Por vezes, percebemo-nos em uma sociedade que procura a todo custo separar a realidade divina da humana, ou até mesmo apresentá-las como antagônicas. Todavia, se refletirmos sobre a economia da salvação, veremos o Divino que se encarna dando a possibilidade de uma comunicação, de uma relação entre o transcendente e o humano, relação esta que, ao longo do caminho, cresce gradativamente.
Se falamos de comunicação, supomos um interlocutor e um receptor, e para que a comunicação seja real, este último deve ter a capacidade de escutar, de ouvir com atenção algo que lhe seja compreensível. A compreensão por sua vez, neste caso, nos é permitida pela admirável condescendência divina[1].
Podemos então entender que a teologia, primeiramente, se trata de um dom divino que nos é revelado. Pela revelação, Deus comunica-se a Si mesmo, nos dá a conhecer Seus projetos, Seus desígnios e nos convida a participar da Sua vida, ainda que tal participação supere nossas capacidades humanas[2].
Considerando a limitação destas capacidades, Deus escolhe se expressar por línguas humanas, assemelhando-se a nossa linguagem. Faz uso exatamente das faculdades e das capacidades do homem que traz uma cultura e um tempo que lhes são próprios. Escolhe, ainda, contar com a Igreja para que esta se esforce em aprofundar e tornar cada vez mais conhecida e compreensível ao homem tal linguagem revelada. Caberá então à Igreja interpretar e investigar o que os hagiógrafos quiseram mostrar e o que o próprio Deus quis manifestar[3]. Este será um “serviço à doutrina, que implica a crente busca da compreensão da fé, isto é, a teologia, é portanto uma exigência à qual a Igreja não pode renunciar ”[4].
Se, como citado acima, a teologia é dom divino, podemos ainda dizer que ela traz um caráter antropológico, ou seja, não podemos falar de Deus sem mencionar o homem . Na encarnação, Deus se faz homem, “isso demonstra que o fim real da revelação de Deus é o homem. Cristo, fazendo-se homem, é graça, é dom, é Palavra para o homem”[5]. E se esta Palavra se dirige ao homem, este por sua vez a acolhe segundo as suas próprias capacidades naturais. Forçoso, então, concluir que, além de ser algo dado gratuitamente ao homem, teologia é também a relação do homem com a revelação acolhida[6].
O homem acolhe uma Palavra que se adequa à sua condição, porque esta Palavra é pronunciada para ele[7]. Faz parte ainda da estrutura humana a dimensão afetiva e corpórea, portanto “Deus quando pronuncia Sua Palavra ao homem, Ele a pensa, a ama, a apresenta”[8], sendo assim também será possível ao homem acolher, amar e conhecer.
Todavia permanece uma “transcendência originária e uma imanência destinatária”[9]. A revelação por sua própria natureza sempre ultrapassará as condições humanas. Quanto mais existirá a busca, tanto mais se perceberá a transcendência divina e os limitados conceitos humanos[10], sem todavia deixar de ser algo compreensível, caso contrário não teríamos uma teologia, esta exigirá sempre conhecimento da parte humana e conhecimento do próprio Deus[11]. Como ajuda, o homem poderá fazer uso de uma linguagem analógica, por exemplo, poderá dizer que Deus é bom por analogia, porque Ele não é bom segundo o nosso conceito de bondade, Ele é o Sumo Bem[12].
Tendo em vista os limites da razão humana, faz-se necessário contar com a graça para chegarmos ao conhecimento – a própria revelação já é graça – correto do que nos é comunicado. Não será algo que anule o raciocínio humano ou o desfigure, mas algo que corrobora o seu pleno desenvolvimento[13]. Podemos dizer até que existe uma harmonia, e isso é possível porque “supõe que a razão seja naturalmente ordenada à verdade, de modo que iluminada pela fé, ela possa penetrar o significado da Revelação”. [14] As dificuldades encontradas pela razão, longe de ser impedimento, serão um impulso para a busca do conhecimento. Esta será responsabilidade de cada um.
O Papa emérito Bento XVI, em uma de suas audiências gerais, mostra como São Boaventura soube muito bem valorizar o diálogo entre a fé e a razão na Idade Média[15]. São Boaventura argumentando contra aqueles que opunham fé à razão, como se esta fosse um ato de violência contra a própria revelação e que a nossa acolhida consistisse apenas em ouvi-la, responde: “é verdade que existe um modo arrogante de fazer teologia, uma soberba da razão, que se põe acima da palavra de Deus. Mas a verdadeira teologia, o trabalho racional da teologia verdadeira e boa tem outra origem, não a soberba da razão. Quem ama quer conhecer cada vez melhor e sempre mais o amado; a verdadeira teologia não empenha a razão e sua busca motivada pela soberba, “sed propter amorem eius cui assentit” – mas “motivada pelo amor daquele, a quem deu o seu consentimento” (Proemium in I Sent., q. 2), e quer conhecer melhor o amado: esta é a intenção fundamental da teologia”[16].
Para São Boaventura ainda importava saber que na busca por conhecer a Deus chegaria um ponto em que a razão daria lugar ao amor, e assim o homem conseguiria entrar profundamente no conhecimento de Deus. E prossegue dizendo que “ tudo isso não é anti-intelectual e não é anti-racional: supõe o caminho da razão, mas transcende-o no amor de Cristo crucificado”.[17]
A busca do homem através da teologia, além de responder a um apelo pessoal – porque todo homem tende à verdade -, contribuirá para que todos “cheguem ao conhecimento da verdade” [18], mantendo a fé sempre viva. [19] Esta, por sua vez, não deixará de reclamar a inteligência. Ainda que a verdade revelada permaneça superior aos conceitos humanos, haverá sempre o convite à razão para acolher a verdade tornando assim o homem capaz de compreender em certa medida Aquele em quem crê. [20]
Em suma: a teologia está intimamente ligada ao componente divino e humano. Primeiramente existe uma gratuita escolha divina. Deus se revela, se comunica fazendo uso de uma linguagem humana. O homem por sua vez é capaz de acolher e aprofundar o significado da revelação, sem todavia deixar de experimentar a condescendência divina[21] e ainda responde ao mandato de dar razão da própria fé para todos que a pedem como vemos na carta de São Pedro 3,15. [22]
Erika Sousa, bacharel em Teologia pela Faculdade de Teologia de Lugano (Suíça), missionária da Comunidade Shalom em Braga, Portugal.
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Referências
[1] Cfr. Constituição Dogmática Dei Verbum Sobre a Revelação Divina em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html
[2] Cfr. Idem.
[3] Cfr. Idem.
[4] Instrução Donum Veritatis Sobre a Vocação Eclesial do Teólogo, em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19900524_theologian-vocation_po.html
[5] I. Biffi, Il Cristo Glorioso e la storia universale in Lui predestinata, Facoltà di Teologia de Lugano, Anno Accademico 2013/2014, Pro manuscripto, 3.
[6] Cfr. I. Biffi, Il Cristo Glorioso e la storia universale in Lui predestinata, Facoltà di Teologia de Lugano, Anno Accademico 2013/2014, Pro manuscripto,4.
[7] Cfr Idem
[8] I. Biffi, Il Cristo Glorioso e la storia universale in Lui predestinata, Facoltà di Teologia de Lugano, Anno Accademico 2013/2014, Pro manuscripto, 3.
[9] Idem, 5.
[10] Idem, 2.
[11] Cfr. I. Biffi, Il Cristo Glorioso e la storia universale in Lui predestinata, Facoltà di Teologia de Lugano, Anno Accademico 2013/2014, Pro manuscripto, 5.
[12] Idem, 7.
[13] I. Biffi, Il Cristo Glorioso e la storia universale in Lui predestinata, Facoltà di Teologia de Lugano, Anno Accademico 2013/2014, Pro manuscripto, 7.
[14] Instrução Donum Veritatis Sobre a Vocação Eclesial do Teólogo, em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19900524_theologian-vocation_po.html
[15] Papa Bento XVI Audiência Geral, 17 de março de 2010 em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2010/documents/hf_ben-xvi_aud_20100317.html
[16] Papa Bento XVI Audiência Geral, 17 de março de 2010 em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2010/documents/hf_ben-xvi_aud_20100317.html
[17] Papa Bento XVI Audiência Geral, 17 de março de 2010 em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2010/documents/hf_ben-xvi_aud_20100317.html
[18] 1Tm 2,4.
[19] Cfr. 2Tm 1,6
[20] Cfr Instrução Donum Veritatis Sobre a Vocação Eclesial do Teólogo, em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19900524_theologian-vocation_po.html
[21] Cfr I. Biffi, Il Cristo Glorioso e la storia universale in Lui predestinata, Facoltà di Teologia de Lugano, Anno Accademico 2013/2014, Pro manuscripto, 9.
[22] Cfr. Instrução Donum Veritatis Sobre a Vocação Eclesial do Teólogo, em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19900524_theologian-vocation_po.html
Bibliografia
- I. Biffi, Il Cristo Glorioso e la storia universale in Lui predestinata, Facoltà di Teologia de Lugano, Anno Accademico 2013/2014, Pro manuscripto.
- Papa Bento XVI Audiência Geral, 17 de março de 2010 em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19900524_theologian-vocation_po.html
- Constituição Dogmática Dei Verbum Sobre a Revelação Divina em https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html
- Instrução Donum Veritatis Sobre a Vocação Eclesial do Teólogo em http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19900524_theologian-vocation_po.html
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