Formação

O Anão

comshalom

18h

São Tomé, um dos meus santos preferidos, não somente pela experiência que tivemos na Fenda da Rocha¹, mas porque em muitas coisas temos almas gêmeas, o que nos leva a ter longas conversas sobre o amor e a fé. Não é ele o santo deixado pelo Senhor para consolar com sua vida e seu nome – Dídimo, gêmeo – tantos anões como nós?

Explico-me: Conta-se que um anão de baixíssima estatura, o menor dos anões que já existiu, vivia sobre a cabeça de um altíssimo e fortíssimo gigante. De seu algo posto, enxergava, ao longe, vales e colinas e era capaz de dizer com segurança onde iriam dar os caminhos abertos nas relvas e florestas. Era comum que viajantes o consultassem acerca do melhor trajeto, de possíveis chuvas e geadas, de perigos de animais selvagens. Como enxergava longe, suas respostas eram sempre sábias e acertadas. Ajudou a um sem número de mortais de estatura normal, nosso anão no topo da cabeça do gigante.

Porém, como não há altura que o orgulho não alcance, nosso anão pôs-se a pensar como Deus era bom por tê-lo feito tão sábio. Como Deus o amava por ter-lhe dado a generosidade de estar sempre à disposição dos viajantes. Como o Espírito Santo o privilegiava com uma visão aguçada do mundo que nem mesmo o pobre gigante, cujos olhos ficavam dois metros abaixo (testa de gigante, lembrem-se, é gigantesca!), conseguia ver.

Claro! Tendo boa informação sobre a fé, atribuía a Deus a origem de tantos benefícios, talentos, capacidades e dons. Entretanto, como sua fé era bem informada, mas não bem formada pela vivência da humildade, o infeliz anão passou a achar que a virtude constava em não somente acolher os dons de Deus com alegria, mas incorporá-los a si, apossando-se deles. Não o fazia por mal, nem confessava o que pensava sobre si, nem mesmo ao gigante que o abrigava. Assim como o inferno, seu coração era cheio de boas intenções e más motivações.

Um belo dia, desceu, veloz e decidido, pelos cabelos do gigante enquanto este dormia sobre uma relva plana. Logo foi postar-se à beira do caminho, pronto a colocar sua insólita sabedoria a serviço dos caminhantes.

Enquanto ainda guardava na memória as informações sobre os caminhos, não errava uma só e ouvia, todo contente, dos passantes, frases como: “Ah! Então é você aquele que nos dava informações do alto da cabeça do gigante! Quanta sabedoria! Muito obrigado! É mesmo uma boa ideia você ter vindo aqui para baixo. Está mais perto. Não precisamos gritar. Obrigado! Você é, realmente, uma pessoa maravilhosa, um santo!”

E o anão, certo de ter um pensamento cheio de humildade, orava: “Obrigado, Senhor, por me ter feito tão sábio, maravilhoso e santo!” Até citava o Salmo 139: “Que maravilhas, meu Senhor, sou eu”. Logo passou a acrescentar: “Obrigado, Senhor, também por este dinheiro que os caminhantes me dão. É bem verdade que o operário é digno do seu salário”, acrescentava, em seu hábito de sempre citar a Bíblia, o que lhe adicionava prestígio e segurança.

Passaram-se as estações. O inverno cobriu os caminhos, a primavera os invadiu com suas flores e as trilhas, agora cobertas por mil cores, insistiam em curtir sua nova beleza sem mais revelar sua nudez a quem estava ao nível do chão. Nosso anão se colocava na ponta dos pés, subia nas pedras, pedia aos caminhantes para elevá-lo acima de suas próprias cabeças, mas não via muito mais que eles. Sua pouca estatura – ainda que elevada pelos passantes – não era suficiente para enxergar do alto as trilhas agora semi cobertas.

Sem querer dar o braço a torcer, começou a errar em suas informações. Um de seus erros levou um grupo de viajantes a perder-se durante quarenta dias na floresta, onde alguns foram devorados por animais selvagens. De outra vez, conduziu um adolescente a um despenhadeiro fatal. Outro de seus erros levou um casal a andar em círculos e perder a criança, que estava para nascer. Logo, sua má fama espalhou-se por toda a região: embusteiro, cego, vesgo, interesseiro, irresponsável.

Certo dia, nosso anão caiu em si. Percebeu o óbvio: sua visão privilegiada vinha do fato de estar na cabeça do gigante. Pôs-se, então, a caminho em busca daquele que o sustentara por tantos anos e de quem sequer se despedira. Suas pernas muito curtas, porém, exigiam um tempo enorme para alcançar o que uma só passada do gigante galgava em um segundo. Além disso, não tinha noção do caminho a seguir. Rezou todos os salmos pedindo socorro de que se lembrava, mas o Senhor, que eleva o humilde e abaixa o soberbo, que ouve a oração do pobre e é surdo à oração dos orgulhosos, o amava demais para deixá-lo na ilusão da onipotência e ele jamais encontrou o gigante, até aquietar-se, já idoso e solitário, dedicado agora a buscar a verdade.

Voltando a Tomé, nosso dídimo, nosso gêmeo em nosso nanismo: ao isolar-se, ao ausentar-se, Tomé desceu da cabeça do gigante, passou a ter uma visão individualista e nanica. Isolado da comunidade dos apóstolos, da Igreja, do corpo, aferrou-se à sua própria visão, ao nível de sua estatura nanica. Os frutos: falta de fé, isolamento, desespero, depressão, desilusão com relação a Jesus e à comunidade, revolta com relação ao tempo perdido, fechamento.

Gêmeos dele, também nós, tantas vezes e por tantos motivos, descemos da cabeça do gigante e, isolados, desprotegidos com relação à verdade, passamos a analisar tudo a partir do nosso orgulho e sentimento de onipotência. “Descemos da cabeça” do grupo de oração, da Comunidade, da Igreja, da família e partimos, cegos que creem ver claro, perdidos que creem saber o caminho, certos de que somos donos da verdade. Não somos!

¹Livro publicado pelas Edições Shalom

 

Maria Emmir Oquendo Nogueira
TT @emmiroquendo

Facebook/ mariaemmirnogueira
Coluna da Emmir – comshalom.org
Entrelinhas – Revista Shalom Maná

(Julho 2009)


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