tornou senhor da terra, a subjugou e a dominou. Tal domínio sobre a terra, entendido por vezes unilateral e superficialmente, parece não deixar espaço para a misericórdia.”[3]
Perante tal cenário e ciente da necessidade mais profunda do ser humano de se deixar reconciliar com Deus (cf. 2 Co 5,20), o Santo Padre expressa que sua intenção com a encíclica Dives in misericordia é colaborar com a aproximação do mistério do amor divino aos homens:
“é meu desejo, portanto, que estas considerações sirvam para aproximar mais de todos esse mistério e se tornem, ao mesmo tempo, um vibrante apelo da Igreja à misericórdia, de que o homem e o mundo contemporâneo tanto precisam.” [4]
A experiência pessoal do Papa com a misericórdia divina
Em segundo lugar, deve se pôr em realce a profunda experiência pessoal de São João Paulo II com a misericórdia. Não teríamos como fazer neste breve artigo uma recordação da vida do Santo polonês e destacar cada ponto no qual a sua experiência com a misericórdia divina fica em destaque. Podemos lembrar da juventude de Karol Wojtyla na qual viveu grandes sofrimentos, como o fato de passar grande parte da sua juventude no contexto da segunda guerra mundial (1939-1945)[5], durante a qual um dos países mais devastados foi a sua terra natal, a Polônia, e em 1941 perder o seu pai de um ataque cardíaco, ficando o jovem Karol – na época de apenas vinte anos – sem familiares imediatos[6]. No entanto, se percebe claramente em São João Paulo II um homem profundamente reconciliado com a sua história.
Como bispo de Cracóvia, em 1965, abriu uma investigação para a causa da freira polonesa Faustina Kowalska (1905-1938) e as revelações privadas que recebeu do próprio Jesus Cristo que giravam ao redor da misericórdia divina. O então bispo Wojtyla conhecia bem a doutrina da sua conterrânea, Santa Faustina, como também o conteúdo das aparições de Jesus à freira, dentre as quais destaca uma profecia da guerra e o consequente pedido de intercessão pela Polônia, que no ano seguinte à morte da santa seria devastada pelos terríveis golpes da guerra.
Outro evento importante a ser recordado é o atentado que já como sucessor de Pedro sofreu no dia 13 de maio (dia das aparições de Nossa Senhora de Fátima) de 1981, no qual recebeu 3 disparos com arma de fogo. Mais tarde, publicamente, o Santo Padre visitou na prisão o seu agressor e o perdoou publicamente. Este gesto profundo e comovente dá testemunho de um homem que teve uma experiência com a misericórdia e que por isso é misericordioso com os outros, encarnando admiravelmente a bem-aventurança: “Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”(Mt 5, 7).
São João Paulo II beatificou Santa Faustina no ano de 1993, e a canonizou no ano 2000. Viveu fervorosamente a devoção à Divina misericórdia e também colaborou enormemente com a sua difusão, instituindo a Festa da Misericórdia no domingo da oitava da Páscoa. Providencialmente, no ano 2005, São João Paulo II faleceu no sábado, quando já se celebrava as vésperas da Festa da Divina misericórdia.
O conteúdo de Dives in misericordia
Do conteúdo da Carta Encíclica Dives in misericordia muitos pontos importantes poderiam ser destacados. Trazemos aqui apenas dois. O primeiro é a misericórdia como atributo divino e o segundo a necessidade da misericórdia para este tempo.
A) Atributo divino
O Santo Padre inicia o documento com a perícope da carta de São Paulo aos cristãos de Éfeso, na qual Deus é descrito como “rico em misericórdia” (Ef 2, 4); esta constatação é a que dá o nome à encíclica. Em seguida, recorda que Deus, que até então permanecia invisível – novidade do judaísmo antigo no contexto da história das religiões[7] – torna-se visível na pessoa de Jesus Cristo. O Papa faz isto recordando as palavras de Jesus a Filipe: “quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9). Jesus Cristo revela Deus ao homem de uma forma plena e definitiva, incluindo o seu ser rico em misericórdia. Assim sendo, a comunicação da misericórdia divina na Pessoa de Jesus Cristo não se dá apenas nos seus discursos e ensinamentos, mas Nele mesmo, na sua Pessoa, no mistério da Encarnação do Deus invisível que se faz presente, visível, no meio dos homens. Baseado nesta noção, São João Paulo II afirma que Jesus Cristo é a própria misericórdia encarnada:
“Em Cristo e mediante Cristo, Deus, com a sua misericórdia, se torna particularmente visível; isto é, põe-se em evidência aquele atributo da divindade, que já o Antigo Testamento, servindo-se de diversos conceitos e termos, tinha definido “misericórdia”. Cristo atribui a toda a tradição do Antigo Testamento, quanto à misericórdia divina, um significado definitivo. Não somente fala dela e a explica com o uso de comparações e de parábolas, mas sobretudo Ele próprio a encarna e a personifica. Ele próprio é, em certo sentido, a misericórdia.”[8]
Certamente, Jesus não deixa de comunicar a misericórdia através do seu ensinamento. O Sumo Pontífice afirma que a misericórdia é um dos principais temas da pregação de Jesus[9] e recorda algumas das numerosas menções que o Senhor faz ao longo do Evangelho.
São João Paulo II faz também um breve e consistente percurso pelas Escrituras, vastamente recheado de importantes referências bíblicas, ao longo do qual põe em destaque alguns elementos importantes para a compreensão da mensagem da misericórdia. Apresenta, no capítulo terceiro da encíclica, a misericórdia do Antigo Testamento, onde recorda que no Êxodo Deus se revela a Moisés como um “Deus compassivo e misericordioso, lento para a cólera e cheio de bondade e de fidelidade” (Ex 34 ,6), introduz os termos hesed e rahamin e explica que na pregação dos profetas, a misericórdia significa uma especial potência do amor, que prevalece sobre o pecado e a infidelidade do povo eleito[10].
O Papa afirma que justiça e misericórdia não se contrapõem, antes que se reclamam mutuamente. Sendo a justiça a base para a caridade e o bem, a misericórdia não pode prescindir dela. Ao mesmo tempo, explica que a perfeição da justiça se encontra na misericórdia, que aparece como uma expressão da caridade, enquanto se trata do amor que permanece fiel e perdoa tudo, crê tudo, espera tudo, suporta tudo (cf. 1 Cor 13, 7). Sem a misericórdia, a justiça se torna rígida e limitada.
No capítulo quarto migra para o Novo Testamento e discorre sobre a Parábola do Filho Pródigo, que segundo São João Paulo II, expressa claramente a essência da misericórdia[11]. Já no capítulo cinco, como ponto mais alto do percurso bíblico proposto na Carta Encíclica, o Santo Padre se refere ao mysterium paschale, no qual, na cruz e na ressurreição, a misericórdia divina é revelada de modo mais excelente e perfeito[12]. Põe em destaque aqui, o Sumo Pontífice que desde o Getsêmani até o fim do cumprimento da função messiânica, a vida de Jesus se torna um constante apelo para a misericórdia divina, e que ao cumprir o desígnio divino, já expresso na profecia de Isaías, Jesus Cristo opera a plenitude da revelação e atuação da misericórdia divina. Ensina o Santo Padre:
“O mistério pascal é o ponto culminante desta revelação e atuação da misericórdia, que é capaz de justificar o homem, e de reestabelecer a justiça como realização daquele desígnio salvífico que Deus, desde o princípio, tinha querido realizar no homem e, por meio do homem, no mundo”[13].
Ainda no fim deste capítulo, o Santo Padre dedica umas palavras à Mãe da Misericórdia.
b) Necessidade para este tempo
O Santo Padre encerra a encíclica com algumas diretrizes pastorais, apresentando a misericórdia como o ponto mais perfeito da justiça, como mencionamos anteriormente, de modo que agir com misericórdia surge como uma imperiosa necessidade perante o cenário do mundo contemporâneo que reclama avidamente por justiça nos diversos âmbitos sociais.
Em virtude disso, o Papa faz um vigoroso apelo à Igreja. São João Paulo II pede que a Igreja professe e proclame a misericórdia, a fim de introduzir a misericórdia no mundo e que o homem possa ter acesso a ela: “a Igreja deve professar e proclamar a misericórdia divina em toda a verdade, tal como nos é transmitida pela Revelação” [14]. Contudo, o Sumo pontífice não só faz este pedido, como também condiciona, de certa maneira, a autenticidade da vida da Igreja a esta missão: “A Igreja vive uma vida autêntica quando professa e proclama a misericórdia” [15].
Que a misericórdia de Deus nos alcance como alcançou São João Paulo II, apóstolo da misericórdia, e nos permita viver a missão de professar e proclamar a misericórdia nos nossos dias!
Fontes:
– João Paulo II, Carta encíclica: Dives in misericórdia.
– Pedro Jesús Lasanta, Diccionario de teología y espiritualidad de Juan Pablo II, Madrid, 1996.
[1] DM 13
[2] Por exemplo, explica que a escolha de manter o nome escolhido pelo seu predecessor foi pelo fato de admitir ter a mesma missão que a a dele. Ora, o nome composto João Paulo é baseado nos nomes dos pontífices que deram início e conclusão ao Concílio Vaticano II: João XXIII e Paulo VI, respectivamente. Com este gesto, o Papa João Paulo I indicava que sua missão seria concretizar a doutrina do Concílio Vaticano II, objetivo que São João Paulo II também assumiu para si.
[3] DM 2
[4] DM 2
[5] Karol Wojtyla nasceu em 1920. Tinha apenas 19 anos quando explodiu a segunda guerra.
[6] A sua mãe faleceu quando ele tinha apenas 8 anos. Nos anos seguintes também perderia seus dois irmãos.
[7] Os povos pagãos consideravam as estátuas e imagens que adoravam como deuses em si mesmos, de modo que eram, em certa forma, “visíveis”. O Deus único cultuado por Israel, embora habitasse no meio do seu povo, não se encontrava numa estátua ou imagem, de modo que permanecia invisível e transcendente.
[8] DM 2
[9] Cf. DM 3
[10] DM 4
[11] DM 5
[12] DM 7
[13] DM 7
[14] DM 13
[15] DM 13
Sobre o Instituto Parresia
Inscreva-se na nossa Newsletter
Siga o perfil no Instagram
Cadastre-se também no Site
Ouça os Podcasts no Spotify
E-mail: institutoparresia@comshalom.org
Festa da Misericórdia 2021
Com grande amor pela Divina Misericórdia, a Rádio Shalom oferece mais uma vez neste ano de 2021, um momento de devoção, oração, formação e celebração. O local escolhido para a transmissão da Festa é a Capela das Santas Relíquias, que fica no piso superior da Rádio Shalom. A Capela conta com mais de 700 relíquias de santos das mais diversas ordens da Igreja, além de vários objetos sagrados. O altar principal da Capela é votivo à divina misericórdia, durante a transmissão, os participantes poderão contemplar a pintura de Jesus misericordioso, além de venerar as relíquias de primeiro grau de Santa Faustina Kowalska e São João Paulo II, grande difusores dessa festa.
[Faça a sua inscrição gratuita na Festa da Misericórdia AQUI]
Serviço:
Festa da Misericórdia Shalom 2021 on-line
Data: 11 de Abril de 2021
Horário: a partir das 14h30
Canais:
Rádio Shalom em Fortaleza e região nas frequências 91.7 FM ou 690 AM
Canal do youtube Rádio Shalom Oficial
Canal do YouTube da Comunidade Católica Shalom
Inscrição Gratuita e mais informações: https://comshalom.org/festadamisericordia