Quando eu era menina, cruzadinha do Sagrado Coração, a jaculatória ‘oficial’ e, portanto, mais conhecida para clamar a misericórdia de Deus era: ‘Sagrado Coração de Jesus, tende misericórdia de nós!’ Com o passar do tempo, uma outra ficou mais conhecida: ‘Sagrado Coração de Jesus, eu confio em Vós!’ A canção da Comunidade Recado aplicou ambas as formas à água e sangue que correm do Coração de Jesus: ‘Oh sangue, oh água, que jorraste do Coração, tende misericórdia de nós! Confio em vós!’
O Terço da Misericórdia, por sua vez, consagrou a expressão: ‘Por sua dolorosa paixão [de Jesus Cristo], tende misericórdia de nós e do mundo inteiro!’ No Oriente, os monges se aprofundaram na oração através de uma jaculatória muito simples, mas muito profunda, baseada no episódio dos cegos de Mt 9,27ss: ‘Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus Vivo, tende misericórdia de mim, pecador!’ Pelo mundo inteiro ecoam as evocações à misericórdia divina.
Por que clamar a misericórdia de Deus?
Se perguntarmos a cada uma das milhões de pessoas que rezam com essas invocações à Misericórdia porque elas suplicam a misericórdia de Deus, a quase totalidade responderá: ‘Por causa dos meus muitos pecados.’ Certíssimo! É movido por sua infinita e constante misericórdia que Deus perdoa os nossos pecados. Porém, seria uma redução imaginarmos que precisamos da misericórdia de Deus ‘apenas’ porque somos pecadores.
No nosso vocabulário, costumamos confundir palavras como piedade, perdão e misericórdia e limite, fraqueza e pecado. Usamos esses termos como se eles fossem sinônimos e acabamos, sem querer, deixando de nos conhecer melhor e confundindo as coisas. Quando os dois cegos de Mt 9 imploraram a piedade do Senhor, pediam que ele se condoesse, se deixasse tocar, tivesse pena de sua situação de cegueira física. Jesus compreendeu dessa forma, tocou-lhes os olhos e os curou. Aqueles dois cegos, com certeza, eram dignos da piedade de Deus e de todos os homens devido à sua cegueira.
Quando o paralítico, também de Mt 9, foi apresentado a Jesus, ele não somente se compadeceu: ‘Meu filho, coragem!’, como perdoou os pecados do homem: ‘Teus pecados te são perdoados.’ Ele fez isso porque se uniu à miséria daquele homem, porque tem entranhas de mãe, entranhas de misericórdia, porque é misericórdia. Foi também o que aconteceu com os dois cegos: ele os curou porque uniu-se à sua miséria, à sua deficiência física que comprometia toda a sua vida. Curou-os movido pela misericórdia, porque fremiram suas entranhas de misericórdia, porque é a Misericórdia Viva do Pai para com a humanidade.
Além do perdão
Como se vê, a misericórdia de Deus vai além de perdoar os pecados. Atinge também qualquer situação difícil em que nos encontremos, nossos limites e fraquezas. É não somente por causa de nossos pecados, mas também por causa de nossas limitações e fraquezas, que somos alvo da misericórdia de Deus que, embora inclua a piedade e o perdão dos pecados, vai muito além deles. Mas, o que são limites? O que são fraquezas? Quando surgiram? Como surgiram? Como distingui-los um do outro e do pecado?
Ao contrário do que, em geral, pensamos, os limites do homem não surgiram como conseqüência do pecado original. O homem nunca foi um ser todo-poderoso, ilimitado, pelo simples fato de que não é Deus. É uma criatura. Basta que tomemos os órgãos dos sentidos: antes ou depois do pecado original, o homem tinha limites para a sua visão, a sua audição, seu tato, paladar e olfato. Além desses limites físicos, possuía, ainda outros, como o cansaço, o ter de alimentar-se, ter de fazer a digestão, o sono. Muito embora o espaço e o tempo também sejam criaturas de Deus, tanto antes quanto depois do pecado original o homem era limitado, também, com relação ao espaço e tempo, não podendo estar em dois lugares no mesmo momento.
Isso não significa que o homem, mais que toda a criação, fosse não somente ‘bom’, mas ‘muito bom’, como atesta Gen 1,31. O fato de o homem ser limitado não significa, em nenhuma hipótese, que ele seja ‘ruim’ ou ‘defeituoso’ ou ‘mau’. Significa, tão somente, que ele é uma criatura e, como tal, limitada. Seria um grave erro, portanto, tentarmos esconder de nós mesmos e de Deus nossos limites e fraquezas.
Os limites do homem, quer antes, quer depois do pecado original, estendiam-se também a nível intelectual: o homem nunca pode e nunca poderá entender tudo, saber de tudo, abranger tudo, compreender tudo, apreender tudo, perceber tudo. Tanto antes quanto depois do pecado original, o homem é limitado também quanto ao seu intelecto, ou ele seria como Deus.
Tanto antes quanto depois do pecado original, o homem era frágil quanto à tentação. Tinha limites quanto ao discernimento do bem e do mal, e Deus o instruiu claramente sobre este limite, proibindo-o de comer do fruto da árvore do bem e do mal. Foi ainda Deus mesmo quem colocou para o homem limites bem claros quanto à sua ação sobre a terra: crescer, multiplicar-se, administrar a criação (Cf. Gen 1, 28), não mais que isso.
Necessitado do cuidado de Deus
Como se vê, em seus limites mais simples, o homem necessita do cuidado de Deus. Neste momento, só escrevo e você só lê porque Deus não somente nos mantem a vida, mas faz-nos capazes de conversarmos através deste texto. Precisamos entender, bem concretamente, que recebemos absolutamente tudo de Deus e que, sem Deus, simplesmente não existimos.
Como vimos, os limites existem desde que o homem foi criado, pelo fato mesmo de ele ser criatura. Parece muito simples, mas tendemos a nos esquecer disso e a não acolhermos e aceitarmos nossos limites de criaturas.
Com o pecado, apareceram nossas fraquezas, ou, se você preferir, nossas fragilidades morais, ou, ainda, nossas concupiscências. Somos atraídos para o prazer, para o poder, para o possuir, verbos que resumem as concupiscências. Estas fragilidades que advieram com o pecado, tornam-nos vulneráveis às tentações. Também aí deve chegar a misericórdia de Deus. Você entende? Não devemos nos limitar a recorrer à misericórdia de Deus somente quando pecamos! Devemos, igualmente, recorrer a esta misericórdia quando nos deparamos com nossos limites de criaturas, que precisam do cuidado constante de Deus. Em um outro nível, podemos e devemos recorrer à misericórdia de Deus quando estivermos em tentação, em perigo de pecar, para que, em suas entranhas de misericórdia, se compadeça de nossa situação de perigo, e nos salve.
Parece tão simples, tão óbvio, não é verdade? Mas será que a gente sempre se recorda disso? Na verdade, a gente vive como se nem precisasse da misericórdia de Deus e só se lembra de invocá-la durante a Eucaristia e sempre com relação aos pecados cometidos. O que ocorre conosco ocorreu, também, com Adão e Eva e, em grau extremo, com Judas.
O primeiro homem e a primeira mulher viviam em plena harmonia com sua condição vulnerável e limitada de criaturas. Aceitavam com naturalidade os seus limites e extasiavam-se com a beleza, plenitude e perfeição de Deus. Esta situação de aceitação está expressa pela frase de Gen. 2,26: ‘estavam nus e não se envergonhavam’. Quando a serpente lhes chama a atenção para sua condição humana limitada quanto ao conhecimento do bem e do mal, ambos passam a não mais aceitar-se, não mais aceitar sua condição limitada de criatura. Falta-lhes a humildade. Pecam contra a humildade: pecam por orgulho, por soberba. Envergonhados, escondem-se de Deus, como faria, séculos mais tarde Judas que, ao invés de admitir seu pecado, ‘acolher’ humildemente sua condição de pecador e se expor à misericórdia de Deus, tentou corrigir seu erro devolvendo as moedas aos homens e, não tendo estes aceito seu arrependimento, entrou em desespero e se matou. Existe um passo essencial entre reconhecer o pecado e acolher humildemente a condição de pecador. Para usufruirmos da misericórdia divina, este passo precisa ser dado.
Aceitar nossos limites e fraquezas
Muitas vezes, como Adão e Eva, como Judas, também nós deixamos de usufruir plenamente da misericórdia de Deus porque não conhecemos, não amamos e não aceitamos nossos limites, nossas fraquezas, o fato de sermos tentados, o fato de pecarmos. Precisamos imensamente, desesperadamente, crescer no auto-conhecimento para conhecermos e amarmos as nossas fraquezas e, conhecendo-as e amando-as, as apresentarmos à misericórdia de Deus que virá em nosso auxílio para que saiamos vencedores na luta contra toda fraqueza, todo pecado e na humilde aceitação de nossa condição humana. Se não nos conhecemos, se não aceitamos, com humildade, que somos fracos, se não damos nome às nossas fraquezas, não saberemos contra quem estamos lutando.
‘A luta contra as provações e tentações pertence essencialmente ao ser humano’ . Santo Antão afirma que ‘quem não tiver sido tentado não poderá entrar no reino do céu. Se suprimires a tentação, ninguém se salvará.’ Em nossa soberba, temos a terrível tendência a não aceitar que somos limitados, fracos, tentados. Aceitamos vagamente que somos pecadores, mas não descemos nos detalhes das maiores causas de nossos pecados, não damos nomes às nossas fraquezas e tentações, não nos observamos nem nos conhecemos bem o suficiente para lutarmos contra o que nos pode levar a pecar. Erramos ao pensar que o auto-conhecimento é o final da caminhada. Ele é, na realidade, o início, o primeiro passo para conhecermos a Deus.
Neste mês do Coração de Jesus, que não rejeitou nossa condição humana, como geralmente o fazemos, mas nos amou em nossa fraqueza e a assumiu, tomando sobre si também o nosso pecado, peçamos à Divina Misericórdia a graça de nos conhecermos mais profundamente, de conhecermos e aceitarmos quem realmente somos, em nossa natureza limitada e frágil e em nossa condição de pecadores. Assim poderemos clamar sobre todo o nosso ser, de forma concreta, a misericórdia de Deus e constatar o que significa, de fato, esta afirmação de Santa Teresinha: ‘o que agrada a Deus, em minha pequena alma, é que eu ame minha pequenez e minha fraqueza. É a esperança cega que tenho em sua misericórdia’.
Que formação linda sobre fraquezas e limites do nosso ser humano.
Muito obrigado mãe, permita-me chamá-la assim, sou fruto do seu sim.
Deus de misericórdia, conceda-me a graça de conhecer meus limites e fraquezas para que possa amá-lo ainda mais.