A dimensão sacrificial da Eucaristia sempre foi um tema central da história da teologia, exposta claramente por muitos, problematizada por alguns e reafirmada veementemente pelo magistério eclesial.
Os novos termos utilizados pelo Concílio de Latrão abriram à teologia uma nova linguagem para poder se falar do mistério eucarístico. Essa nova linguagem, de influência da filosofia aristotélica, é utilizada abundantemente por Santo Tomás de Aquino, possibilitando-o dar uma riquíssima contribuição na compreensão da teologia do mistério eucarístico.
Doutrina eucarística
A doutrina eucarística do Concílio Lateranense IV pode ser resumida nas seguintes afirmações: Jesus Cristo é sacerdote e sacrifício; sob as espécies do pão e do vinho, seu corpo e sangue são contidos verdadeiramente no sacramento do altar; pelo poder divino, o pão é transubstanciado no corpo e o vinho no sangue; recebemos o corpo e sangue do Senhor para realizar plenamente em nós o mistério da unidade com Cristo Salvador [1].
Percebemos, no que concerne ao aspecto sacrificial da Eucaristia, que o Concílio identifica Jesus como sacerdote, ou seja, aquele que oferece o sacrifício eucarístico, e como vítima, ou seja, a oblação oferecida no sacrifício eucarístico. Jesus, enquanto sacerdote e sacrifício, é identificado sob as espécies eucarísticas.
O Concílio Lateranense IV usa termos novos para falar da doutrina eucarística: “espécies”, no sentido de aparência, e “transubstanciação”, não mais de uma “conversão substancial”. Essa nova linguagem, de influência da filosofia aristotélica, é adotada pelo Magistério da Igreja e usada abundantemente na doutrina eucarística de Santo Tomás de Aquino.
A Eucaristia em Santo Tomás
A doutrina de Santo Tomás de Aquino sobre a Eucaristia na Suma Teológica é bem ampla [2]. Todavia, trata nessa obra acerca do aspecto sacrificial do sacramento da Eucaristia de um modo bem específico em somente um artigo, ao analisar se é possível falar em imolação de Cristo na celebração deste sacramento [3].
Muito provavelmente Santo Tomás não tratou mais amplamente a dimensão sacrificial da Eucaristia pelo fato de na sua época não haver oposições entre o sacrifício e o sacramento da Eucaristia. Todavia, trata de um modo mais amplo sobre os sacrifícios de um modo geral e o sacrifício de Cristo em si [4].
O sacrifício
Ao falar da dimensão sacrificial da Eucaristia, ele recorre inicialmente a uma frase de Santo Agostinho: “Cristo foi imolado uma só vez em si mesmo, contudo cada dia é imolado no sacramento” [5]. Vemos aí a profunda relação existente entre a Eucaristia e o sacrifício de Cristo. Pelo sacramento da Eucaristia, o único sacrifício de Cristo se torna presente a cada dia.
A imolação
Santo Tomás explica que a Eucaristia é chamada imolação de Cristo por duas razões. Primeiramente, “a celebração (…) deste sacramento é uma certa imagem representativa da paixão de Cristo, que é uma verdadeira imolação” [6]. Explicando seu pensamento, ele cita Santo Ambrósio: “Em Cristo, foi oferecida uma só vez a vítima eficaz para a salvação eterna. Que fazemos então? Porventura não a oferecemos todos os dias em comemoração de sua morte?” [7]
Primeiramente, Santo Tomás explica que “a celebração (…) deste sacramento é uma certa imagem representativa da paixão de Cristo, que é uma verdadeira imolação”. Complementa com o pensamento de Santo Ambrósio: “Em Cristo, foi oferecida uma só vez a vítima eficaz para a salvação eterna. Que fazemos então? Porventura não a oferecemos todos os dias em comemoração de sua morte?” [8]
A segunda razão está relacionada ao efeito da Paixão: “por este sacramento tornamo-nos participantes do fruto da paixão do Senhor [9]”, que é a redenção. Assim, o mistério da redenção é renovado em nós a cada vez que celebramos a memória do sacrifício de Cristo.
Ele explica também que, quando o livro do Apocalipse fala de “todos aqueles cujo nome não está inscrito, desde a fundação do mundo no livro da vida do Cordeiro (Ap 13,8), pode-se concluir que, de certa maneira, Cristo era imolado também nas figuras do Antigo Testamento [10]”. Percebemos aí a ideia de prefiguração do sacrifício de Cristo na Antiga Aliança.
O altar
Santo Tomás também encontra aspectos sacrificiais da Eucaristia relacionando o altar onde é celebrado o sacramento da Eucaristia com a cruz de Cristo, pois “da mesma maneira que a celebração desse sacramento representa a paixão de Cristo, assim também o altar representa a cruz, onde Cristo foi imolado em sua própria imagem” [11].
Valiosas contribuições
Ele também desenvolveu o tema sacrificial da Eucaristia na composição de hinos eucarísticos [12]. Todavia, não tratou de modo tão amplo acerca do aspecto na Suma Teológica.
Isso muito provavelmente, como já dito anteriormente, pela ausência em sua época de tantas oposições teológicas entre o sacrifício de Cristo e o sacramento da Eucaristia. Fortes oposições se levantarão posteriormente, sobretudo com a teologia protestante, que levará o Concílio de Trento a um posicionamento magisterial sobre o tema, que será tratado ainda amplamente por magistérios posteriores.
Sabemos que a discussão teológica sobre a Eucaristia em Santo Tomás estende-se ainda sobre outras dimensões desse sacramento, mas nos limitamos a abordar aqui sua contribuição acerca da dimensão sacrificial da Eucaristia, visto se tratar de uma dimensão primordial desse sacramento, que não deve ser negligenciada, seja na compreensão teológica da Eucaristia, seja na prática litúrgica.
[1] Cf. CONCÍLIO DE LATRÃO IV. “A fé católica”. In: DENZINGER, Heinrich; HÜNERMANN, Petrus. Compêndio dos Símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas, 2007. n. 802.
[2] Cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.73-83.
[3] Cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.83, art.1.
[4] cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.85; III, q.48, a.3; III, q.85, a.3. Sobre o sacrifício de Cristo em Santo Tomás de Aquino, cf.: SESBOUÉ. Jesucristo el Único Mediador. p.352-355.
[5] AGOSTINHO. “Sententiarum Prosperi”. In: STh. III, q.83, art.1, c.
[6] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.83, art.1, c.
[7] AMBRÓSIO. “Epistolam ad Heb”. STh. III, q.83, art.1, c.
[8] Ambrósio e Tomás de Aquino não ignorava a problemática sobre a unicidade do sacrifício de Cristo em relação à multiplicidade das celebrações eucarísticas. Todavia, julgavam já ter encontrado explicações suficientes para explicar contraste. Cf. ROGUET, Aimon-Marie. “Os Sacramentos da Fé”. Introdução e notas do Vol. 9 da Suma Teológica. p. 428. Cf. Nota.
[9] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.83, art.1, c.
[10] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.83, art.1, c.
[11] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.83, art.1, ad.2.
[12] Cf. https://comshalom.org/os-hinos-eucaristicos-de-santo-tomas-de-aquino/
___________
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DANTAS, João Paulo de M. Filhos no Filho. Uma Introdução aos Sacramentos da Iniciação Cristã. Aquiraz: Shalom, 2012.
DENZINGER, Heinrich; HÜNERMANN, Petrus. Compêndio dos Símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas, 2007.
SESBOÜÉ, Bernard. Jesucristo, El Único Mediador. Ensayo sobre la redención y la salvación. Tomo I. 2ª Edición. Salamanca: Secretariado Trinitario, 2010.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Vol.VI e IX. II-II e III. São Paulo: Loyola, 2005.
___________
Padre Rômulo Castro | Missionário da Comunidade de Vida Shalom
Leia também
Santo Tomás de Aquino explica a circuncisão e a apresentação no Templo
4 razões para as chagas no corpo de Cristo Ressuscitado, segundo Santo Tomás de Aquino