Na reciclagem de 2019, ao rezar diante de um panô que continha o seguinte versículo, “Como o pai me enviou, assim também eu vos envio a vós”, percebi que aquela voz era pessoal e que Ele desejava me enviar.
Confesso que fiquei inquieta, mas, simplesmente guardei no meu coração. Outras proclamações ao longo do retiro também reforçavam este chamado, e eu simplesmente acolhia. Eu não me sentia capaz de deixar tudo e ir. Para mim era algo muito grande e eu diante das minhas feridas pensava ser impossível.
Mas Deus, na sua infinita sabedoria, soube trabalhar isto perfeitamente em meu coração. Sempre tive como um grande valor a dimensão do trabalho e com certeza deixar isto seria uns dos meus maiores desafios. Depois de um longo período aconteceu uma assembleia comunitária, que divulgava o Voluntariado Prolongado e trazia justamente esta dinâmica do trabalho.
Ir em missão para ofertar a Deus o meu trabalho gerava em mim uma perfeita alegria, Ele de fato se tornava o Senhor da minha vida em todos os âmbitos, inclusive na minha vida profissional.
E sinceramente, através do voluntariado na Ilha do Marajó, recebi infinitamente mais de aprendizados e experiências profissionais e humanas. Ao retornar, trazia em meu coração uma grande certeza Deus me levou em missão para me ressuscitar na vivência vocacional e na sua misericórdia me confiou os seus prediletos os pobres, as crianças, as famílias.
LEIA TAMBÉM | Voluntários do Espaço de Paz retornam às suas missões de origem
Educando para paz
Deus se esconde neles: nos mais pobres. Em Chaves, conheci a verdadeira pobreza que vai muito além da pobreza material. Realmente faltam os recursos para as famílias, mas ali conheci a verdadeira pobreza que é a de desconhecer a Deus.
A perca dos valores culturais me assustou, pois, uma sociedade que não preserva a sua cultura é uma sociedade que tende a morrer, pois ao longo dos anos se perdera da sua essência. Já vemos que isso não é ensinado as gerações e sendo assim a beleza cultural que aquele povo trás está se esgotando.
Até mesmo a beleza natural já não é mais contemplada como merecia ser, é um local extremamente belo, mas os olhos que ali habitam não aprenderam a contemplar. A beleza do rio que forma uma belíssima praia, se perde no cotidiano, a riqueza da diversidade de pássaros e animais passam despercebidas.
A pobreza intelectual foi algo que também me assustou muito, como profissional da educação, este foi um dos meus primeiros e grandes impactos, ver uma criança que com os seus 10 anos não aprendeu a se sentar na cadeira, nem fazer um bom uso de uma canetinha hidrocor ou simplesmente não saber escrever o seu próprio nome, me fez questionar profundamente a dimensão da educação no nosso país. É negado para esta população um direito básico, isto me constrangeu e gerou em mim um desejo de oferta ainda maior.
Para mim era inconcebível tocar nesta realidade e naquele momento eu simplesmente decidi dar o meu melhor. O trabalho foi se tornando cada vez mais intenso com as nossas crianças e adolescestes. Percebi que a grande carência era primeiramente de atenção e afeto.
Geralmente as famílias são grandes e nem sempre a devida atenção era dada para cada filho, pois a necessidade do trabalho e do sustento por vezes se tornava uma prioridade diante da educação dos filhos. Era preciso que aquelas crianças se descobrissem como um ser único, capaz e extremamente amado por Deus.
Ao longo das oficinas de apoio pedagógico, português, matemática e contação de história e outros momentos, busquei trabalhar de forma mais dinâmica e lúdica as diversas possibilidades de aprendizado, não somente alfabético, mas uma leitura de mundo, e principalmente era preciso formar um cidadão critico, capaz de questionar as suas instâncias. E ainda mais, o meu papel no Espaço de Paz era formar homens e mulheres construtores da verdadeira paz.
As crianças em Chaves do Espaço de Paz têm um perfil diferente, são criadas mais livres e independentes, é comum ver as crianças bem gitinhas (pequenas) soltas na rua, e isto inicialmente me incomodava, com o tempo percebi que é muito próprio do local.
>> Carta aberta aos educadores sociais do Espaço de Paz
Algo que me chamou bastante atenção, é como eles foram sendo moldados ao longo do tempo e da convivência com os irmãos da casa comunitária. Inicialmente, eles simplesmente adentravam nos espaços da casa ou do próprio Espaço de Paz, sem desejar uma boa tarde ou pedir com licença. Palavras básicas não eram comuns, como um obrigada, por favor, mas, ao longo do tempo isto foi sendo absorvido e se tornando comum. É algo simples, cotidiano, mas demonstra de forma clara que vale a pena insistir nas nossas crianças.
Uma amizade transformadora
O meu maior desafio se tornou o meu grande amor. Ao chegar em Chaves, conheci uma criança que em suas posturas sempre encontrava a negação em tudo que pedíamos, a resposta era sempre a mesma. As vezes só balançava a cabeça e negava tudo, era extremamente agitado e desobediente, e por vezes apresentava uma fala confusa. Na maioria das vezes se encontrava com fome e sujo, até com mau cheiro. Mas ele simplesmente não desgrudava dos tios do Espaço de Paz.
Era uma criança extremamente presente, alegre, expansiva, muitas vezes passava pela casa comunitária e pelo Espaço de Paz. Percebi que muitas vezes ele respondia com grosseria, mas em outros momentos ele simplesmente chorava, como é próprio de uma criança. Recebi a missão de pedir a ele para se retirar nos momentos em que não eram próprios para a permanência das crianças, inicialmente era extremamente difícil e desgastante, e ele sempre retornava, foi quando percebi que nele existia algo diferente, aquele espaço favorecia algo para ele que era tão maravilhoso e que fugia tanto da sua realidade que ele simplesmente não queria sair dali. O Espaço de Paz se concretizava na vida dele.
“Esta criança foi se tornando a alegria dos nossos dias”
Foi quando decidi mudar a minha postura, todas as vezes que ele chegava agitado, falante, e as vezes até mesmo sujo ou com fome, eu me abaixava e escutava, dava a ele o espaço de fala, de atenção, de acolhida. Buscava perceber a real necessidade daquela criança, as vezes era fome ou a ausência de higiene que gerava uma certa irritação, e com o tempo se tornou perceptível a mudança.
Começou a chegar banhado, com roupas mais limpas e dignas, muitas vezes com gestos de carinho como uma cartinha, um desenho feito na escola, um presente e até mesmo frutas colhidas ao longo do caminho ou belíssimas flores.
A forma de falar foi se tornando mais leve e os palavrões já não eram pronunciados com tanta frequência. Esta criança foi se tornando a alegria dos nossos dias. São João Paulo II nos diz que o amor me explicou tudo e resolveu todas as coisas.
Sim, na minha vida e na vida dele foi justamente isto: a experiência com o verdadeiro amor nos dignifica de tal forma que de nós passam a transbordar atitudes novas, posturas novas e de forma muito concreta escolhas novas. Com toda certeza serei uma profissional melhor a partir desta experiencia de amor.
No Natal, ele decidiu participar da missa do galo, estava com uma roupa muito simples, rasgada e se encontrava só, devido ao horário avançado já estava sonolento, mas escolheu permanecer, mesmo que cochilando.
Eu costumo dizer que naquele dia pude experimentar do nascimento do menino Deus de uma forma diferente, Deus se inclinou a mim novamente através do pobre. O próprio Deus que viveu o abandono e o descaso da população lá em Belém, estava ali novamente, em Chaves, sentado ao meu lado, através daquela criança.
Mais uma vez reafirmo que Deus se revela no pobre e naquele instante onde o menino dormia, recostado em mim eu pude acolher com gratidão aquela criança, assim como Maria e José acolheram, naquela gruta o menino Deus.
O teu povo é o meu povo
Ao final do tempo de missão Deus me dava uma passagem do livro de Rute que nos diz:
“Aonde fores eu irei, aonde habitares eu habitarei. O teu povo é o meu povo, e o teu Deus é o meu Deus” Rt 1, 16
Vejo que este é o grande apelo de Deus para cada um de nós, abraçar aquele povo como o nosso povo, e assim, de fato, introduzir as famílias e crianças neste caminho de paz. Deixo o convite para todos, de se aventurar neste mistério de amor e ali ser gerado para uma vida nova.
>> Saiba como se tornar um voluntário do Espaço de Paz
Ao retornar para a minha missão de origem em Belo Horizonte, Deus me surpreendeu ainda mais, pois a Natacha que retorna já não é mais a mesma, a experiência em Chaves me tornou uma pessoa melhor, mais humana, mais justa, é como costumamos dizer “Chaves é uma escola”.
Nesta “escola” eu aprendi a amar a Deus, a amar a humanidade, a amar ainda mais a minha profissão e compreender melhor a missão que Deus me dá como educadora.
A missão me ensinou a amar a vocação que Ele mesmo me deu.
Hoje posso dizer que a experiência em Chaves gerou em mim uma experiência de ressureição de vida nova.
Natacha Graciano – Consagrada da Comunidade de Aliança de Belo Horizonte (MG)