Ucrânia, julho de 2004: Viktor Yushchenko parece mais um ator de Hollywood que candidato da oposição ao governo do seu sisudo país.
Setembro de 2004: o mesmo Yushchenko, da mesma Ucrânia, estampa no rosto inchado e deformado as pústulas provocadas Deus sabe por qual vírus ou veneno. Os cabelos, antes louros e viçosos, estão esbranquiçados e menos abundantes.
Olhar as duas fotos do mesmo Yushchenko traz à mente – ao coração? – duas reflexões: a fragilidade invencível do homem, exposto seja ao vírus oportuno ou ao veneno que persegue os mais poderosos políticos há séculos, traídos por seus companheiros mais íntimos e, em paralelo, a deformação causada pelo pecado, que há milênios persegue o mais prosaico dentre os homens, traído por si mesmo e pelo inimigo de Deus que se faz de seu íntimo amigo. Não estou dizendo que as pústulas de Yushchenko foram causadas pelo seu pecado. Não! Explico-me: o que há em comum entre as pústulas de seu rosto e o pecado é o tremendo poder de deformação do homem.
Quando a gente fala de pecado vêm à mente crimes hediondos, ataques terroristas, roubos espetaculares, guerras fratricidas, torturas revoltantes. Raramente vêm as ofensas nossas de cada dia, variantes do orgulho, pecado que deu origem a todos os outros, ofensa pessoal a Deus que deu origem a todas as ofensas em todos os tempos: a indiferença à bondade de Deus, que se chama ingratidão; a falta de confiança no cuidado de Deus para conosco, que se chama falta de fé; a contumaz teimosia – com todo seu pleonasmo – em confiar mais nas nossas próprias forças e capacidades que no poder e providência de Deus para conosco; a mágoa, que faz a gente esquecer-se das centenas de vezes que fomos perdoados e nos impede de perdoar o irmão. Em uma palavra: o desejo desordenado por poder sempre mais, ter sempre mais, “curtir” sempre mais, sem pensar no outro, sem pensar em Deus.
Estas atitudes tão comuns no dia a dia da quase totalidade das pessoas vão, tal qual as pústulas do Yushchenko, deformando seu interior, fazendo-o inchar de amor a si mesmo a partir de dentro da alma. Seu inchaço explode a cada milímetro em pequenos tumores que o fazem agarrar-se a si mesmo, ao dinheiro, às pessoas, à imagem, ao prestigio, ao desempenho sexual. Na aparência, tornam-se mais bonitos, mais atléticos, mais produzidos por tudo o que, em uma visão superficial, conquistaram. No interior, porém, são peremptoriamente minados pelas tais pústulas inclementes que eles mesmos provocaram.
O pior é que estes tumores – tal como canceres traiçoeiros e silenciosos – não doem. Pelo contrário. Paradoxalmente, provocam prazer, auto-satisfação, sensação de bem-estar, de sucesso, de conquista. Além do próprio Deus, que os vê e sofre por eles, somente os homens que oram conseguem vê-los em si e nos outros. Estes, porém, ainda que os denunciem, raramente são ouvidos. Quem é que, no auge do sucesso e bem-estar consigo mesmo, no cume do brilho da beleza e juventude, vai ouvir um homenzinho qualquer, sem prestígio, feio, pobre e desprezado e que, ainda por cima, fala de renúncia a si mesmo pelo bem do outro, fala da estreiteza do caminho e da porta, ensina a escolher o segredo escondido no amargo?
Ninguém o ouviria! Por isso é difícil a um homem cheio de si ter a vida eterna. Por isso é mais fácil fazer um camelo passar pelo buraco de uma agulha, como diz Jesus sobre o homem cheio de si. O homem, coitado, prefere o prazer momentâneo dos valores voláteis preconizados por seu egoísmo que a conquista permanente dos valores enraizados na doce-amarga renúncia do amor.
Pústulas… visíveis no belo rosto de Yushchenko. Invisíveis no coração do homem. Resultado, ambas, de venenos e vírus inculcados por inimigos. Fruto, em ambos os casos, de alguém cego pelo orgulho, que preferiu amar a si mesmo a amar a Deus e ao outro.
Yushchenko, cedo ou tarde, voltará a ter seu belo rosto de star. Um bom médico, bons remédios, talvez uma plástica e… tchan, tchan! Fica ainda melhor que antes e ainda vira manchete!
Quem dera sua cura venha a ser uma profecia da cura das pústulas interiores do homem de hoje. Aquela a que chamamos “salvação”. Aquela conquistada exatamente por um Deus que escolheu o caminho estreito, a porta estreita que recusamos. Que uniu-se à humanidade pela via da pobreza, do desprezo, da humilhação, da morte injusta, ensinando que a renúncia a si mesmo para o bem do outro é o único caminho que o amor conhece. A única cura. O único meio de devolver ao nosso deformado rosto interior a beleza que caracteriza um filho de Deus.
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Maria Emmir Oquendo Nogueira
TT @emmiroquendo
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Coluna da Emmir – comshalom.org
Entrelinhas – Revista Shalom Maná
(Out 2008)