O fato: Brittany Maynard era uma jovem norte-americana de 29 anos, que sofria de um agressivo câncer no cérebro. Seu problema acabou tornando-a conhecida em seu país e no mundo, pela decisão que tomou, de realizar um suicídio assistido. (Lembro que eutanásia é a prática em que alguém, para acabar com o sofrimento de uma pessoa que sofre, antecipa a sua morte. No suicídio assistido, uma pessoa pede para ser acompanhada no momento em que coloca fim à própria vida, normalmente através de algum produto farmacêutico). Brittany marcou o dia de seu suicídio: 1º de novembro p.p. No dia seguinte, a notícia de seu falecimento foi divulgada.
Embora não concorde com a decisão dessa jovem, não me cabe julgá-la. Deus, que tudo sabe e penetra no mais profundo da consciência humana, é o único que tem condições de fazer um julgamento completo e correto a respeito de cada decisão humana. O que sabemos é que Brittany sofreu muito nos últimos meses de sua vida e o mínimo que podemos fazer é respeitá-la. Isso não impede, contudo, que observemos que suicidar-se não é uma coisa boa, pois, como lembrou Mons. De Paula, presidente da Pontifícia Academia para a Vida, esse gesto equivale a dizer um “Não” à própria vida e a tudo o que significa nossa missão no mundo.
A reação: Um outro norte-americano – Phillip Johnson, de 30 anos –, soube da decisão de Brittany. Também ele havia sido diagnosticado com câncer cerebral. Ele recorda que, após ter visto as imagens de seus exames, foi para a capela da base militar em que servia [Marinha], caiu no chão chorando e perguntou a Deus: “Por que eu?” No dia 22 de outubro último, escreveu à jovem Brittany: “Nossas vidas valem a pena serem vividas, inclusive com câncer cerebral”. Para ele, um sofrimento como o seu não diminui o seu valor como pessoa: “Minha vida significa algo para mim, para Deus e para a minha família e amigos e, salvo uma recuperação milagrosa, continuará significando muito, mesmo depois que estiver paralisado em uma cama de hospital. Minha família e meus amigos me amam por quem sou, não só pelos traços de personalidade que lentamente irão embora, se esse tumor continuar avançando”. Johnson manifestava compreender a tentação daquela jovem, de acabar com a própria vida, mas, sofrendo já há seis anos (a média de tempo de sobrevivência de alguém acometido com seu tipo de câncer é de 18 meses), considera uma graça especial o tempo adicional que está vivendo. Testemunha já ter provado “incontáveis milagres” através de sua doença – por exemplo: a possibilidade que teve de servir outras pessoas com doenças terminais e a descoberta de que o sofrimento, que faz parte da condição humana, não deve ser desperdiçado ou interrompido por medo: “Não devemos procurar a dor em si mesma, mas o nosso sofrimento pode ter grande significado, se tentamos uni-lo à Paixão de Cristo e oferecê-lo pela conversão de outros. Ainda fico triste. Ainda choro. Ainda peço a Deus que mostre a Sua vontade através de todo esse sofrimento. Sei, contudo, que não estou sozinho nesta hora”.
Brittany Maynard e Phillip Johnson fizeram-me recordar uma canção e uma proposta.
A canção: Gonzaguinha, que faleceu num acidente automobilístico 23 anos atrás, deixou-nos uma canção (“O que é, o que é?”), que é exaltação à vida: “Ah, meu Deus! Eu sei, eu sei / que a vida devia ser/ bem melhor e será/ mas isso não impede/ que eu repita/ é bonita, é bonita/ e é bonita!”
A proposta: Era por volta do ano 60 dC. O apóstolo Paulo, da prisão em que estava, escreveu aos cristãos de Colossas (na Turquia de hoje), testemunhando: “Alegro-me nos sofrimentos que tenho suportado por vós e completo, na minha carne, o que falta às tribulações de Cristo em favor do seu Corpo que é a Igreja” (Cl 1,24). Paulo não era nem estoico nem masoquista. Ele havia compreendido, no entanto, que podemos oferecer nossa vida pelos outros. Havia compreendido, também, que o que salva não é o sofrimento; o que salva é o amor. E igualmente no sofrimento o amor pode se manifestar.
Dom Murilo S.R. Krieger
Arcebispo de São Salvador da Bahia (BA) e Primaz do Brasil