Formação

Takashi Nagai, Um canto para Nagasaki

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Jean-Luc Moens

Takashi Nagai nasceu em 1910 no Japão em uma família de médicos xintoístas. Em 1932, formou-se em medicina pela Universidade de Nagasaki. Perdeu a fé xintoísta pelo contato com o racionalismo científico. Um ano antes do fim de seus estudos, Takashi leu os “Pensamentos” de Blaise Pascal e ficou irritado pelas pretensões absolutas desse autor acerca do catolicismo, mas, ao mesmo tempo, ficou intrigado. Decidiu procurar um quarto na casa de uma família católica da cidade, a fim de se informar discretamente sobre a fé cristã.

Em 1933, Takashi foi chamado para servir no exército japonês durante a guerra da Manchúria. De volta, entrou na igreja de Nagasaki durante a noite de Natal e encontrou-se com o padre. Algum tempo depois recebeu o batismo, sem o consentimento do pai. Pouco tempo depois, engajou-se na Sociedade de São Vicente de Paulo – Vicentinos – fundada na França por Frederico Ozanan. Casou-se com uma jovem cristã, Midori, e duas crianças nasceram dessa união: um filho, Makoto, em 1935 e uma filha, Ikuko, em 1937, morta prematuramente. Naquele mesmo ano, Dr. Nagai foi mais uma vez convocado e partiu para a China como cirurgião. Esta nova experiência da guerra abriu-lhe os olhos acerca da loucura morticida à qual a sede de poder podia conduzir. Escreveu: “Eu não vim para a China para batalhar contra quem quer que seja, nem para ganhar uma guerra. Vim ajudar os feridos, quer sejam chineses ou japoneses, civis ou militares”. Durante sua permanência na China, Takashi se distinguiu pela organização de socorro aos civis chineses, ajudado pelos Vicentinos chineses e japoneses.

Desconvocado, reintegrou o serviço de radiologia da Universidade de Nagasaki, onde rapidamente tornou-se professor. Quando o Japão declarou guerra aos Estados Unidos, Nagai não ficou otimista acerca das chances de vitória de seu país. Sabia que os combates fariam numerosas vítimas militares e civis e lamentava profundamente. Um único raio de luz nesses anos sombrios: o nascimento de uma nova filha, Kayano.

Depois da euforia das primeiras vitórias, como havia previsto Takashi, os Estados Unidos passaram a ter, particularmente, a superioridade aérea e começaram os, quase diários, bombardeios sobre Nagasaki. Os feridos eram numerosíssimos. Takashi dedicava-se a eles sem medidas. Tanto que, radiologista, expôs-se a fortes doses de raios. Ele sabia que estava arriscando a vida, mas o fazia por senso de dever e para cuidar dos feridos sem conta que lhe eram confiados. Logo teve de se render a uma evidência: Dr. Nagai era portador de uma leucemia incurável por causa de uma extraordinária exposição aos raios gama.

Não foi fácil dar a notícia a Midori, principalmente porque ele se culpava de ter contraído a doença por causa de sua negligência. Sabendo da novidade, Midori se ajoelhou e chorou. Depois ela voltou-se para seu marido e disse: “Antes de nos casarmos e antes de tua ida à China pela segunda vez, nós dissemos que, se nossa vida destinava-se para a maior glória de Deus, então a vida e a morte eram belas. Tu deste tudo que tens pelo trabalho que te pareceu muito, muito importante. É para a glória de Deus”. Admirável Midori. Ela entrou com completo abandono no sacrifício de seu marido e, por amor, dava-lhe coragem.

Em 9 de agosto de 1945, um bombardeiro B-29 soltou uma bomba A no bairro cristão de Urakami de Nagasaki. As descrições das testemunhas são terríveis. Os mortos, inumeráveis. Todas as casas foram destruídas como se fossem choupanas de palha pela explosão. No hospital universitário, situado a 700m do epicentro da explosão e, apesar de construído de concreto, 80% dos doentes e do pessoal de serviço pereceu. Dr. Nagai que trabalhava no departamento de radiologia ficou ferido, mas sua mulher, Midori, morreu. Ele encontrou seu cadáver carbonizado alguns dias depois, com os restos de um terço em sua mão direita. Ela morreu rezando…

Maria, nossa mãe, eu me ofereço a ti

Submetido, pela explosão da bomba, a uma fortíssima dose de radiação, Nagai caiu gravemente enfermo em setembro de 1945. Entrou em coma e não havia esperança de salvá-lo. Sua sogra lhe levou água da gruta de Nossa Senhora do Mosteiro de Hongochi. Nesse momento, Takashi conta que escutou uma voz que lhe dizia para pedir a intercessão do Pe. Maximiliano Kolbe. Esse foi o instante preciso de sua cura. Foi curado da doença da bomba, mas manteve sua leucemia crônica.

Desde que foi possível, Dr. Nagai se instalou nas ruínas de sua casa para “contemplar o sentido daquele acontecimento”. Ele fez para si uma pequena cabana com os escombros que encontrou lá e se instalou com seus filhos, Makoto e Kayano, que escaparam da morte. Sua coragem e esperança foram marcantes. Pouco a pouco os habitantes voltaram ao bairro de Urakami, ao redor da catedral devastada. O Sr. Bispo lhe pediu que falasse à multidão por ocasião de uma missa celebrada pelas vítimas da bomba. Dois fatos acontecidos no dia da explosão inspiraram seu entendimento espiritual do dramático acontecimento: vinte e sete religiosas do bairro sobreviveram à explosão atrozmente queimadas; perto da meia-noite, uma enfermeira escutou hinos em latim. No dia seguinte descobriu-se os corpos mutilados das irmãs, que tinham, visivelmente, sofrido muito, mas morreram cantando e orando. Da mesma maneira, alguns alunos, também gravemente feridos, encorajavam-se mutuamente cantando: “Maria, nossa mãe, eu me ofereço a ti…”.

O cordeiro para ser oferecido em holocausto

O dia da pregação chegou e Dr. Nagai falou à multidão. “Foi no exato momento em que o fogo apareceu na Catedral de Nagasaki que o imperador decidiu a rendição do Japão. O Edital oficial foi promulgado em 15 de agosto, na festa da Assunção à qual estava dedicada nossa catedral…”. Assinalando que a bomba A estava inicialmente destinada a outra cidade e que, em Nagasaki, ela deveria explodir mais ao sul, ele continua: “Penso que não foi a tripulação americana, mas a Providência de Deus, que escolheu Urakami e trouxe a bomba sobre nossas casas. Não há uma ligação profunda entre o aniquilamento de Nagasaki e a morte de 8 mil cristãos e o fim da guerra? Nagasaki não foi uma vítima escolhida, cordeiro sem mancha, holocausto oferecido sobre o altar do sacrifício, morto pelos pecados de todas as nações durante a segunda guerra mundial?”.

Tais palavras eram duras demais, a multidão levantou-se em protesto. Mas, com autoridade, o Dr. Nagai continuou: “Somos herdeiros do pecado de Adão… Nós nos despojamos, fomos mortos com alegria! Um simples arrependimento não bastaria para trazer de volta a paz. Era preciso que oferecêssemos um sacrifício prodigioso. Somente o holocausto de Nagasaki poderia ser suficiente e naquele mesmo momento, o Senhor inspirou o imperador a assinar a paz. O pequeno rebanho de cristãos de Nagasaki foi fiel a sua fé durante trezentos anos de perseguição. Durante a última guerra, ele orou sem cessar por uma paz durável. Foi o cordeiro puro que deveria ser sacrificado em holocausto sobre o altar para que milhões de vidas pudessem ser salvas… ‘Felizes os que choram, disse Jesus, porque serão consolados’. ‘O Senhor deu, o Senhor tirou. Bendito seja o Nome do Senhor’. Reconheçamos que Nagasaki foi escolhida para este holocausto. Sejamos felizes porque, através deste sacrifício, a paz foi dada ao mundo e, ao mesmo tempo, a liberdade religiosa ao Japão…”.

Hiroshima chora, Nagasaki ora

Takashi Nagai freqüentemente se perguntou depois: tinha tido razão em chamar as pessoas a aceitar este drama como um holocausto? Sim, respondeu ele, porque esta aceitação trouxe-lhes paz e alegria. Muito depois de sua morte esta paz orante permanece um dos pontos distintivos da cidade de Nagasaki. Um ditado japonês diz: “Hiroshima chora, Nagasaki ora”. Isto é, certamente, um fruto da mensagem de Dr. Nagai.

Escondido em sua choupana, Takashi Nagai ajudou a muitos de seus compatriotas a descobrir que é quando cremos ter tudo perdido que possuímos tudo. Em numerosos livros, entre os quais alguns foram verdadeiros “best-sellers”, como “Os sinos de Nagasaki” ou “Os filhos de Nagasaki”, Takashi apresenta a realidade tal como é. Para ele, é a partir desta realidade aceita como a única coisa verdadeiramente real e vivida no instante presente que se pode encontrar Deus e orar. Nosso século procurou resolver o problema do sofrimento por sua eliminação. Está claro que falhou. Takashi, por seu lado, como cristão convertido vivendo em uma sociedade pagã, apresenta ao mundo como ideal de felicidade e de paz o Sermão da Montanha. Percebendo que sua pequena Kayano não chorava mais, escreve-lhe em um de seus livros: “Nossa infância é feliz porque nós podemos chorar… O único que sabe como fazer declarou: ‘Felizes os que choram, eles serão consolados.’ Tu podes chorar diante dele. Ele sempre levará em conta tuas lágrimas”.

Místico da paz, comparado em seu país a Gandhi, Takashi Nagai recebeu o título de Herói da Nação, votado pela Dieta Nacional (Congresso Japonês), como também o de Cidadão Honorário de Nagasaki. O imperador em pessoa veio visitá-lo. Seu exemplo e coragem reconfortaram milhares de pessoas feridas pela guerra. Entre eles contam-se muitas conversões.

Aceitem ser felizes

Em 1º de maio de 1951, o Dr. Nagai reencontrou seu Criador e sua mulher Midori. Ele deixou esta mensagem aos seus filhos: “Cedo vocês serão órfãos e, bem ou mal, deverão subir por um longo caminho escarpado, acidentado e solitário. A fé cristã de vocês não é uma droga para anestesiar a dor. Apesar disso, posso assegurar que o caminho solitário de vocês é exatamente aquele que Deus, em sua Providência, escolheu especialmente para vocês. Aceitem-no como tal e perguntem-lhe freqüentemente: ‘Como posso usar isso para tua glória?’. Isso não é psicologia popular nem um método fácil para evitar o vazio da alma. Não. É o único modo de responder, de maneira autêntica, ao mistério da vida. Quando forem felizes, aceitem-no como Providência de Deus e, em oração, peçam-lhe para proteger esta alegria para sua glória”.

Um canto de reconciliação

Ainda hoje Dr. Nagai deixa um vivo testemunho de esperança, um maravilhoso exemplo do poder dinâmico da fé cristã em todas as culturas. Como disse Stan Arneil, no prefácio do livro “Réquiem para Nagasaki”: “Uma vez que o terrível estrondo da fissão nuclear desapareceu, as notas de um canto persistem. Poderia ser o canto fúnebre de um homem encolerizado, sedento de vingança e cheio de amargura. No lugar disso, ouve-se um canto de reconciliação, de fé, de aceitação e de paz, ingredientes de uma felicidade que todos nós buscamos”.

No fim do século XVI, uma terrível perseguição se abateu sobre os cristãos japoneses, oriundos da evangelização de Francisco Xavier e de seus sucessores. Paulo Miki e seus companheiros foram crucificados em Nagasaki, a cidade mais cristã do Japão. Os crentes se dispersaram para escapar do massacre e um bom número deles se estabeleceu ao longo do rio Urakami, nas proximidades de Nagasaki. Lá eles continuaram a viver sua fé, apesar da ausência de padres. Chamavam os responsáveis pela comunidade de “os Chokata”. A partir do momento em que o Japão se abriu novamente aos europeus, um missionário francês, Pe. Petitjean construiu uma igreja em Nagasaki a apenas 6 km da comunidade cristã clandestina. Ela havia perdido todo contato com a Igreja Católica. Ela guardava preciosamente três critérios de reconhecimento, recebidos dos ancestrais: “Quando a Igreja voltar ao Japão, vocês a reconhecerão por três sinais: os padres não são casados, haverá uma imagem de Maria e esta Igreja obedecerá ao papa-sama (Bispo) de Roma”. Foi assim que em 17 de março de 1865, o Pe. Petitjean viu chegar a sua Igreja um grupo de cristãos de Urakami: estes crentes clandestinos, depois de dois séculos e meio, encontravam novamente sua Santa Mãe, a Igreja.


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