Existe algo mais reconfortante do que retornar para o lugar onde somos amados?
Tenho me perguntado várias vezes durante essa quaresma sobre isso. Em muitos momentos lembro-me que esse tempo nada mais é que um caminho de retorno, com todos os desafios próprios desse movimento, mas com a certeza de que não há destino mais feliz.
Mas então o que quer dizer retornar? Essa palavra parece apontar para algo tão imaturo como se quiséssemos “reviver” a nossa infância ou apegar-se a um passado distante, como se fosse impossível viver algo bom no tempo presente e como se tudo o que ocorre atualmente não tivesse valor diante do lugar de onde viemos. Desta forma, retornar parece dizer que queremos viver como antes, como se estivéssemos prontos para não sermos mais o que somos, deixarmos tudo em branco e vivermos de novo como o que um dia vivemos.
Então passamos a buscar nossa vida de oração como se estivéssemos constantemente no Kerigma, como casados procuremos viver a vida comunitária e apostólica nos moldes da nossa solteirice, como ex “líderes” da obra buscamos a admiração por meio das redes sociais como uma forma de encontrar novamente aquilo que nos aproximava da “casa” do Pai. Que triste não percebermos que no fundo gastamos mais tempo tentando voltar à casa dos nossos sentimentos, os mesmos que nos afastaram da nossa casa, ao invés de voltar aos braços dO amor.
Vale então fazermos memória dos grandes retornos que podemos encontrar na história de salvação para respondermos a última pergunta: o caminho de Abraão, o caminho de Moisés, o caminho de Cristo, a parábola do Pai das misericórdias e a história do jardim.
O caminho de Abraão
“Deixa tua terra, tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que eu te mostrar.” Gen 12, 1
Que coisa mais estranha parece ser o pedido de Deus a Abrão (ainda não era Abraão), sair do aconchego da família, onde provavelmente tinha sua comodidade, para ir a um lugar que ele ainda vai mostrar! Veja, Deus sequer diz exatamente para onde ele deve ir! Mas faz uma promessa: “(dali) Farei de ti uma grande nação; eu te abençoarei e exaltarei o teu nome, e tu serás uma fonte de bênçãos”.
O que em um primeiro momento parece ser algo sem lógica, na verdade é um caminho de volta para casa que só é perceptível ao reconhecer que a voz que lhe falava era familiar, era a voz do Pai que um dia, antes que nascido, o tinha falado. Assim, sabendo que aquela era uma voz da sua casa, sentia-se seguro de escolher o caminho que lhe era apontado.
Mas Deus não lhe apontava um caminho de retorno para o jardim do Eden, efetivamente, mas lhe daria uma nova terra! Era um caminho de retorno, mas não para o mesmo lugar, mas com uma nova promessa, não se retornava mais para o lugar físico da criação. O Senhor tinha uma aliança diferente, ele queria uma nova fecundidade para formar uma nova humanidade. Deus chama Abrão de volta para cumprir uma missão e ali encontrar seu lugar na casa do Pai.
O caminho de Moisés
“Vai, eu te envio ao faraó para tirar do Egito os israelitas, meu povo” Ex 3, 10
Se um dia Abraão (agora podemos chamar de Pai dos povos) levou o povo a casa do Pai, a união e aliança com Deus, esse mesmo povo um dia se afastou da voz daquele que antes já havia afirmado a promessa. A multidão de Abraão quebra a promessa ao se curvar diante da “providência” de outros deuses, especialmente do faraó, e que aos poucos chega a apagar da memória que só existia ali um povo por conta da própria vontade do Senhor.
Então, Moisés escolhe fazer a vontade do Pai. Era tempo de retornar à casa dos hebreus, é tempo de escolher adorar somente ao Deus de Abraão e por suas esperanças naquele que antes tinha lhes dado o lugar de encontro com Ele. O lugar onde iriam ouvir sua voz novamente estava diante deles.
A coisa mais intrigante de todo esse caminho de volta de Moisés para a terra de Abraão é que antes de tudo se trata de abandonar todos os ídolos e todas as seguranças a ponto de confiar somente no Pai! Primeiro Deus destrói o “poder” de cada um dos deuses egípcios, como o Nilo, o tempo, a agricultura, chegando até ao faraó, depois vai reconstruindo a memória da providência de Deus: primeiro afastando a necessidade das “cebolas do Egito” depois a necessidade de adorar “bezerros de ouro”. O retorno de Moisés a casa do Pai é marcado pelo fim da idolatria e das comodidades da vida anterior, até mesmo das falsas espiritualidades.
O caminho de Cristo
“Perguntou-lhe Simão Pedro: “Senhor, para onde vais?”. Jesus respondeu-lhe: “Para onde vou, não podes seguir-me agora, mas tu seguirás mais tarde”.” Jo 13, 36
“Na casa de meu Pai há muitas moradas. Não fora assim, e eu vos teria dito; pois vou preparar-vos um lugar.” Jo 14, 2
Que vida mais bela foi a de Jesus, uma vida voltada para a casa do Pai! Nela, todos nós vivemos com Cristo o grande retorno, é a síntese da nossa própria vida, o exemplo, mas também a situação concreta de retorno: a escolha de em todos os momentos fazer a vontade de Deus.
Melhor, o retorno de Cristo nos mostra o que realmente é retornar ao Pai: “E aquele que ama será amado por meu Pai, e eu amarei e me manifestarei a ele.” O retorno nada mais é que se decidir por amar a Deus e deixá-lo manifestar em nossa vida o seu amor, deixar que Cristo se manifeste em nossa vida.
A parábola do Pai das misericórdias
“Vou me levantar e irei a meu pai, e lhe direi: Meu pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me como a um de teus empregados.” Lc 15, 18-19
O jovem sabe que o retorno à casa não é mais um retorno ao mesmo lugar de onde veio antes, mas é o encontro com o Pai! Ele não quer voltar a sua casa antiga, mas a casa onde está o seu Pai misericordioso, pois sabe que ali até mesmo os empregados são tratados com misericórdia.
Que surpresa! O Pai estava de prontidão todos os dias em que estava longe para o acolher, mal o vê e corre ao seu encontro. A beleza de tudo é que ao retornar, esperando que estivesse um lugar abaixo, como um dos empregados, não só lhe são restituídos todos os títulos, mas também lhe é dado a melhor veste e uma grande festa!
No retorno à casa do Pai nunca voltamos ao mesmo lugar, sempre haverá uma novidade do amor de Deus. Nem o nosso coração será o mesmo, pois mudamos no caminho de volta, reconhecemos com mais clareza a providência e o amor de Deus; nem minha relação com o Pai é igual a de antes, ela passa a ser imbuída de um novo amor, restituída a dignidade ela sempre é elevada. O filho que retorna a casa do Pai é sempre elevado pelo amor misericordioso de Deus, nunca retorna ao mesmo patamar.
O nosso caminho
Terminando como começamos, retornar à casa de Deus é retornar ao lugar onde somos perfeitamente amados, mas nem sempre significa retornar ao que éramos um dia. Pelo contrário, retornar significa avançar, crescer com o chamado ATUAL de Deus e encontrar a mesma casa, mas renovada com tudo aquilo que o Pai permitiu que vivêssemos a fim de nos acolher, ainda que estejamos ao longe, em seus braços misericordiosos.
Rafael Rosemberg
Missionário da Comunidade de Aliança