“Felizes os que guardam com esmero Seus preceitos e O procuram de todo o coração;
Vossa palavra é um facho que ilumina meus passos, uma luz em meu caminho”. Salmo 118, 2/105.
Neste tempo de descompromisso, de oferta das mais diversas possibilidades de vida, tantas fundamentadas no hedonismo, individualismo e outros malfadados “ismos”, Deus continua a suscitar fortemente no coração de homens e mulheres, o chamado a assumir a missão de ser família. E ser família no contraditório do mundo de hoje, face à desconstrução dos valores, desestruturação do homem e a depauperação da sua dignidade, tal como Deus o constituiu, é ser chamado a fazer a diferença.
Não precisa dizer da beleza do chamado, na riqueza das relações, no contemplar o nascer e crescer destes que nos alegram e encantam com seu desenvolvimento. A inenarrável satisfação em sentar juntos à mesa e, agradecendo, partilhar o pão, os sonhos, as experiências de cada dia. O prazer em escutar, perceber e caminhar juntos, de sentir, ouvir, tocar. Aplicar os sentidos, e sua satisfação, naquilo de mais vibrante que O Senhor desejou para nós, uma vida que se enriquece pela partilha de si, em sua totalidade.
Mas precisa dizer do que nos desafia nesta vivência. Pois, quando que se valoriza tanto o transitório, efêmero, provisório, somos chamados ao que se eterniza, Deus e sua vontade para conosco, que se revela em Sua Palavra.
Sou pai de uma família de cinco filhos, e somos cotidianamente desafiados no propósito de conduzi-la, de maneira a crescermos juntos no conhecimento da Palavra e, através dela, na experiência do encontro com O Ressuscitado que passou pela Cruz.
E você, caro leitor, pode achar que o que mais nos desafia nesta jornada é Satanás, bradando suas mais terríveis tentações, que quer colocar a perder nossa vida, matrimônio, vocação. E, de fato quer, mas, na dimensão da intimidade com a Palavra de Deus, no seio da nossa família, a ação do inimigo é muito mais sutil, bem disfarçada.
Temos sido fortemente desafiados, no cotidiano, em vencermos o que nos dispersa dos preceitos de Deus.
Poderíamos lembrar o uso das novas tecnologias, do comodismo de se colocar diante da tv, agora diretamente alimentada de todo o conteúdo da internet, ou do smartfone, que nos permite a conexão pelas redes sociais com os amigos mais distantes, o mundo inteiro colocado ao alcance dos dedos, enquanto completamente desconectados entre si, como família, com os que estão no mesmo ambiente.
Ou quem poderia julgar ilícito o legitíssimo direito ao descanso do casal, diante da estafante rotina diária, ou da criança ou jovem, cumpridora de suas obrigações, de investir suas horas livres, no entretenimento favorito? Isto se torna nocivo quando toma o espaço do salutar convívio familiar.
Vem a constituição dogmática Verbum Dei, nos iluminar: “Com efeito, nos livros sagrados, o Pai que está nos céus vem amorosamente ao encontro de Seus filhos, a conversar com eles; e é tão grande a força e a virtude da palavra de Deus que se torna o apoio vigoroso da Igreja, solidez da fé para os filhos da Igreja, alimento da alma, fonte pura e perene de vida espiritual. Por isso se deve aplicar por excelência à Sagrada Escritura as palavras: «A palavra de Deus é viva e eficaz» (Hebr. 4,12), «capaz de edificar e dar a herança a todos os santificados», (At. 20,32; cfr. 1 Tess. 2,13)”.
Poderemos, com toda propriedade, substituir o termo igreja, por família, já que esta é a igreja domestica, por excelência. A palavra de Deus que se torna o apoio vigoroso para a família.
E um apoio absolutamente indispensável, quando nos colocamos, na perspectiva do salmista, à procura de Deus, seguindo a Cristo. A figura do Ressuscitado nos indica um caminho para o coração do Pai, o da cruz. Ele nos leva a, por amor, fazermos opções firmes. O seguimento de Jesus nos impele a posições radicais, que se tornam incompatíveis com os princípios dos “ismos”. Para tanto, O Senhor nos dá o Seu Espírito e a Sua Palavra. Perceba que esta não é dada como um acessório, mas como apoio fundamental, já que se constitui no “facho de luz que ilumina meus passos”.
Na família, De forma privilegiada, Deus se revela pela sua palavra, que é viva e eficaz…
Nosso quarto filho, do alto de seus nove anos, ao ver-me sair para rezar com a bíblia debaixo do braço, me aborda: “Papai, na minha escola, estou aprendendo a encontrar na bíblia os livros, capítulos e versículos,… é muito legal”. Ao ouvir essa partilha, me sento e o chamo para mais perto para dizer, você sabia que o que está escrito na bíblia não são meras estórias, mas é uma forma de Deus interagir conosco? Sabia que nenhuma decisão importante na vida da nossa família é tomada sem que papai e mamãe escutem a Deus através de suas palavras nestes livros? E que até o seu nome, Emanuel, foi inspirado por ela? Ele abre um grande sorriso, como de cumplicidade ou de aprovação.
Aí se mostra um importante recurso na formação espiritual de nossos filhos, a socialização em um ambiente escolar que favoreça a afirmação de nossa cultura e religião católica. A despeito disto, as instituições de ensino católicas estão passando por grandes dificuldades, resultado da continuada crise por falta de alunos. Cederam lugar para a aguerrida competitividade das que “mais aprovam no Enem ou vestibular”, as que melhor preparam os profissionais do amanhã. É para isto que criamos nossos filhos? Para a conquista do mercado profissional?
Será a resposta a esta reflexão, coerente com as nossas atitudes, quando desejamos ardentemente o crescimento dos nossos filhos como pessoas íntegras, inteiras, nas dimensões de vida que lhe são essenciais, mas concebemos que as tarefas do cotidiano, nos roubem dos momentos de interação familiar?
Na comunidade, somos orientados a celebração semanal do Beracá, momento de oração e integração familiar, como ensina o Nicodemos Costa, e a Koinonia, ocasião de descontração e lazer, que nos ajuda a fomentar estas vivências de realização e partilha que precisam perpassar os nossos dias, de forma sistemática.
Imagino que leitura fará a criança que vê a família empenhada nas tarefas cotidianas, sem ocasião de se reunir para dar a Deus e Sua Palavra, o lugar central que lhe é devido. Sim, porque esta é muito mais formada pelo exemplo. E, não se engane, a criança é perceptiva e perspicaz. E mostra isso de forma despretensiosa.
Nosso filho mais novo, de quatro anos, João Rafael, se aproxima de mim momentos após se colocar em conflito com o irmão, seu grande parceiro de brincadeiras: “Papai, Emanuel me provocou até eu perder a paciência, e ‘toinoinoin’, dei uma porrada. Fiz certo ?!?”. Pensei por um instante, pedi-lhe que pegasse a bíblia, pois ela mesma lhe daria resposta. Tomando-a nas mãos, procurei a passagem, em Romanos 12, 17-21, onde São Paulo recomenda: “não pagueis a ninguém o mal com o mal, aplicai-vos a fazer o bem diante de todos os homens…triunfe do mal com o bem”. Olhando-lhe nos olhos atentos, devolvi a pergunta: “e aí, o que acha, fez certo ?”. Ele com um riso maroto, diz: “eh, não fiz certo, não. Devia ter pagado o mal com um bem…” E saiu saltitando pela casa, igual um cabrito, de volta as brincadeiras. Se o conceito paulino não ficar em sua memória, ao menos teremos conseguido ensinar que todas as respostas a seus questionamentos se encontram na bíblia. Desde que, e aí encontramos o cerne da questão, ele reconheça a prática disto no seio da família.
Quanta responsabilidade, não é, para simples vasos de argila?!?
Como podemos ser um real testemunho de família alcançada pelo Ressuscitado através da Palavra, se não a temos diariamente nas mãos, embasando os momentos de oração e na vida?
De que outra forma testemunhar para o mundo que somos conduzidos, consolados, animados por esta Palavra. E assim, nos tornemos famílias novas, responsáveis pela geração de um mundo novo?
Apartada desta vivência, A Palavra se torna letra morta, enfeite de estante. Pela falta de confiança e abertura para que “O Espírito, que opera tudo em todos”, a torne viva e eficaz em nossas famílias.
Peçamos, portanto, pela intercessão da Bem Aventurada Virgem Maria, Àquele que é poderoso para nos confirmar neste testemunho, que coloque sobre nós, a unção do Seu Espírito e nos renove a cada dia nos Seus dons, nos fazendo firmes e fiéis a determinação de, em tudo, nos deixarmos formar e conduzir pela Sua Palavra.
Shalom!
Delber Lopes Marcolino.
Discípulo da Comunidade Católica Shalom
Missão de João Pessoa.