Você está interessado em estudar teologia com seriedade? Você quer dispor de tempo e de dedicação para mergulhar na ciência da fé? Você teve uma experiência com o sagrado que lhe amadureceu a ponto de suscitar em sua alma o desejo reto de dar a “razão da tua esperança”[1] a quem lhe instigar o testemunho? A semente da fé deu frutos e o trigo das Sagradas Escrituras cresceu no campo do fecundo do seu coração, impulsionado a sua alma a germinar de maneira inteligente? Junto com as melhores motivações, porém, pode se misturar o joio das motivações erradas. Aprenda a discerni-las, para que elas não sejam alimentadas ao longo deste percurso e para que não minem esta bela aventura.
Você já teve a impressão de fazer a coisa certa com a motivação errada? Isso pode acontecer mesmo com o que é indiscutivelmente “certo”, como aprofundar o conhecimento das coisas santas. Não perca do horizonte o fato de que as concupiscências, o mundo e o Adversário, continuam atuando, nos oferecendo uma batalha, ora grosseira ora sutil, em meio à contemplação de coisas elevadas e dignas, como a Palavra de Deus e a defesa da Sua existência. Oferecemos algumas reflexões, para te ajudar a fazer esse filtro.
- “Ter resposta para todas as perguntas”: essa expectativa sinaliza, no mínimo, uma ingenuidade, e no máximo um orgulho. Antes mesmo de ser um pressuposto arrogante, é uma ilusão sobre o método e a finalidade da teologia. Pois ela não é a ‘soma de tudo o que se pode dizer sobre Deus’, mas a humilde escuta da Revelação (o que Deus diz de si mesmo), tendo em mãos os instrumentos adequados. É importante ter a consciência de que existe também, ao lado da teologia afirmativa, uma teologia apofática, ou seja, um discurso a partir de tudo o que Deus não é. Debruçar-se sobre a Revelação não equivale, como em outras ciências, a conhecer a história das descobertas e invenções, as teorias mais aceitas, e criar sua própria teoria, se você for capaz. Ser cientista e possuir todas as respostas (imaginando que isso fosse possível) é o resultado de um misto de duas coisas: esforço e genialidade. Segundo Albert Einstein, 90% da primeira e 10% da segunda. Porém, independente da presença e do percentual desses elementos, é certo que a Teologia exige do teólogo 100% de relacionamento com Deus. Genialidade é dispensável. Afinal, Deus não é um elemento entre outros do mundo, mas Alguém que por amor se revelou e continua guiando, pela graça do Espírito Santo, os que são atraídos pela Verdade. Zerar as dúvidas e ter respostas na ponta da língua, não é a meta deste caminho, porque “Deus não é objeto de experimentação humana. Ele é um Sujeito e se manifesta apenas na relação de pessoa a pessoa: isso faz parte da essência da pessoa. O amor quer conhecer melhor aquele que ama.”[2] Quando você ama, você não ‘domina’ o Amado. Você não possui a Verdade, foi ela quem te conquistou.
- “Conquistar o status de teólogo”: Durante o primeiro milênio cristão, se envolver com o discurso sobre Deus era apaixonante e arriscado. Você poderia se tornar, nesses primórdios, um Doutor ou Padre da Igreja, ou ao contrário, um herege cujo nome ficaria pelos séculos na história. Porém a maioria dos teólogos fiéis ao Magistério continuam no anonimato. Há quem aspire à fama, mesmo que seja negativamente: “Falem mal, mas falem de mim!”, reza o dito popular. Um bom teólogo reza para não titubear e ferir a unidade da Igreja. Diagnostique nesse sintoma, pelo menos, o mal da autorreferencialidade, de que fala o Papa Francisco; ou a substituição do Theodrama pelo egodrama [3] Na antiguidade, não havia glamour em torno desse trabalho. A pureza da fé era uma questão vital para a Igreja que enfrentava, ao mesmo tempo, a perseguição externa e a erosão interna, sob a ameaça do arianismo, por exemplo. Na Idade Média, ser teólogo era um ofício meticuloso e áspero, sem impressora, máquina de datilografia e, sim, acredite, sem internet. Guttemberg inventou a prensa no século 15, e a internet (e com ela, os likes), na longa história da teologia, chegou há dois minutos atrás. Monges dedicavam suas vidas ao estudo, à transcrição, à guarda, e à transmissão da fé aos bárbaros. Pregar o Kerigma e ensinar a Doutrina a pagãos agressivos e resistentes ao Evangelho, não era top, clean ou cool. Que o digam os mártires de Uganda, do Japão e da Inglaterra.[4] Aspirar à teologia como carreira profissional não é errado, obviamente. Mas esvaziá-la do seu contexto de fé e moral, para usufruir dela sem se deixar transformar por ela, e sem a paixão apostólica pela missão, é tão perigoso quanto o farisaísmo e o narcisismo. No terceiro milênio cristão, o estudante de teologia faz o favor a si mesmo e ao povo de Deus, de desviar de todos os “ismos”, salvo o tomismo! Lembremos o que disse o Papa Francisco na audiência privada com a Comunidade Católica Shalom, em 2017: “A cultura em que vivemos é muito egoísta, tem uma dose muito grande de narcisismo. O narcisismo produz tristeza, porque significa maquiar a alma todos os dias. É a doença do espelho. Quebrem os espelhos, jovens”.[5]
- “Me saciar de conhecimentos”: Se o orgulho e a vaidade despontam nas duas primeiras motivações, aqui podemos falar de gula, espiritual e intelectual. Querer citar a Suma Teológica de cabeça, devorar os tratados, aprender todas as línguas antigas, conhecer a vida de todos os santos e Bíblia de trás pra frente, podem ser fruto de uma curiosidade mórbida, sem o sentido da oferta de vida e de dons. O intelectualismo torna o teólogo manco, e acaba por paralisá-lo, porque os seus outros membros e faculdades sofrem uma anemia e um nanismo. É como um Condor com asas de Beija-flor, capaz de ver muitas coisas belas e verdadeiras, mas incapaz de alcançá-las, porque essas asas – do amor a Deus e ao próximo (Cf. Mt 22,34-40) – não crescem através da leitura dos livros, mas na oficina da vida.[6] O Papa Francisco deixa claro: “A teologia é chamada a isto: não é uma dissertação catedrática sobre a vida, mas a encarnação da fé na vida”.[7] Basta-nos aqui, para concluir, citar o sensus fidei, o sentido comum dos fiéis batizados, que muitos de nós contempla nos próprios pais ou avós. Ou o exemplo de alguns santos que nunca estudaram teologia, mas viveram uma “teologia de joelhos” e obtiveram um conhecimento de Deus, em termos de Tomás de Aquino, por conaturalidade, uma experiência através do amor. A santidade, e não o saber por saber, deveria nos suscitar essa sã curiosidade: “Quero ver Deus!”[8]
Samuel Luz
Professor de História da Igreja do Instituto Parresia
[1] I Pedro 3,15: “Estai sempre prontos a responder para vossa defesa a todo aquele que vos pedir a razão de vossa esperança, mas fazei-o com suavidade e respeito.”
[2] BENTO XVI. Discurso na ocasião da entrega do Prêmio Ratzinger em 2011: http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2011/june/documents/hf_ben-xvi_spe_20110630_premio-ratzinger.html
[3] A ‘Theodramática’ é a abordagem típica de Hans Urs von Balthasar, para descrever o drama, a história escrita e dirigida por Deus (Theos) e envolvendo todas as criaturas do cosmos. A questão é que no grande palco que é o universo criado, cada um de nós é convidado a “atuar”, a responder a essa iniciativa de Deus encontrando e desempenhando nosso papel em Seu “teatro”.
[4] Alusão indireta a São Carlos Lwanga e companheiros, São Paulo Miki e companheiros, São João Fisher e São Thomas More. Este último, Chanceler do Reino de Henrique VIII, foi condenado à pena capital por se negar a reconhecê-lo como cabeça da Igreja da Inglaterra, e é considerado pela Igreja Católica como modelo de fidelidade à Igreja e à própria consciência, além de, para nossos propósitos aqui, um grande exemplo de recusa de status.
[5] PAPA FRANCISCO. Audiência Privada. 35 anos da Comunidade Católica Shalom. Disponivel em: https://comshalom.org/memoria-relembre-as-palavras-do-papa-francisco-a-comunidade-shalom-na-cidade-eterna/
[6] Moysés Azevedo: “A oficina de Deus é a vida.”
[7] PAPA FRANCISCO. Discurso aos membros da Comissão Teológica Internacional, 29 novembro 2019. Disponivel em: http://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2019/november/documents/papa-francesco_20191129_commissione-teologica.html
[8] “Quero ver Deus” é uma expressão tirada de uma passagem da vida de santa Teresa de Jesus, doutora da Igreja, em que ela, ainda criança, tenta fugir de casa para encontrar o martírio junto aos mouros, e responde aos pais o motivo da sua expedição: “Eu parti porque quero ver Deus, e para ver a Deus é preciso morrer.” Este é também o título da obra de teologia mística do Bem-aventurado Frei Maria Eugênio do Menino Jesus. Cf. Marie-Eugène de L’E.J., Je veux voir Dieu, pg. 25. Editions du Carmel, Venasque 1949.