Sabemos que os dois primeiros capítulos do Gênesis tratam, com duas tradições diferentes – uma tradição mais recente presente em Gn 1,1-2,4, e uma mais antiga, retratada em Gn 2,4-25[1] –, da criação do homem. Uma análise atenta ao processo criador de Gn 1 nos faz perceber que Deus constrói, passo a passo, um ambiente no qual o homem possa habitar: primeiramente há um processo de separação[2]; em seguida, a criação dos seres, que vai como que em um caminho progressivo, do inanimado (luzeiros do céu vv. 14-19) àqueles dotados de uma animação sempre mais marcada – vegetais, animais –, culminando na criação do homem. Poderíamos resumir este processo criador, segundo os dias da criação, da seguinte forma:
1°- a luz é separada das trevas (vv. 3-5)
2° – as águas superiores são separadas das águas inferiores (vv. 6-8).
3° – o mar separado da terra seca (vv.9-10); a vegetação aparece sobre a terra (vv. 11-13).
4° – são criados os luzeiros no céu (vv. 14-19).
5° – são criados os animais nas águas e no céu (vv. 20-23)
6° – são criados os animais terrestres (vv. 24-25); o homem é criado (vv. 26-31)[3].
Este esquema nos ajuda a constatar a particular colocação do homem no complexo da ação criadora de Deus. Todavia, neste capítulo temos mais alguns elementos importantes a serem analisados.
Em Gn 1,26 vemos que o homem é o único “ente” a ser criado à imagem e segundo a semelhança de Deus[4]. O fato de ser imagem, indica que pode entrar em diálogo com Deus, e que não pode subsistir independentemente daquele a quem deve exprimir. Em outras palavras, por ser imagem, o homem deve «voltar-se para aquele cujos traços reflete»[5]. Por conseguinte, todo atentado contra o homem é, de certo modo, uma ação contra o desígnio do Deus criador e o homicídio é um crime contra a imagem de Deus (cf. Gn 9,6). Um grande biblista Italiano, Gianfranco Ravasi, faz um comentário que sintetiza o binômio “imagem-semelhança”, trazendo luz para uma melhor compreensão de quem seja o homem aos olhos divinos. Assim afirma:
«Em hebraico o primeiro termo alude à uma estátua e sublinha a profunda conexão com o objeto representado; o segundo, por sua vez, exclui a identidade total. O homem é como Deus, mas não é Deus. Por conseguinte, a via privilegiada para conhecer a Deus é o homem; é a sua representação mais semelhante»[6].
Como forma de enfatizar ainda mais a particularidade do homem no âmbito da criação, o v. 26 conclui dizendo: «que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra». Ou seja, todo o criado foi destinado a ser submetido àqueles nos quais foi impressa, de modo particular, a imagem divina. Poderíamos dizer que é exatamente por graça da imagem divina, e por conseguinte, de sua vocação particular, que tudo lhe foi submetido.
Um outro elemento importante pode ser percebido no v. 27, trata-se de um verbo hebraico bᾱrᾱ‘. Este verbo, que indica o ato criador – comumente traduzido por criar –, é bem específico e possui ao menos três características que lhe atribuem um forte sentido teológico:
1 – só Deus é o sujeito de tal verbo;
2 – o resultado desta ação é algo novo e extraordinário;
3 – Deus age, neste verbo, sem nenhuma mediação[7].
Se observarmos o texto hebraico do Gênesis perceberemos que no ato criador, descrito em Gn 1,27, por três vezes aparece o verbo bᾱrᾱ‘. Tal insistência também está a indicar a particularidade do homem, que foi criado, em um mesmo ato – segundo Gn 1 –, como homem e mulher. Como que para coroar a ação criadora realizada neste sexto dia, o Senhor não somente repete a sua admiração como antes – dizendo: “é bom” –, mas desta vez diz que «é muito bom» (Gn 1,31). O termo hebraico aqui subjacente – comumente traduzido por bom – é tôb, que indica não somente algo bom, mas também belo, nobre[8]… sendo assim, a partir da contemplação divina da criação, realizada ao final do sexto dia, compreendemos que o homem, de certo modo, dá beleza, nobreza e mesmo bondade à toda obra criadora.
Apesar da brevidade do artigo, podemos concluir dizendo que estes elementos apresentados nos permitem intuir a grandeza do homem e de sua vocação diante de Deus; o Senhor o coloca como ápce da criação, lhe prepara um ambiente, cria-o com um verbo hebraico cujo resultado é uma obra maravilhosa e, para completar, o Senhor mesmo dá a sua percepção da criação dizendo: «é muito bom!». Através do homem, algo de muito bom foi introduzido na criação; nele a criação é como que coroada. Pela riqueza contida nas palavras de Deus: «é muito bom!», podemos tocar algo da alegria divina, presente em seu ato ao criar alguém que é «sua imagem e segundo a sua semelhança».
Por Elton Alves
Teólogo, Consagrado na Comunidade de Vida Shalom
[1] Tradição Sacerdotal e Javista; para o estudo e aprofundamento destas tradições ver: F. García López, O Pentateuco, Editora Ave-Maria, São Paulo 2006.
[2] Termo bem característico da teologia sacerdotal.
[3] P. Grelot, Homem quem és?, Editora Paulinas, São Paulo 1980, 42.
[4] Gn 1,26: «Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra”».
[5] P. Grelot, Homem quem és?, 43.
[6] G. Ravasi, El libro del Génesis (1-11), Editorial Herder, Barcelona 1992, 50.
[7] Cf. G. Trenker, «Creazione» in Bauer J. B., Dizionario di teologia biblica, Morcelliana, Brescia 1969, 321.
[8] Cf. L. Alonso Schökel, «טוֹב», in Dizionario di ebraico biblico, San Paolo, Cinisello Balsamo 2013, 311.
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