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São Tomás de Aquino

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Pecados capitais: uma elaboração teológica da experiência antropológica

Em sua doutrina sobre os pecados capitais – ou vícios capitais -, Tomás repensa a experiência acumulada sobre o homem ao longo de séculos. Se o filosofar do Aquinate é sempre voltado para a experiência e para o fenômeno, mais do que em qualquer outro campo é quando trata dos vícios que seu pensamento mergulha no concreto, pois, citando o sábio (pseudo-) Dionísio, “malum autem contingit ex singularibus defectis” – para conhecer o mal é necessário voltar-se para os modos concretos em que ele ocorre. Assim, é freqüente encontrarmos nas discussões de Tomás sobre os vícios – para além da aparente estruturação escolástica – expressões de um forte empirismo como: “Contingit autem ut in pluribus…” (o que realmente acontece na maioria dos casos…).

A doutrina dos vícios capitais é fruto de um empenho de organizar a experiência antropológica cujas origens remontam a João Cassiano e Gregório Magno, que têm em comum precisamente esse voltar-se para a realidade concreta.

Cassiano – bem poderia ser escolhido o padroeiro dos jornalistas – é o homem que, em torno do ano 400, percorreu os desertos do Oriente para recolher – em “reportagens” e entrevistas – as experiências radicais vividas pelos primeiros monges; já o papa Gregório (não por acaso cognominado Magno), cuja morte em 604 marca o fim do período patrístico, é um dos maiores gênios da pastoral de todos os tempos.

Ambos tratam de fazer uma tomografia da alma humana e, no que diz respeito aos vícios, surge a doutrina dos pecados capitais, que encontra sua máxima profundidade e sua forma acabada no tratamento que lhe dá Tomás. Essa doutrina – que, como tantas outras descobertas antropológicas dos antigos, está hoje esquecida – bem poderia ajudar ao homem contemporâneo em sua desorientação moral e antropológica. Seja como for, a Igreja ainda fala em seu novo Catecismo da doutrina dos sete pecados capitais, fruto da “experiência cristã” (ponto 1866).

Os vícios capitais na enumeração de Tomás [2] são: vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia. Hoje, em lugar da vaidade, a Igreja coloca a soberba e em lugar da acídia é mais freqüente encontrarmos a preguiça na lista dos vícios capitais. Isto se deve a que a soberba é considerada por Tomás como um pecado, por assim dizer, “mega-capital”, fora da série e, portanto, prefere falar em vaidade (inanis gloria, vanglória). Já a substituição da acídia pela preguiça parece realmente um empobrecimento, uma vez que, como veremos, a acídia medieval – e os pecados dela derivados – propiciam uma clave extraordinária precisamente para a compreensão do desespero do homem contemporâneo.

Assim, toda uma milenar experiência sobre o homem traduz-se em Tomás em sete vícios capitais, que arrastam atrás de si “filhas”, “exércitos”, em total cerca de cinqüenta outros vícios, cujos nomes podem soar a nossos ouvidos hoje como algo estranho, como é o caso da já citada “acídia”. E precisamente aí encontra-se nossa dificuldade contemporânea: é-nos difícil acessar as realidades ético-antropológicas por falta de linguagem: como se tivéssemos que transmitir um jogo de futebol, mas sem poder contar com palavras como: pênalti, carrinho, grande área, cartão, impedimento etc.

Não se pense que com isto estamos afirmando que Tomás empregue uma terminologia reservada a especialistas (as dificuldades decorrem da distância cultural-lingüística e não de tecnicismos). Não! Ele se vale da linguagem comum de sua época, tão espontânea como, afinal, é para nós o léxico do futebol. Assim, quando lermos os textos de Tomás sobre os vícios capitais, o leitor não estaria longe da realidade se os retraduzisse em nossa linguagem popular [3] . Por exemplo, a filha da inveja chamada sussurratio (e que traduzimos academicamente por murmuração) é, pura e simplesmente, a fofoca de inveja.

Comecemos por indicar o que significa vício capital. S. Tomás ensina que recebem este nome por derivar-se de caput: cabeça, líder, chefe (em italiano ainda hoje há a derivação: capo, capo-Máfia); sete poderosos chefões que comandam outros vícios subordinados.

Nesse sentido, os vícios capitais são sete vícios especiais, que gozam de uma especial “liderança” [4] . O vício (e o vício capital compromete muitos aspectos da conduta) é uma restrição à autêntica liberdade e um condicionamento para agir mal.

Tomás, após analisar cada vício capital, trata das “filhas” desse vício, os maus hábitos que dele decorrem.

A soberba, um pecado supra-capital

Como dizíamos, Tomás situa a soberba fora e acima da lista dos vícios capitais.

Após afirmar o princípio básico – “todo pecado se fundamenta em algum desejo natural e o homem, ao seguir qualquer desejo natural, tende à semelhança divina, pois todo bem naturalmente desejado é uma certa semelhança com a bondade divina” -, e que o pecado é desviar-se da reta apropriação de um bem, Tomás lembra que, se a busca da própria excelência é um bem, a desordem, a distorção dessa busca é a soberba que, assim, se encontra em qualquer outro pecado: seja por recusar a superioridade de Deus que dá uma norma, norma esta recusada pelo pecado, seja pela projeção da soberba que se dá em qualquer outro pecado.

Ao acumular indevidamente riquezas, por exemplo, é a afirmação da excelência do eu – pela posse – o que se busca. Assim, a soberba, mais do que um pecado capital, é rainha e raiz de todos os pecados. “A soberba geralmente é considerada como mãe de todos os vícios e, em dependência dela, se situam os sete vícios capitais, dentre os quais a vaidade é o que lhe é mais próximo: pois esta visa manifestar a excelência pretendida pela soberba e, portanto, todas as filhas da vaidade têm afinidade com a soberba” (De Malo 9, 3, ad 1).

Uma explicação especial para a ira e a acídia

Dois dos pecados capitais requerem uma cuidadosa explicação para a boa compreensão do leitor contemporâneo são a acídia, algo mais do que a preguiça, e a ira, que nem sempre é pecado, uma vez que pode também atuar a favor da virtude.

Valemo-nos aqui do clássico de Josef Pieper Virtudes Fundamentais (Lisboa, Aster, 1960). Comecemos pela acídia – realidade mais atual do que nunca e incrivelmente esquecida! – analisada no capítulo “Concupiscência dos olhos”:

ACÍDIA E CURIOSITAS (pp. 280-2):

“Há um desejo de ver que perverte o sentido original da visão e leva o próprio homem à desordem. O fim do sentido da vista é a percepção da realidade. A ‘concupiscência dos olhos’, porém, não quer perceber a realidade, mas ver. Agostinho diz que a avidez dos gulosos não é de saciar-se, mas de comer e saborear; e o mesmo se pode aplicar à curiositas e à ‘concupiscência dos olhos’. A preocupação deste ver não é a de apreender e, fazendo-o, penetrar na verdade, mas a de se abandonar ao mundo, como diz Heidegger em seu Ser e Tempo. Tomás liga a curiositas à evagatio mentis, ‘dissipação do espírito’, que considera filha primogênita da acídia. E a acídia é aquela tristeza modorrenta do coração que não se julga capaz de realizar aquilo para que Deus criou o homem. Essa modorra mostra sempre sua face fúnebre, onde quer que o homem tente sacudir a ontológica e essencial nobreza de seu ser como pessoa e suas obrigações e sobretudo a nobreza de sua filiação divina: isto é, quando repudia seu verdadeiro ser! A acídia manifesta-se assim, diz Tomás, primeiramente na ‘dissipação do espírito’ (a sua segunda filha é o desespero e isto é muito elucidativo). A ‘dissipação do espírito’ manifesta-se, por sua vez, na tagarelice, na apetência indomável ‘de sair da torre do espírito e derramar-se no variado’, numa irrequietação interior, na inconstância da decisão e na volubilidade do caráter e, portanto, na insatisfação insaciável da curiositas.

“A perversão da inclinação natural de conhecer em curiositas pode, conseqüentemente, ser algo mais do que uma confusão inofensiva à flor do ser humano. Pode ser o sinal de sua total esterilidade e desenraizamento. Pode significar que o homem perdeu a capacidade de habitar em si próprio; que ele, na fuga de si, avesso e entediado com a aridez de um interior queimado pelo desespero, procura, com angustioso egoísmo, em mil caminhos baldados, aquele bem que só a magnânima serenidade de um coração preparado para o sacrifício, portanto senhor de si, pode alcançar: a plenitude da existência, uma vida inteiramente vivida. E porque não há realmente vida na fonte profunda de sua essência, vai mendigando, como outra vez diz Heidegger, na ‘curiosidade que nada deixa inexplorado’, a garantia de uma fictícia ‘vida intensamente vivida’.”

A AMBIVALÊNCIA DA IRA (pp. 272-3):

“É absolutamente sem razão que na linguagem corrente os conceitos de ‘sentidos’, ‘paixão’, ‘concupiscência’ sejam compreendidos como ‘sensualidade’, ‘paixão má’ e ‘concupiscência desordenada’. Limitações como estas, de um significado originalmente muito mais amplo, esquecem o mais importante, isto é, que todos estes conceitos não possuem apenas um sentido negativo, mas que, muito pelo contrário, estão neles representadas forças das quais a natureza humana essencialmente se estrutura e vive.

A consciência comum cristã costuma, sempre que se fala de ira, ter em mente apenas o aspecto da intemperança, o elemento desordenador e negativo. Mas tanto como ‘os sentidos’, e a ‘concupiscência’, a ira pertence às máximas potencialidades da natureza humana. Essa força, isto é, irar-se, é a expressão mais clara da energia da natureza humana. Conseguir uma coisa difícil de alcançar, superar uma contrariedade: eis a função desse apetite sempre pronto a entrar em campo quando um bonum arduum, ‘um bem difícil’ deva ser conquistado. Daí que Tomás afirme: ‘A ira foi dada aos seres dotados de vida animal para que removam os obstáculos que inibem o apetite concupiscível de tender aos seus objetivos, seja por causa da dificuldade de alcançar um bem, seja pela dificuldade de superar um mal’ (I-II, 23, 1 ad 1). A ira é a força que permite atacar um mal adverso (I-II, 23, 3); a força da ira é a autêntica força de defesa e de resistência da alma (I, 81, 2).

“Portanto, condenar o apetite irascível, como se fosse intrinsecamente mau, e devesse ser ‘reprimido’, equivale a condenar os ‘sentidos’, a ‘paixão’ e a ‘concupiscência’; nos dois casos se ultrajam as maiores energias da nossa natureza, ofende-se o Criador que, como diz a liturgia da Igreja: ‘estruturou maravilhosamente a dignidade da natureza humana’.”

Os pecados capitais, um por um

O De Malo – do qual apresentamos uma seleção de artigos dedicados aos vícios capitais da Inveja e da Avareza – parecem ser questões disputadas em Roma durante o ano letivo 1266-67 ou, segundo outros críticos contemporâneos, em Paris, no ano letivo 1269-70. Boa parte desse tratado é dedicada aos pecados capitais e se articula com a discussão dos mesmos na secunda parte da Summa Theologica (escrito não antes do De Malo) [5] . A quaestio disputata, como bem salienta Weisheipl, integra a própria essência da educação escolástica: “Não era suficiente escutar a exposição dos grandes livros do pensamento ocidental por um mestre; era essencial que as grandes idéias se examinassem criticamente na disputa” [6] . Uma quaestio disputata está dedicada a um tema – como por exemplo tal vício capital – e divide-se em artigos, que correspondem a capítulos ou aspectos desse tema, que é discutido pelo confronto de objeções e contra-objeções, permeado de um corpus, no qual o mestre – no caso Tomás – dá a sua solução ao problema. São precisamente alguns destes corpus que oferecemos ao leitor.

S. Tomás começa – De Malo, 8, 1 – por discutir as razões pelas quais se define o conceito de vício capital e conclui que isto se dá pela articulação objetiva de finalidades: o pecado capital, pecado “capitão”, impõe uma cadeia de motivações. Assim por exemplo, à avareza estão subordinadas a fraude e o engano. A análise dessa ordo de fins estabelece sete linhas fundamentais de causalidade: os sete vícios capitais.

A seguir – De Malo, 8, 2 -, discute o caso da soberba, se se trata de um pecado específico ou, pelo contrário, um pecado geral sem objeto próprio, a forma de qualquer pecado. Um pecado se especifica por seu objeto próprio: um bem definido que o pecado perverte. Assim, Tomás começa por enunciar este seu princípio ético fundamental: “todo pecado se fundamenta em algum desejo natural e o homem, ao seguir qualquer desejo natural, tende à semelhança divina, pois todo bem naturalmente desejado é uma certa semelhança com a bondade divina”.

Ora, há um bem específico, “a própria excelência”, distorcidamente buscado pela soberba que, assim, se constitui em pecado específico. Mas esse bem é tão amplo que, de certo modo, a soberba continua presente nos outros pecados e Tomás prefere não incluir a soberba na lista dos pecados capitais, mas, como dizíamos, considerá-la um pecado, por assim dizer, supra-capital, fora da série.

E assim – De Malo, 9, 1 -, Tomás, em lugar da soberba, prefere falar da vanglória (vã-glória) ou vaidade como pecado capital. Ao discutir os conceitos de vã e de glória, fala desta como esplendor (daí nossos adjetivos: brilhante, ilustre, esplêndido etc.). A perversão do bem da glória é precisamente a glória vã da vaidade.

Em outro artigo da questão da vaidade – De Malo, 9, 3 -, Tomás – como fará também com todos os outros vícios capitais – analisa as filhas, os sete vícios derivados da vaidade: “Sendo o fim próprio da vaidade a manifestação da própria excelência, chamam-se filhas da vaidade aqueles vícios pelos quais – direta ou indiretamente – o homem tende a manifestar a própria excelência.”

O vício capital que Tomás analisa a seguir – De Malo, questão 10 – é a inveja. E começamos pelo artigo 2, em que Tomás discute – tal como o faz com os outros vícios capitais – se se trata de um pecado mortal. No artigo seguinte da questão sobre a inveja – art. 3 – apresentam-se as cinco filhas da inveja.

À acídia é dedicada a questão 11 do De Malo e começamos pelo artigo 1, que mostra que a acídia é pecado, e, em seguida, apresentamos o tratamento dado pela Summa Theologica II-II q. 35, a.4. à acídia como pecado capital e suas filhas: desespero, pusilanimidade, torpor, rancor, malícia, divagação da mente.

A questão 12 do De Malo é destinada à ira e às suas “filhas”. É extremamente valiosa a reflexão do Aquinate sobre o valor positivo da ira enquanto impulso vital na busca de um bem. E há aqui uma pista para um possível antídoto aos males da acídia.

A questão 13 do De Malo discute a avareza. Uma de suas “filhas” é a traição, o que faz Tomás atentar para o fato de que Judas, que trazia as contas do grupo dos apóstolos de Cristo, traiu o Mestre porque, como diz o Evangelho, roubava da bolsa comum.

A questão 14 do De Malo contempla a gula, vício que, como os demais, é a desordem de um desejo natural, no caso, o de comer e beber.

Por fim, a luxúria. Selecionamos, além de uma passagem correspondente à questão 15 do De Malo, trechos de Summa Theologica II-II q. 153. É um sinal preocupante já ter ouvido jovens de hoje dizerem que luxúria é um apego ao luxo. A perda do conceito e da palavra denunciam, de modo patético, a perda mesma da consciência do problema.

Fonte: [1] Trechos de estudo introdutório a traduções de Tomás, originalmente publicado em: Tomás de Aquino – Sobre o Ensino (De Magistro) & Os Sete Pecados Capitais, São Paulo, Martins Fontes, 2001.

[2] . A classificação de Tomás difere ligeiramente das de Cassiano e Gregório.

[3] . Jocosamente, propomos um exemplo caricaturesco dessa leitura. Tomemos o seguinte trecho de Tomás: “(Como já dissemos, vício capital é aquele do qual procedem – a título de finalidade – outros vícios). Ora, acontece freqüentemente que, pelo fim da ira, isto é, por tomar vingança, se cometam muitas ações fora da ordem moral e, assim, a ira é vício capital”. E agora façamos dele uma versão “popular”: “Pô, vira e mexe o cara fica fulo da vida porque aprontaram feio com ele, e como ele não tá a fim de deixar barato pode acabar forçando e pisar na bola da moral. Portanto, a ira é pecado cabeça de chave”.

[4] . Nos dois sentidos da palavra: líder – o primeiro lugar; e líder – aquele que dirige, leader.

[5] . Para a datação das obras de Tomás, veja-se Weisheipl, James E. Tomás de Aquino, vida, obras y doctrina, Pamplona, Eunsa, 1994.

[6] . Op. cit., p. 235.


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