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Subida ao Monte Carmelo

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“EM SUA FONTE, A CASTIDADE SE CONSTITUI NO AMOR ESPONSAL AO SENHOR E NO DESEJO DE AMÁ-LO E SERVÍ-LO COMO ESPOSO DE NOSSAS ALMAS, AMANDO-O COM UM CORAÇÃO INDIVISO.” (ECCSH, 136)

Para atingir este estado sublime de união com Deus, é indispensável à alma atravessar a noite escura da mortificação dos apetites, e da renúncia a todos os prazeres deste mundo. As afeições às criaturas são diante de Deus como profundas trevas, de tal modo que a alma, quando aí fica mergulhada, torna-se incapaz de ser iluminada e revestida da pura e singela claridade divina. A luz é incompatível com as trevas, como no-lo afirma São João ao dizer que as trevas não puderam compreender a luz (Jo 1,5).

A razão está em que dois contrários, segundo o ensinamento da filosofia, não podem subsistir ao mesmo tempo num só sujeito. Ora, as trevas, que consistem no apego às criaturas, e a luz, que é Deus, são opostas e dessemelhantes. É o pensamento de S.Paulo escrevendo aos coríntios: “Que pode haver de comum entre a luz e as trevas?” (2Cor 6,14). Portanto, se a alma não rejeita todas as afeições às criaturas, não está apta a receber a luz da união divina.

Para dar mais evidência a esta doutrina, observemos que o afeto e o apego da alma à criatura a torna semelhante a esta mesma criatura. Quanto maior a afeição, maior a identidade e semelhança, porque é próprio do amor fazer o que ama semelhante ao amado. Davi, falando dos que colocavam o amor nos ídolos, disse: “Sejam semelhantes a eles os que os fazem; e todos os que confiam neles” (Sl 113,8).

Assim, o que ama a criatura desce ao mesmo nível que ela, e desce, de algum modo, ainda mais baixo, porque o amor não somente iguala, mas ainda submete o amante ao objeto do seu amor. Deste modo, quando a alma ama alguma coisa fora de Deus, torna-se incapaz de se transformar nele e de se unir a ele. A baixeza da criatura é infinitamente mais afastada da soberania do Criador do que as trevas o são da luz. Todas as coisas da terra e do céu, comparadas com Deus, nada são, como disse Jeremias: “Olhei para a terra, e eis que estava vazia, e era nada; e para os céus, e não havia neles luz” (Jr 4,23).

Dizendo ter visto a terra vazia, dá a entender todas as criaturas e a própria terra serem nada. Acrescentando: Contemplei o céu e não vi luz – quer significar que todos os astros do céu comparados com Deus são puras trevas. Daí se conclui que todas as criaturas nada são, e as inclinações que nos fazem pender para elas, menos que nada, pois são um entrave para a alma e a privam da mercê da transformação em Deus; assim como as trevas, igualmente, por serem a privação da luz, são nada e menos que nada. Quem está nas trevas não compreende a luz; da mesma forma, a alma colocando sua afeição na criatura não compreenderá as coisas divinas; porque até que se purifique completamente não poderá possuir Deus neste mundo pela pura transformação do amor, nem no outro pela clara visão. Para esclarecer ainda mais esta doutrina, vejamos algumas particularidades.

Todo o ser das criaturas comparado aos ser infinito de Deus nada é. Resulta daí que a alma, dirigindo suas afeições para o criado, nada é para Deus, e até menos que nada, pois conforme já dissemos, o amor a assemelha e torna igual ao objeto amado e a faz descer ainda mais baixo. Esta alma tão apegada às criaturas não poderá de forma alguma unir-se ao ser infinito de Deus, porque não pode existir conveniência entre o que é e o que não é. Descendo a alguns exemplos particulares, vemos que toda a beleza das criaturas comparada à infinita beleza de Deus não passa de suma fealdade, segundo diz Salomão nos Provérbios: “A graça é enganadora e vã a formosura” (Provérbios, 31-30).

A alma, presa pelos encantos de qualquer criatura, é sumamente feia diante de Deus, e não pode de forma alguma transformar-se na verdadeira beleza, que é Deus, pois a fealdade é de todo incompatível com a beleza. Todas as graças e todos os encantos das criaturas, comparados às perfeições de Deus, são disformes e insípidos. A alma, subjugada por seus encantos e agrados, torna-se, por si mesma, desgraciosa e desagradável aos olhos de Deus, sendo, deste modo, incapaz de unir-se à sua infinita graça e beleza. Porque o feio está separado do infinitamente belo, por imensa distância.

E toda a bondade das criaturas posta em paralelo com a bondade infinita de Deus mais parece malícia. Ninguém é bom, senão só Deus (Lc 18,19). A alma, prendendo seu coração aos bens deste mundo, torna-se viciosa aos olhos de Deus; e assim como a malícia não pode entrar em comunhão com a bondade, também esta alma não se poderá unir perfeitamente ao Senhor, que é a bondade por essência. Toda a sabedoria do mundo, toda a habilidade humana comparada à sabedoria infinita de Deus são pura e suprema ignorância. S. Paulo o ensina aos coríntios: “A sabedoria deste mundo é estultícia diante de Deus”(ICor 3,19).

A alma, apoiando-se em seu saber e habilidade para alcançar a união com a sabedoria divina, jamais a alcançará, permanecendo muito afastada, pois a ignorância não sabe o que seja a sabedoria, ensinando S. Paulo que tal sabedoria parece a Deus estultícia. Aos olhos de Deus, os que crêem algo saber são os mais ignorantes. O Apóstolo, falando desses homens, teve razão em dizer aos romanos: “Porque atribuindo-se o nome de sábios se tornaram estultos” (Rm1,22). Só chegam a adquirir a sabedoria divina aqueles que, assemelhando-se aos pequeninos e ignorantes, renunciam ao próprio saber para caminhar com amor no serviço de Deus.

S. Paulo nos ensina esta espécie de sabedoria quando diz: “Se algum dentre vós se tem por sábio neste mundo, faça-se insensato para ser sábio; porque a sabedoria deste mundo é uma estultícia diante de Deus” (ICor 3,18-19). Em conseqüência, a alma se unirá à sabedoria divina antes pelo não saber que pelo saber. Todo o poder e toda a liberdade do mundo, comparados com a soberania e a independência do espírito de Deus, são completa servidão, angústia e cativeiro.

A alma enamorada das grandezas e dignidades ou muito ciosa da liberdade de seus apetites está diante de Deus como escrava e prisioneira e como tal – e não como filha – é tratada por ele, porque não quis seguir os preceitos de sua doutrina sagrada que nos ensina: Quem quer ser o maior deve fazer-se o menor, e o que quiser ser o menor seja o maior. A alma não poderá, portanto, chegar à verdadeira liberdade de espírito que se alcança na união divina; porque sendo a escravidão incompatível com a liberdade, não pode esta permanecer num coração de escravo, sujeito a seus próprios caprichos; mas somente no que é livre, isto é, num coração de filho.

Neste sentido Sara diz a Abraão, seu esposo, que expulse de casa a escrava e seu filho: “Expulsa esta escrava e seu filho, porque o filho da escrava não será herdeiro com meu filho Isaac” (Gn 21,10). Todas as delícias e doçuras que a vontade saboreia nas coisas terrenas, comparadas aos gozos e às delícias da união divina, são suma aflição, tormento e amargura. Assim todo aquele que prende o coração aos prazeres terrenos é digno diante do Senhor de suma pena, tormento e amargura, e jamais poderá gozar os suaves abraços da união de Deus.

Toda a glória e todas as riquezas das criaturas, comparadas à infinita riqueza que é Deus, são suma pobreza e miséria. Logo a alma afeiçoada à posse das coisas terrenas é profundamente pobre e miserável aos olhos do Senhor, e por isto jamais alcançará o bem-aventurado estado da glória e riqueza, isto é, a transformação em Deus; porque há infinita distância entre o pobre e indigente, e o sumamente rico e glorioso.

A Sabedoria divina, ao se queixar das almas que caem na vileza, miséria e pobreza, em conseqüência da afeição que dedicam ao que é elevado, grande e belo segundo a apreciação do mundo, fala assim nos Provérbios: “A vós, ó homens, é que eu estou continuamente clamando, aos filhos dos homens é que se dirige a minha voz. Aprendei, ó pequeninos, a astúcia e vós, insensatos, prestai-me atenção. Ouvi, porque tenho de vos falar acerca de grandes coisas. Comigo estão as riquezas e a glória, a magnífica opulência, e a justiça.

Porque é melhor o meu fruto que o ouro e que a pedra preciosa, e as minhas produções melhores que a prata escolhida. Eu ando nos caminhos da justiça, no meio das veredas do juízo, para enriquecer aos que me amam e para encher os seus tesouros” (Pr 8,4-6; 18-21). A divina sabedoria se dirige aqui a todos os que põem o coração e a afeição nas criaturas. Chama-os de “pequeninos” porque se tornam semelhantes ao objeto de seu amor, que é pequeno. Convida-os a ter prudência e a observar que ela trata de grandes coisas e não de pequenas como eles.

Com ela e nela se encontram a glória e as verdadeiras riquezas desejadas, e não onde eles supõem. A magnificência e justiça lhe são inerentes; e exorta os homens a refletir sobre a superioridade de seus bens em relação aos do mundo. Ensina-lhes que o fruto nela encontrado é preferível ao ouro e às pedras preciosas; afinal, mostra que sua obra na alma está acima da prata mais pura que eles amam. Nestas palavras se compreende todo gênero de apego existente nesta vida.

Pelo que ficou dito até agora, podemos conhecer, de algum modo, qual o abismo separando as criaturas do Criador, e como as almas, que em alguma destas põem sua afeição, se acham a essa mesma distância de Deus; pois, como dissemos, o amor produz igualdade e semelhança. Santo Agostinho compreendeu esta verdade quando disse ao Senhor em seus solilóquios: “Miserável que sou! Em que a minha pequenez e minha imperfeição poderão se comparar com a vossa retidão? Sois verdadeiramente bom, e eu mau; sois piedoso, e eu ímpio; sois santo, e eu miserável; sois justo, e eu injusto; sois luz, e eu cego; sois vida, e eu morte; sois remédio, e eu enfermo; sois suprema verdade, e eu tão-somente vaidade”. Tudo isto diz o Santo.

É, portanto, grande ignorância da alma ousar aspirar a esse estado tão sublime da união com Deus, antes de haver despojado a vontade do apetite de todas as coisas naturais e sobrenaturais que lhe podem servir de impedimento, como em seguida veremos; pois é incomensurável a distância existente entre elas e o dom recebido no estado da pura transformação em Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo, ensinando-nos este caminho, diz por S. Lucas: “Quem não renuncia a tudo que possui, pela vontade, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,33). É verdade evidente: pois a doutrina ensinada pelo Filho de Deus ao mundo consiste neste desprezo de todas as coisas, a fim de nos tornar capazes de receber a recompensa do espírito de Deus. E enquanto a alma não se despojar de tudo, não terá capacidade para receber esse espírito de Deus em pura transformação.

Encontramos uma figura dessa verdade no livro do Êxodo, onde se lê que Deus enviou o maná do céu aos filhos de Israel só quando lhes faltou a farinha trazida do Egito. Quis assim dar-nos a entender a necessidade de primeiramente renunciar a todas as coisas, pois este manjar dos anjos não convém ao paladar que toma sabor no alimento dos homens. E não somente se torna incapaz do espírito divino a alma detida e apascentada por gostos estranhos, mas ainda causam grande enfado à Majestade de Deus os que, buscando o manjar do espírito, não se contentam puramente com o Senhor e querem conservar ao mesmo tempo o apetite e afeição de outras coisas.

A Sagrada Escritura ainda nos narra, no mesmo livro de Êxodo, que os israelitas, pouco satisfeitos com aquele manjar tão leve, apeteceram e pediram carne. E Nosso Senhor ficou gravemente irado, por ver que queriam misturar comida tão baixa e grosseira com manjar tão alto e simples que encerrava em si o sabor e substância de todos os alimentos. Também Davi nos diz que aquelas carnes estavam ainda em sua boca, quando a cólera de Deus rebentou sobre eles e o fogo do céu consumiu muitos milhares (Sl 77,31), mostrando assim o Senhor julgar coisa abominável o terem eles apetite de outro alimento, quando lhes era dado manjar do céu.

Oh! se soubessem as almas interiores a abundância de graças e de bens espirituais de que se privam, recusando desapegar-se inteiramente do desejo das ninharias deste mundo! Como achariam, nesta simples alimentação do espírito, o gosto de todas as melhores coisas! Mas, por causa desta persistência em não querer contentar-se, não podem apreciar a delicadeza do maná celeste, assim como os israelitas não descobriram os variados sabores do maná, porque não concentravam somente nele o seu apetite.

No entanto, se ali não acharam gosto, conforme os seus desejos, não era por não o possuir o maná: o verdadeiro motivo foi buscarem eles outra coisa. A alma cujo amor se reparte entre a criatura e o Criador testemunha sua pouca estima por este, ousando colocar na mesma balança Deus e um objeto que dele está infinitamente distante.

Sabe-se bem, por experiência, que a vontade, quando afeiçoada a um objeto, prefere-o a qualquer outro que seria melhor em si, porém, satisfaria menos o seu gosto. Se quiser gozar de um e de outro ao mesmo tempo, injuriará necessariamente ao que é superior e isto porque estabelece igualdade entre eles. Ora, como não há na terra coisa que se possa igualar a Deus, a alma lhe faz muito agravo quando juntamente com ele ama outra coisa e a ela se prende. Que acontecerá, então, se vier a amá-la mais que ao próprio Deus?

São João da Cruz


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