Quando eu era menino gostava, e muito, do tempo do Advento; gostava bem menos do tempo de Quaresma.
O Advento trazia, normalmente, a neve que, para a meninada, significava jogos e brincadeiras que faziam a alegria e a amizade entre os colegas. Trazia também umas queixas dos pais: a meninada voltava para casa com as mãos endurecidas e travadas pelo frio intenso e por ter mexido muito na neve; o nariz ficava insensível e vermelho; todos éramos molhados de tanto cair na neve, sem levar em conta possíveis doenças e febres. Os pais, evidentemente, não gostavam, mas também não faziam tragédias.
O Advento era o tempo dos cantos natalinos que embalavam os corações e faziam a gente sonhar; era o pisca-pisca das luzes, a construção do Presépio; era o ensaio para a apresentação, na noite santa, do Presépio vivente, segundo os costumes e a cultura da Palestina, mas livremente interpretada com os costumes e atividades da nossa cidade. A Novena era tempo sagrado: todos, bem agasalhados, iam para a Igreja, meio escura, cantando em latim os salmos e as antífonas da espera do Salvador.
A gente era pobre e nem pensava em presentes, mas os pais sempre preparavam algumas surpresas simples, normalmente doces da região, e os depositavam ao lado da cama. A alegria era grande na manhã de Natal. Lembro-me que o único brinquedo, que recebi de presente, foi um elefantinho, de madeira bem pintada: o guardei durante muito tempo com carinho e muito cuidado, ciumento e sempre vigiando para que o irmão mais novo não o estragasse.
A Quaresma, ao contrário, não caía bem nos meus gostos: muita tristeza; muito silêncio e pedidos de sacrifícios, austeridade…cantos sérios evidenciando as faltas (os pecados) e convidando ao arrependimento. Durante a Quaresma a preocupação era de não fazer nada de errado, nem em casa nem nas salas de aula nem pela rua…se caminhava quase que “na ponta dos pés”. Era dose!!!
O clima mudava quando já se aproximava a Páscoa, lá no começo da Semana Santa: a procissão dos ramos com os cantos “Hosana ao Filho de Davi; a proclamação solene da Paixão do Senhor a encenação, durante a Missa, do “lava-pés” (quanta curiosidade para ver o Pároco repetindo o gesto humilde de Cristo na Última Ceia!); a Via Sacra acompanhada do silêncio profundo que continuava nas ruas e nas casas: a cidade parecia morta, “em luto”, sem vida, em reflexão…; o sábado de manhã, bem cedo – sim senhores, sábado santo de manhã!!! – a celebração da Ressurreição do Senhor com sinos, campainhas e todo instrumento voltando a tocar… 24 horas antes do tempo -.
A tristeza da Quaresma se transformava em alegria. No domingo de Páscoa, todos vestiam o vestido novo, para a Missa solene, cantada pelos cantores do alto da orquestra e ensaiada por tanto tempo; o êxito – ou menos – dos cantos era comentado durante dias.
Já naquele tempo havia a dimensão caritativa. Nós todos, adultos e crianças, éramos convidados a fazer “o sacrifício quaresmal”. Cada um escolhia ou inventava o “seu” sacrifício ao longo da Quaresma toda e o resultado em dinheiro tinha destinação…missionária. Lembro muito bem as sugestões do Pároco: na Quaresma podia-se escolher de não tomar sorvete, não comer doces, obedecer mais, ser mais prestativos…: para os adultos a sugestão era de não tomar cafezinho a todo momento, não fumar, deixar de lado a bebida alcoólica, juntar algum dinheiro etc…tudo finalizado a ajudar este ou aquele missionário. De fato o fruto dos sacrifícios quaresmais andava diretamente para as missões da África ou de outros lugares e era relativamente abundante.
Com o tempo, a maneira de viver e celebrar a Quaresma mudou bastante e outras iniciativas se firmaram e se fortaleceram. A Quaresma se tornou momento forte de estudo e reflexão sobre um problema candente para a Igreja e para a sociedade e, por isso, tempo de compromisso cristão, de responsabilidade para com a Igreja e para com a humanidade.
A liturgia aprimorou-se e, hoje, acompanha o cristão a viver o grande mistério da morte de Cristo; as celebrações são autênticas, verdadeiras catequeses e celebram a fé e a vida. Fé e vida se entrelaçam de forma tal que se confundem e se tornam uma só realidade.
Continua e acentua-se o espírito de penitência. Ele é essencial, ele faz parte da seriedade da vida e do compromisso cristão; ele é renúncia – sacrifício mesmo – finalizado à caridade, à partilha e à colaboração. É gesto bom e bonito o cristão, voluntariamente, renunciar a alguma coisa que ele gosta e que pode, embora com alguma dificuldade, deixar de lado, sobretudo se isso prejudicasse a saúde ou a convivência: fumo, bebida alcoólica, comportamento incorreto… e abraçar valores eternos como o perdão, a compreensão para com os vizinhos ou familiares, a honestidade, a sinceridade…
A Campanha da Fraternidade adquiriu, ao longo dos anos, uma importância extraordinária convidando à reflexão sobre problemas que são, ao mesmo tempo, da Igreja, da sociedade e da humanidade. Neste tempo iniciam as reflexões e colaborações: palestras, cursos, iniciativas, pesquisas nas universidades e nos colégios, seminários de estudo, manifestações públicas…que irão continuar durante o ano todo. No Brasil as reflexões não se limitam ao tempo da Quaresma, mas permanecem ao longo do ano todo: por isso não se fala em “Quaresma de Fraternidade” – seria limitada no tempo de 40 dias – e sim em “Campanha da Fraternidade” – extensiva ao ano todo – a ser celebrada nas Igrejas, nas escolas e colégios, nas Universidades, nas Câmeras municipais e até no Congresso Federal.
A Campanha da Fraternidade, desde muitos anos, no Brasil, sacode a consciência da sociedade, seja a nível intelectual de discussão e de aprofundamento, como também na prática: ela consegue mudar a mentalidade e a maneira de ver e julgar os problemas, além de toda oferta tornar-se projeto para uma qualidade de vida melhor; “vim para que todos tenham vida e vida em abundância”.
Isso faz esquecer o lado “triste”: a morte é para a Ressurreição; “…quem semeia no sofrimento colherá com alegria…”.
O tema da Campanha da Fraternidade (…) anima o coração da gente, empolga e mexe com todo cristão, com qualquer cidadão brasileiro ou cidadão do mundo.
Sobre estes assuntos irá falar alto a Campanha da Fraternidade. Os textos preparados são de uma beleza e inteligência apreciadas pelo povo e pelos intelectuais do Brasil todo e até no exterior.
Só mesmo Cristo, morto e Ressuscitado, para dar um jeito em todos os problemas, junto com a nossa boa vontade. Por isso, vale a pena celebrar mais uma Quaresma e, nela, a Campanha da Fraternidade 2007.
Dom Carlos Ellena
Bispo da Diocese de Zé Doca