Do ponto de vista teológico, na Carta Apostólica Mulieres dignitatem encontramos que “Deus criou o homem à sua imagem […], homem e mulher os criou” (Gn 1,27). Assim, é dada a natureza original do homem, criado à imagem de Deus. A diferença sexual e a irrevogável abertura ao outro são dimensões constitutivas do ser humano, nos relacionamos com o outro e somos chamados a viver da mesma forma que a comunhão trinitária.
Em diversas análises das ciências humanas, no contexto estritamente acadêmico, uma corrente vem produzindo conceitos e premissas, causando muitas confusões a respeito do “masculino” e do “feminino” – a chamada ideologia de gênero, fruto do movimento feminista.
Joan Scott (1995), historiadora, realizou um estudo sobre a concepção de gênero, afirmando que feministas americanas iniciaram o uso do termo “gênero” para enfatizar o caráter social das distinções entre sexo e rejeitar o que ela mesma chama de determinismo biológico implícito nos termos “sexo” ou “diferença sexual.”
Deste modo, tal como Jutta Buggraf (2007) ressalta, na ideologia de gênero evoca-se o binômio sexo e gênero, em que sexo diz respeito às determinações naturais biológicas, existindo dois sexos caracterizados genitalmente (homem e mulher).
Gênero, por sua vez, diz respeito aos papéis exercidos pelos indivíduos na sociedade, sendo o indivíduo produto da cultura. Alguns estudiosos, por exemplo, afirmam que o amor materno não faz parte da natureza da mulher, mas é fruto da construção sócio-histórica e pode ser destruído, dependendo da cultura vigente, desconsiderando o corpo e a natureza da mulher.
No mesmo sentido, na clássica obra “A origem da família, da propriedade privada e do estado”, de Engels, afirma-se que o amor da conjugalidade não é da essência do homem, é fruto da construção cultural da sociedade, na fundação da propriedade privada.
Tais pensamentos têm como projeto provocar uma gradativa conversão cultural, desconstruindo conceitos como família, educação e inclui o feminino e o masculino. Deste modo, junto ao feminismo e à ideologia de gênero, nasce uma grande revolução cultural, ou revolução sexual: questionam-se termos constitutivos do ser homem e mulher e o sexo não define o gênero, sendo totalmente definido pela construção sócio-histórica-cultural.
A esse propósito, Simone Beauvoir (1967) afirma que a “feminilidade não é uma essência, nem uma natureza”, mas um fato cultural e histórico, que pode sofrer transformações radicais. Ela ainda ressalta que não se nasce mulher, mas torna-se mulher.
Judith Butler (1999), outra pensadora na teoria feminista, propõe uma nova construção do termo gênero. Ela propõe um novo olhar sobre o pensamento dicotômico sexo/gênero, alegando que gênero não seria algo substantivo, mas seria um fenômeno inconstante e contextual. “Ser um gênero é um efeito” (p.58), são como expressões momentâneas. Em outras palavras: “não há nada em sua explicação [de Beauvoir] que garanta que o ‘ser’ que se torna mulher seja necessariamente fêmea” (p. 27).
Um dos pontos a ser questionado dentro dessa teoria é a negligência à dimensão biológica do sujeito, em seus aspectos naturais e físicos. Ocorre, desta forma, a indevida separação entre sexo e gênero, natureza e cultura, havendo, assim uma clara e evidente redução da dimensão do homem. A dimensão biológica deixa de ser considerada, pois ela revela aspectos, segundo as teóricas feministas, que exaltam afirmações universalistas que aprisionam a feminilidade em modelos estruturados, que acaba justificando a discriminação das mulheres. Sob essa ótica, deve-se superar a construção de conceitos essencialistas, que produzem um discurso de poder, aumentando as diferenças sexuais. Infere-se dessa perspectiva que, anulando as diferenças (afirmando que tudo é fruto da cultura), poder-se-ia criar uma relação igualitária entre os sexos.
A causa da luta pelos direitos da mulher, defendida na perspectiva feminista, foi arraigada pela concepção da luta de classes marxista, utilizando seus conceitos e linguagens, tal como Georges Cottier afirma. Tal luta ressalta que a diferença entre homens e mulheres é vista como antagonismo e rivalidade, uma luta de “oprimidos” pela sua liberdade. Tal concepção acaba causando uma confusão nos termos “igualdade” e “identidade”, desconsiderando as diferenças em prol de uma busca de igualdade de direitos e dignidade. Cottier ainda afirma que “não é absolutamente exigido que os seres humanos sejam idênticos para que sejam iguais. A igualdade implica mesmo a ideia de diferença, de singularidade, de originalidade” (p. 509).
A concepção defendida nesse texto é a concepção abordada por uma visão holística do homem e mulher. Somos definidos pelas nossas relações, que envolvem a cultura e a história, mas também somos definidos pelo biológico, temos um corpo que define tendências comportamentais, hormônios alteram emoções. E que homem e mulher têm corpos e funcionamentos diferentes, fruto da sua natureza e da cultura vigente.
Tal como Jutta Buggraf (2007) no texto Gender bem salienta, o processo de identidade de homem e de mulher é formado pelo entrelaçamento de três aspectos: o sexo biológico, que diz respeito a corporeidade, é determinado pelo momento da fecundação, e as bases biológicas condicionam o organismo; o sexo psicológico, que diz respeito à experiência de vida psíquica, em que se forma a consciência, em uma primeira fase do desenvolvimento (2 a 3 anos de idade) e pode sofrer influência pela educação e ambiente que a criança habita; sexo sociológico, que refere-se aos papéis que a sociedade confere ao sexo e é fruto dos processos histórico-culturais.
Deste modo, percebe-se que o processo de formação da identidade sexual é complexo e bastante amplo, visto que os três aspectos (bio-psico-sociológico) são integrados e graduais. Não podemos reduzir o ser humano em sua complexidade, em uma visão “essencialista” ou em uma visão “culturalista”.
Angelo Scola (2010) também enriquece bastante essa discussão afirmando que “homem e mulher são identicamente pessoas, mas sexualmente diferentes” (p.20), em igual dignidade e que “a diferença sexual é irreparável” (p. 19). O autor considera a diferença como algo que faz parte da constituição do ser humano e que o “eu” sempre nasce de uma relação com um outro. “Este é um caráter inscrito de modo indelével na natureza de todos os seres humanos” (p. 19).
Scola ressalta que a diferença é escola elementar e não deve ser desconsiderada, reduzindo o homem e a mulher a uma diversidade de papéis construídos socialmente, cai-se em um erro. Scola cita a Carta apostólica Mulieres Dignitatem de São João Paulo II, que afirma que a mulher assume esse lugar do outro. E quem é esse outro? “No sentido último da palavra, é o próprio Deus” (p. 27), não haveria, deste modo, um sentido que mais exaltasse sua identidade, não haveria inferioridade, nessa profunda relação de atração pela diferença.
Pensar em uma perspectiva complexa e profunda, tendo por base que o homem nunca poderá tocar completamente na extraordinária e misteriosa dimensão constitutiva do ser homem e mulher, parece ser a melhor afirmação. Entendendo que não podemos reduzir algo tão profundo e relacional (eu e o outro) e não podemos também negar as diferenças entre os sexos, tal como as feministas realizam, tentam liquidar o “problema”, reduzindo-o e o relativizando-o.
Larissa Silva Barros
Psicóloga e Comunidade de Aliança
REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
BURGGRAF, Jutta. “Pontifício Conselho para a Família / Lexicon”. Brasília. Edições CNBB. 2007.
COTIER, George.“Pontifício Conselho para a Família / Lexicon”. Brasília. Edições CNBB. 2007.
DE BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo, volume 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.
ENGELS, F. El origen de la familia, de la propiedad privada e del estado. Buenos Aires: Clariedad. (Original publicado em 1884), 1964.
JOÃO PAULO II, Carta apostólica Mulieres dignitatem (15 de agosto de 1985).
SCOLA, Angelo. Homem e mulher: o desafio do amor humano – Belo Horizonte: Centro de Cultura e educação cristã da Arquidiocese de Belém do Pará. Editora O Lutador, 2010.
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 20, 71-99, 1995.
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O que seria essa visão essencialista? Ela difere de uma visão que prima por uma lei natural?
Essa visão cultural seria passível de mudança ou ela decorreria necessariamente da dimensao biológica?
Me parece que o mundo passa por uma mudança de paradigma cultural. Esse é o grande ponto. Podemos até sustentar uma lei natural, complementariedade entre homem e mulher é uma tendência de comportamento, mas questões culturais tem pesado muito. E aí que movimentos como o feminismo ganha destaque, porque tem uma base teórica e científica mais sólida. Para vencer essa perspectiva, penso que precisaríamos de um aporte ainda mais sofisticado, do ponto de vista racional. Essa distinção pontual entre igualdade e identidade pode ser um ponto interessante para ser explorado. Além de investir num desenvolvimento do que significa identidade sem recair num discurso puramente impositivo ou arbitrário, mas convincente. Logicamente, a tese da teologia do corpo sera fundamental para amparar um estudo como esse. Forte abraço.