Formação

Viver à luz da eternidade

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Quando me dispus a escrever este artigo, percebi que iria enfrentar dois grandes desafios: um deles seria encontrar um tempo para começá-lo e outro seria conseguir terminá-lo no prazo que me foi pedido. Então resolvi começar expressando este como um grande problema do homem de hoje, que pode se tornar motivo de angústia: encontrar um tempo a cada dia para realizar as coisas que deseja e as que deve fazer.

Para muitos de nós, é comum constatar ao fim do dia que a soma do que fizemos é inferior ao que ficou para o dia seguinte. O correr do tempo pode nos causar constantes sentimentos de culpa, pelos dias, semanas ou até anos que passamos sem fazer “aquela visita prometida”, ou escrever “aquela carta”. Afinal, por que o correr do tempo nos engole e angustia, roubando nossa paz?

Certamente, muitos acontecimentos batem à nossa porta: é-nos pedido tempo para tantas coisas e são tantos momentos que somos solicitados para partilhá-lo com alguém. Mas há Alguém muito especial que está sempre batendo á nossa porta, pedindo um pouco do nosso tempo, Alguém que bate à nossa porta não para tirar o nosso tempo, mas para partilhar o seu tempo conosco, e dar ao nosso tempo uma dignidade e uma perspectiva nova: a perspectiva da eternidade.

O uso muitas vezes inadequado da palavra “eternidade” fez com que muita gente passasse a evitá-lo como se fosse apenas um “tempo” de monotonia a ser vivido após o tempo desta vida. Mas a eternidade não é um determinado espaço de tempo. O tempo sim, é um espaço dentro da eternidade. E esta é uma dimensão esquecida pelo homem moderno, seleciona seu tempo e atividades sempre de acordo com sua própria razão, como se antes e depois dele nada existisse.

Um dos astronautas que foi à Lua na Apolo 15 testemunhou uma belíssima experiência da dimensão do homem diante de Deus ao perceber que além dele existe todo um universo que o supera: “À medida que chegava fisicamente ao céu, eu me sentia movido espiritualmente. À medida que voávamos para o espaço, adquiríamos um novo sentido de nós mesmos, da terra e da proximidade de Deus. Estávamos fora da realidade ordinária: senti o princípio de uma espécie de profunda mudança se operando em mim…Digo que se Deus governa o Universo com tal infinita precisão, controlando a moção dos planetas e das estrelas, isto é a realização de um plano perfeito para o espaço exterior.

Creio que Ele tem um plano perfeito para o espaço interior do homem, o seu espírito. Este plano foi manifestado quando Ele mandou o Seu Filho Jesus Cristo para morrer por nós, para perdoar os nossos pecados e mostrar que tem um desígnio para nossas vidas”. (Up there close to God, Col. J. B. Irwin, artigo em Faith at Work, dez, 1973).

São João Apóstolo ilumina diante de nós o mistério da eternidade no seu Evangelho: “No início era o Verbo, e o Verbo estava voltado para Deus, e o Verbo era Deus. Tudo foi feito por Ele, e sem Ele nada foi feito. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (Jo 1,1.3.14).

Deus é absolutamente eterno. Ele não está sujeito ao tempo. Ele é o criador do tempo, que é dado à criatura humana para conquistar a alegria de viver eternamente com Ele. Mas para que isto aconteça, Ele, que não está sujeito ao tempo, fez-se homem, sujeitou-se ao tempo humano para que ainda nesta vida possamos experimentar primícias da eternidade.

Sendo Deus Filho, Jesus existe eternamente, mas quando assumiu a natureza humana, sujeitou-se aos limites do tempo, sem no entanto escravizar-se a ele. Jesus tinha muitas atividades durante o dia, mas suas atividades estavam ordenadas segundo o amor a Deus e aos homens. A primazia do seu tempo era dada ao amor. E foi assim que trouxe, ao tempo do homem, a dimensão eterna.

Ainda hoje, quando abrimos nosso coração para receber Jesus que vem a nós pela sua Palavra, pela sua Eucaristia, e pela oração nós “tocamos” a eternidade. Em Jesus todo o nosso tempo adquire uma dimensão nova, não mais somente quantitativa, como uma sucessão de coisas que temos a realizar, mas uma dimensão qualitativa, a dimensão da Caridade.

São Paulo nos diz na sua Carta aos Coríntios que a Caridade jamais passará (cf. 1Cor 13,8). Cristo veio para dar a cada instante do nosso dia a dimensão da eternidade, a dimensão do Amor. De fato, quando fazemos algo por amor, parece para nós que o tempo não passa, e outras vezes ele se multiplica, porque as ações realizadas no Amor autêntico, no amor ungido por Deus, unem-nos ao próprio Deus que não está sujeito ao tempo.

Por isso, precisamos dar as primícias do nosso dia a Deus, para estar com Ele na oração, nos Sacramentos, no amor ao próximo. Não somos como as plantas e os animais, que vivem apenas o ciclo do nascer, crescer, reproduzir-se e morrer. Somos seres criados para a eternidade, e portanto chamados a transcender o tempo pela união com Deus, no Amor.

Nada pode dar a dimensão de eternidade à nossa vida, a não ser o próprio Deus. Nada pode nos arrancar do nosso ativismo, das nossas múltiplas ações, tantas vezes consideradas sem valor quando ao fim do dia vamos recordar o que fizemos, a não ser o próprio Deus.

É por isso que é preciso estar atentos à voz do Espírito Santo, para que Ele nos indique os momentos do nosso dia em que Cristo bate à nossa porta, nas situações mais corriqueiras, para dar ao nosso tempo e às nossas ações o valor eterno. Cristo é Alguém muito especial que está sempre batendo à nossa porta pedindo um pouco do nosso tempo, não para tirar o nosso tempo, mas para partilhar o seu tempo conosco, e dar à nossa vida o seu verdadeiro sentido.

Para quem se abre para escutar a voz de Deus a cada acontecimento, a vida não é uma sucessão de momentos de tédio, nem uma confusão de afazeres impossíveis de cumprir, mas é simplesmente o momento de amar concretamente a Deus e ao próximo.

Então nosso dia não será mais uma sucessão frenética de ações que podem ser interrompidas a qualquer momento pela visita da morte, porque aquele que está amando na verdade será como se não houvesse morrido: continuará unido a Deus pelo amor para sempre.

Fonte: Revista Shalom Maná

Ana Carla Bessa
Consagrada na Comunidade de Aliança Shalom


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