Moysés Louro de Azevedo Filho
Fundador e Moderador Geral da Comunidade Católica Shalom
Palestra proferida aos membros da Comunidade Shalom em agosto/2001
Mantido o tom coloquial
Iniciemos esta meditação, recordando a leitura do Evangelho de São Lucas e as palavras que o Espírito Santo fez ressoar também no coração do sucessor de Pedro na Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte: “Ora, um dia, a multidão comprimia Jesus para ouvir a Palavra de Deus; ele estava à beira do lago de Genesaré. Viu dois barcos que se achavam à beira do lago; os pescadores que haviam desembarcado lavavam as suas redes. Ele subiu a uma das barcas, que pertencia a Simão, e pediu a este que deixasse a praia e se afastasse um pouco; depois ele se assentou no barco e ensinava às multidões. Quando acabou de falar, disse a Simão: ‘Faze-te ao largo; lançai as vossas redes para apanhar peixe’” (Lc 5,1-4).
Diante da palavra do Senhor, Simão, Tiago e João, lançaram as redes e pescaram grande quantidade de peixes. Essa passagem é chamada de Pesca Milagrosa.
Ao tentar penetrar no que o Espírito Santo fala à Igreja quando fez ressoar essa passagem no coração do Santo Padre, fica claro a voz de Deus que diz: “Preparem-se para uma pesca milagrosa. As graças semeadas são suficientes para que alcancemos “grande quantidade de peixes…”
Contemplando a grandeza desse mistério, que creio ser a voz do Espírito para a Igreja hoje, podemos nos sentir como Pedro, indignos, incapazes e talvez até dizer: “Senhor afasta-te de mim, pois sou um homem culpável”. Mas atenção! Conforme o que o próprio Jesus disse a Pedro, nossa indignidade não será impedimento se soubermos reconhecê-la como Pedro fez e se nos jogarmos aos pés do Senhor como Pedro também o fez. Se soubermos reconhecer toda a nossa indignidade e não cobri-la sob um manto, não justificá-la, ofuscá-la ou maquiá-la, ouviremos também o que Ele disse a Pedro: “Não temas”. E Ele, como fez com Pedro, nos transformará em pescadores de homens e, então, faremos como Pedro, como Tiago e como João, aqueles mais íntimos de Jesus, aqueles mais amigos do Senhor: deixaremos tudo e o seguiremos neste novo que Deus deseja gerar nas nossas vidas e na vida da Igreja.
Não tenhamos medo, preparemo-nos para uma pesca milagrosa, lancemos as redes, não desanimemos, não percamos tempo, não percamos a oportunidade, não desistamos. Reciclemos nossas estruturas, pois uma grande quantidade de peixes, se cremos, pescaremos. Alarguemos nossas redes e nossas barcas, a nossa indignidade não será impedimento se soubermos reconhecê-la e se nos jogarmos aos pés do Senhor. Então Ele dirá: “Não temas” e nos transformará em pescadores de homens. E nós, deixando tudo, o seguiremos. “Duc In Altum”. Faze-te ao largo! Avança às águas profundas!
Radicado na contemplação e na oração
É interessante perceber que, quando o Santo Padre, à luz dessa passagem de São Lucas, diz: “Há muito trabalho à nossa espera; por isso, devemos pôr mãos a uma eficaz programação pastoral pós-jubilar”, justamente quando faz esse desafio, e parece-nos que vai começar a traçar as diretrizes, inesperadamente, quase que interrompendo o assunto, diz: “Mas é muito importante que tudo o que, com ajuda de Deus nos propusermos, esteja profundamente radicado na contemplação e na oração”. E para que o diz, antes mesmo de qualquer outra diretriz? Para que qualquer coisa que realizemos não seja um “fazer por fazer” e não caiamos na tentação de Marta, “que anda inquieta e perturbada com muitas coisas, mas se esquece de que uma só coisa é necessária”.
Com esse espírito, o Papa João Paulo II parte, neste capítulo de sua Carta, para “a única coisa necessária”, fonte de toda e qualquer eficaz programação evangelizadora pastoral, a contemplação do rosto de Jesus, que é o segundo capítulo da Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte. Antes de nos propormos a qualquer coisa, devemos estar profundamente radicados na contemplação e na oração.
Queríamos ver Jesus
Somos remetidos pela Carta Novo Millennio Ineunte exatamente àquela situação dos gregos que estavam subindo ao templo de Jerusalém com aquela multidão em peregrinação por ocasião da Páscoa e disseram: “Queríamos ver Jesus” (cf. Jo 12,21).
E o Santo Padre nos recorda exatamente esse fato, para nos dizer que os homens do mundo de hoje, como aqueles gregos fizeram há dois mil anos, também fazem essa interpelação para nós que cremos no Senhor, como os discípulos creram: eles querem ver o Senhor.
O mundo de hoje não quer simplesmente ouvir falar do Senhor ou saber a respeito dele, mas quer vê-lo, quer ver Jesus! Por isso, a Igreja e todos nós que cremos temos como missão não simplesmente falar sobre Jesus e contar os seus feitos, mas manifestar o seu rosto porque era isso o que os gregos queriam e é isso o que o mundo quer de alguma forma: ver o rosto de Jesus.
E aí entra uma palavra que é grifada no texto e por ser grifada tem uma intenção particular. O nosso testemunho não manifestará o rosto de Jesus ao mundo, nós não realizaremos nada de eficaz em termos de evangelização, se não resplandecermos o rosto de Deus para os homens que necessitam e que de maneira misteriosa buscam a face do Senhor.
O olhar fixo é aquele que não se distrai, é aquele que não pisca, é aquele que não cochila. O olhar fixo é aquele que se mantém atraído por aquele que tudo contém. E, por isso, nós todos somos convidados neste momento a fixar os olhos em Jesus, se queremos corresponder a este apelo e verdadeiramente corresponder a este momento de graça.
Sem dúvida, a base para manter o olhar fixo no rosto do Senhor é a contemplação e a oração. As coisas, pessoas, acontecimentos, as dores e sofrimentos, as alegrias e encantamentos, vão passando através de uma janela, distraindo-nos e podem nos roubar do olhar fixo no Senhor.
A distração vem sempre quando pensamos que “aquilo que passa na janela” pode nos dar o que na verdade só Ele pode nos dar. Precisamos fixar o nosso olhar no rosto do Senhor e tê-lo como primazia, absoluto, Senhor.
O testemunho dos evangelhos
O evangelho, na verdade, é o testemunho autêntico, histórico e verdadeiro dos Apóstolos, porque eles tiveram a experiência viva de Cristo. No Evangelho eles transmitem não uma “história”, não um “conto”, mas a experiência viva de Cristo. Por meio do Evangelho, os apóstolos dizem: “Nós o vimos com os nossos olhos, o escutamos com os nossos ouvidos, o tocamos com as nossas mãos”.
Quando Tomé tocou as suas chagas, Jesus disse: “Tu crestes porque me vistes, bem-aventurados os que não viram e creram” (cf. Jo 20,29). O que Jesus estava dizendo é que a experiência que Tomé teve ao tocá-lo, nós podemos tê-la pela fé. Assim, é por meio da contemplação, oração e encontro com a Palavra de Deus que cada um de nós pode ter essa experiência viva dos apóstolos.
Desde o seu nascimento virginal de Maria, é o evangelho o testemunho vivo dos apóstolos: eles ouviram de Maria a sua vida de carpinteiro em Nazaré, a sua visita ao Templo, Jesus que subia em peregrinação para Jerusalém com todo o seu povo, eles viram o Espírito Santo descer do alto sobre Jesus e ouviram uma voz do céu dizer: “Este é o meu Filho amado”, eles viram seu ministério público. Quem não experimentar o Espírito Santo descer do alto, quem não experimentar a força do Espírito em si não manifestará o rosto de Jesus.
Os apóstolos ouviram as palavras de Jesus, os seus discursos; e a palavra de Jesus queimava os seus corações, fazendo com que não hesitassem em deixar coisas e pessoas para segui-lo. Também nós, junto com o testemunho vivo dos apóstolos, que é o Evangelho, podemos fazer a experiência de deixar que Jesus inflame o nosso coração a ponto de nos encantarmos, envolvermo-nos, deixarmo-nos atrair de maneira incondicional por suas palavras para não hesitarmos em deixar coisas e pessoas para segui-lo.
Uma realidade visível e palpável
Os apóstolos testemunharam também o poder, a autoridade de Jesus ao curar os enfermos e expulsar os demônios, ao realizar obras maravilhosas e milagres para a maior glória do Pai. E, porque testemunharam, também nós podemos testemunhar, experimentar e manifestar essa dimensão do rosto de Cristo para o mundo, com autoridade e poder para consolar a aflição da humanidade.
Também eles testemunharam a tensão, o conflito que Jesus enfrentou com a sociedade religiosa do seu tempo, que foi crescendo até a crise final do Gólgota, ou seja, a hora das trevas. Eles viveram e sofreram juntos com Jesus. Viveram todo o mistério do sofrimento de Cristo, da cruz do Senhor. Cada um da sua forma. Um, ao pé da cruz, outro, negando, outro fugindo, mas todos viveram o mistério da cruz de Cristo. E de uma forma ou de outra, cada um foi chamado a viver unido a Ele na sua vida, já que praticamente todos morreram mártires. Talvez o único que não tenha morrido mártir, foi aquele que foi martirizado com o Senhor na cruz, o próprio João, porque não precisava, já o tinha sido ao pé da cruz, com Maria.
Assim como os apóstolos viveram o mistério de Jesus e puderam transbordar, transmitir, nós podemos junto com eles viver esse mistério. E, vivendo esse mistério, eles puderam também viver o mistério que se segue, porque um está ligado ao outro, que é a nova aurora, radiante e definitiva: eles testemunharam a morte e a ressurreição do Senhor. Viveram o ciclo das aparições de Jesus como que perplexos, porque viram o rosto de Jesus ensangüentado, viram as chagas de Jesus, viram o lado de Jesus traspassado, viram os hematomas, os espinhos, viram Jesus ofegante, viram o seu corpo se enrijecer, viram, tocaram, contemplaram. E, por isso, foi também surpreendente para eles verem Jesus vivo, glorioso, vencedor, Ressuscitado!
Eles o experimentaram vivo e glorioso e receberam de Jesus o dom da paz e o dom do Espírito. Ouviram a sua voz que dizia: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho”. Essa experiência vital dos apóstolos transformou essa palavra última de Jesus num mandato incondicional, algo que jamais poderia ser traído, algo em que eles comprometeriam toda a sua vida, porque dava sentido a tudo o que tinham vivido.
A experiência vivida tinha que ser transmitida, anunciada, levada, não podia ser retida. O rosto de Jesus que eles contemplaram, ouviram e tocaram, eles comunicaram. Só quem vê Jesus com seus olhos, só quem o escuta com seus ouvidos, só quem o toca com suas mãos é capaz de transmitir, doar, comunicar e revelar o rosto de Cristo ao mundo.
O caminho da fé
O Papa diz: “o que fez e o que faz a diferença na nossa vida para experimentarmos, para entrarmos no caminho deles, é a fé”. Diz o Santo Padre “Alegraram-se os discípulos, ao verem o Senhor” (Jo 20,20). O rosto, que os Apóstolos contemplaram depois da ressurreição, era o mesmo daquele Jesus com quem tinham convivido cerca de três anos e que agora os convencia da verdade incrível da sua nova vida, mostrando-lhes “as mãos e o lado” (Jo 20,20). Certamente não foi fácil acreditar.”.
Realmente podemos ver no diálogo de Jesus ressuscitado diante dos apóstolos a hesitação que eles tiveram ao vê-lo comendo: “Sou eu, não é um fantasma, sou eu, venham, se aproximem”. Talvez pensemos ter sido para os apóstolos muito mais fácil do que para nós acreditar. Para eles também não foi fácil. Como lemos nas Escrituras, os discípulos de Emaús só acreditaram ao fim de um penoso itinerário do Espírito. Quando Jesus apareceu aos discípulos de Emaús, eles não o reconheceram e foi preciso ir falando quase uma tarde inteira, andando e falando com eles e somente ao anoitecer, quando Jesus partiu o pão, eles o reconheceram: “É o Senhor!”.
O apóstolo Tomé acreditou após ter constatado o prodígio. Na realidade, por mais que se olhasse e tocasse o seu corpo, só a fé poderia penetrar plenamente no mistério daquele rosto. Só a fé é a porta pela qual nós penetramos no mistério do rosto de Cristo, no âmago do mistério de Cristo. É a fé que nos faz aderir, unir, perder-nos nele, que faz com que morramos com Ele para ressuscitarmos com Ele. É a fé que nos faz romper com o que for preciso ser rompido, é a fé que nos faz dizer “sim” ao que for preciso dizer “sim”. É a fé que nos dá o impulso para nos larçarmos, é a fé que nos faz orar.
A fé cresce dentro de nós como cresceu dentro dos discípulos. O Santo Padre fala de duas palavras sobre isto: uma narra aquele encontro de Jesus com os apóstolos em Cesaréia de Filipe e a outra narra o encontro de Tomé com Jesus. Ele diz que são dois momentos fortes da manifestação da fé. Em Cesaréia de Filipe, Jesus pergunta aos apóstolos: “Quem dizem por aí que eu sou?. Uns dizem que é João Batista, outros que é Elias, outros ainda que é Jeremias ou alguns dos profetas”.
Pela ausência de fé, os homens reconhecem Jesus como alguém especial, mas não chegam à verdadeira fé em Jesus. Porque não chegam, não usufruem de toda a vida divina do rosto de Jesus. Segundo o Papa, alguns fazem uma consideração elevada da pessoa de Jesus, mas ainda muito distante da verdade. O povo, diz o Papa, chega a pressentir a dimensão religiosa absolutamente excepcional deste “rabi”, cujas palavras o deixa fascinado, mas ainda não consegue colocá-lo acima dos homens que aparecem ao longo da história de Israel, e Jesus é realmente muito mais.
Diante de todas aquelas considerações acerca de sua identidade, Jesus avança com a pergunta fundamental: “E vós quem dizeis que eu sou”. Nós até podemos imaginar que, naquele momento, ocorreu um certo silêncio, rompido com a ousada voz de Pedro, aquela voz em que se ouve o ressoar do coração. Assim como nos dias de hoje, o sucessor de Pedro ousa dizer ‘Duc In altum’, também lá ousou dizer: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo”.
Diz o Santo Padre que só a fé professada por Pedro e com ele pela Igreja de todos os tempos atinge o coração do mistério e a sua profundidade. E aí o Papa aborda um ponto muito importante: ele diz como Pedro chegou a essa fé, o que é uma pista também para nós. O Santo Padre, na Carta, vai mostrando o seguinte: Primeiro, a resposta de Jesus: “’Não foram a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está nos céus’ (Mt 16,17). A expressão ‘carne e sangue’ evoca o homem e o seu modo comum de conhecer que, no caso de Jesus, não basta. É necessária uma graça de ‘revelação’ que vem do Pai (cf. Mt 16,17).”.
Lucas nos oferece a indicação de como nós podemos receber essa revelação do Pai. Diz o Papa: “esse diálogo com os discípulos teve lugar ‘quando Jesus orava em particular, estando com Ele apenas os discípulos’ (Lc 9,18). Só a experiência do silêncio e da oração pode nos levar a mergulhar no mistério do rosto de Cristo e receber a revelação de quem Ele é. É a oração, o silêncio, a adoração, a contemplação de Jesus que nos dão e nos fazem crescer na fé, introduzindo-nos no mistério de Cristo.
Rosto do Filho, rosto doloroso, rosto do Ressuscitado
É importante reconhecer o rosto de Jesus, Filho de Deus, verdadeiro Deus, verdadeiro homem, Filho de Deus Encarnado, divino e humano, que nos chama a ser um com Ele, a experimentar e a deixar que sua graça penetre toda a nossa humanidade pela fé, acreditando, permitindo que sua graça perpasse toda a nossa humanidade e a crucifique para que também, com Ele, ressuscite.
Crer no Filho e ser um com o Filho. Descobrir o Pai no Filho e deixar que Ele nos divinize, que Ele nos glorifique, que a sua ressurreição penetre em todas as dimensões de nossa vida. Descobrir o seu rosto sofredor e glorioso. Sofrer junto com Ele e permitir que os sofrimentos da humanidade passem pelo sofrimento dele, para que também passando pelo sofrimento dele, ressuscitem gloriosamente e transfigurem a humanidade.
É o nosso rosto que, pela oração e pela fé, mergulhou na filiação divina, no sofrimento de Cristo, se deixou atrair, ressuscitou e transformou-se no rosto dele e o mundo, vendo no nosso rosto o dele poderá dizer: “Vi o Cristo, vi o próprio Jesus”.
Esse mistério resplandece no próprio Santo Padre, e isso ele não diz na sua Carta, mas nós podemos dizer, pois sabemos que ele vive. E vive a experiência da contemplação e da fé até as últimas conseqüências, deixa-se interpelar, arrastar, consumir por essas exigências, deixa-se crucificar com o Cristo para ressuscitar com Ele. E o rosto de Cristo está no seu rosto e no seu olhar. O mundo, ao olhar para ele, vê Cristo e, ao rejeitá-lo, na verdade rejeita o Cristo, porque no fundo está rejeitando as suas exigências. Mas, ao mesmo tempo, quando se deixa encantar e atrair por ele, está se deixando atrair por Cristo.
Que possamos ser este rosto de Cristo. E, para sê-lo, precisamos contemplá-lo. Por isso, somos convidados a adorá-lo. Pela adoração, contemplamos o rosto de Cristo e, pela fé, aderimos a Cristo, deixando que seu rosto transforme o nosso rosto no dele e o mundo, olhando para nós, veja Jesus transfigurado nos nossos sofrimentos e nas nossas alegrias, veja Jesus transfigurado no nosso “sim” incondicional e na nossa fraqueza coberta pela sua misericórdia. Que o mundo, olhando para nós, veja Jesus que se manifesta para eles porque primeiro se manifestou para nós e nós o acolhemos na oração e na fé.
Fonte: Revista Shalom Maná