A imagem de diabinhos que, com seus tridentes, torturam as almas danadas no inferno, bem como a imagem de almas esqueléticas, sedentas por uma gotinha de água morrendo de sede no purgatório, povoam o imaginário popular cristão. O mundo das artes já representou em imagens belíssimas e impressionantes o destino das almas, como Fra Angélico (1395-1455) ao pintar a dança dos santos no Céu, mas também Peter Paul Rubens (1577-1640) ao representar a queda dos condenados no inferno, ou ainda Gustavo Doré (1832-1883) nas suas pinturas do purgatório feitas em preto e branco mostrando as almas sedentas buscando um pouco de água à beira de um riacho.
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Uma das pinturas do purgatório que me mais me impressionam é a realizada por Alonso Cano (1601-1667), em óleo sobre tela, representando as benditas almas do purgatório desconsoladas e voltando seu olhar ansioso para o alto. Esta me parece significar melhor o que estas almas benditas vivenciam. O purgatório não é um pouquinho do inferno. Não se trata do ‘’mesmo fogo’’. O Catecismo da Igreja Católica ensina:
“Os que morrem na graça e na amizade de Deus, mas não de todo purificados, embora seguros da sua salvação eterna, sofrem depois da morte uma purificação, a fim de obterem a santidade necessária para entrar na alegria do céu.” (CIC 1030)
O purgatório é um estado da alma, a alma é purificada por Deus a fim de comparecer em sua presença toda santa, toda pura, toda repleta de amor. A própria alma ao ver seu estado, ao comparecer no seu julgamento particular, deseja essa purificação. Essa purificação é dolorosa, porque a alma, iluminada pela Suma Verdade, percebe o quanta foi negligente no acolhimento da graça de Deus, e sofre por ter desperdiçado o tempo de sua vida terrena, ou melhor, por não ter aproveitado cada instante para deixar-se amar por Deus e para amar a Deus em gratidão. Vamos pedir a ajuda dos santos para compreendermos melhor. Vejamos em primeiro lugar a experiência que Santa Faustina teve de uma visão do purgatório:
“Vi meu anjo da guarda que me mandou acompanhá-lo. Imediatamente me encontrei num lugar enevoado, cheio de fogo e, dentro dele, uma multidão de almas sofredoras. Essas almas rezam com muito fervor, mas sem resultado para si mesmas. Apenas nós podemos ajudá-las. As chamas que as queimavam não me tocavam. O meu anjo da guarda não se afastava de mim nem por um momento. Perguntei a essas almas, então, qual era o seu maior sofrimento. Responderam-me, unânimes: ‘nosso maior sofrimento é a saudade de Deus!’”(Diário de Santa Faustina, n.20)
A saudade de Deus! A saudade de Deus! Quantos dias se passaram em suas vidas em que abafaram essa saudade de Deus no ativismo, na azáfama, no barulho interior e exterior, na oração vivida de forma puramente automática, permitindo que seus corações fossem se endurecendo pouco a pouco e tornando-se preguiçosas para a vida interior. Já não queriam mais parar e ficar com o Amado de suas almas, entediavam-se porque seus corações haviam se tornado insensíveis à presença do Esposo. Alimentavam seus corações com ninharias, com migalhas e não com o sólido alimento da Palavra de Deus e do Senhor na Eucaristia, adorando-O. Assim, foram perdendo o fervor, o amor foi se tornando muito calculado, fruto de inúmeros raciocínios: não faziam mais loucuras de amor! Começaram a olhar a própria vida de forma puramente natural, angustiando-se facilmente, entrando em um turbilhão de preocupações com as coisas que passam. O amor esfriou, estavam anestesiadas e nem perceberam…
Nos damos rapidamente conta de que somos muito fracos e caímos facilmente da vida sobrenatural para a vida puramente natural, com pequenos episódios mais ou menos intensos da graça. Como viver, então, uma vida santa? Parece loucura sonhar com ela, para almas fracas como as nossas. Uma outra santa viveu essa experiência antes de nós, e ela conta:
“Jesus, Jesus, como pode uma alma imperfeita como a minha aspirar à plenitude do Amor? Oh, Jesus, meu primeiro, meu único Amigo, a quem amo UNICAMENTE, diz-me que mistério é esse? Considero-me como um fraco passarinho coberto apenas com uma leve penugem. Não sou águia; dela tenho apenas os olhos e o coração, pois apesar de minha pequenez extrema ouso fixar o Sol do Amor. (…) No entanto, muitas vezes a imperfeita criaturazinha deixa-se distrair de sua única ocupação. Pega um grãozinho à direita, outro à esquerda, corre atrás de um vermezinho…molha suas penas mal formadas em uma poça de água suja… enfim, não podendo planar como as águias, o pobre passarinho ocupa-se das bagatelas da terra. Contudo, depois de todos esses pequenos desvios, ao invés de ir esconder-se num canto para chorar sua miséria e morrer de arrependimento, o passarinho volta-se para seu Amado Sol, apresenta a seus raios benfazejos as asinhas molhadas, geme como a andorinha, e em seu doce canto, confia, conta com detalhes suas infidelidades, pensando, em seu temerário abandono, adquirir assim maior influência, atrair mais plenamente o Amor daquele que não veio chamar os justos, mas os pecadores…” (Santa Teresinha do Menino Jesus, Manuscrito B, n.260-261)
O passarinho -a alma fraca mas apaixonada por Jesus- encontrou o segredo do Céu: relaciona-se desde já com o Senhor, em inteira confiança e abandono. Não se contenta com as migalhas, corre para Jesus. Fala, conta, chora, confessa, conversa, explica, olha, contempla, escuta…e assim canta, celebra, louva, canta as misericórdias do Senhor. Vive de Misericórdia, e sem perceber, vai-se transformando num passarinho ágil, numa alma virtuosa, amante, louca de amor, capaz de tudo para amar seu Amado. Cairá muitas vezes, mas ela é ousada: acredita que a força do Seu Divino Esposo é maior do que o abismo de sua miséria. Levanta-se sempre, pois só tem a Ele: para onde iria, só Ele tem palavra de vida eterna! (cf. Jo 6,68) Nossa santinha explica ainda:
“Minha loucura consiste em esperar que teu Amor, Jesus, me aceite como vítima… minha loucura consiste em suplicar às águias, minhas irmãs, que me obtenham o favor de voar até o Sol do Amor com as próprias asas da Águia Divina…Por tanto tempo quanto quiseres, oh, meu Amado, teu passarinho ficará sem forças e sem asas. Permanecerá sempre com os olhos fixos em Ti; quer ser fascinado por teu divino olhar, quer se tornar presa de teu Amor.” (Santa Teresinha, Manuscrito B, n.264)
Agora preste bem atenção no que diz Santa Teresinha, esse passarinho que voou até o Sol do Amor com as asas da divina Águia:
“Oh, Jesus! Se eu pudesse dizer a todas as almas pequeninas quão inefável é a tua condescendência! Sinto que, se por um absurdo, encontrasses uma alma mais fraca, mais pequenina do que a minha, ficarias feliz por cumulá-la de favores ainda maiores, desde que ela se abandonasse com inteira confiança à Tua Infinita Misericórdia! (…) Suplico-te abaixar teu olhar divino sobre um grande número de almas pequeninas…suplico-te escolher uma legião de pequenas vítimas dignas de teu AMOR!” (Santa Teresinha, Manuscrito B,n.265)
Eis o segredo do Céu. Não arranjar desculpas para a própria mediocridade, para o amor que vai esfriando. Não achar que é normal ser morno. Não se desculpar ao ver o contratestemunho de pobres irmãos que estão lutando mas caem. Mas ousar crer que Deus é tão Deus que pode transformar um tíbio em um grande santo. Sim, Deus pode incendiar nossa alma de novo! Podemos fazer loucuras de amor, com a graça de Deus! “É pela graça que sois salvos, por meio da fé.” (Ef 2,8). “É pela graça de Deus que sou o que sou, e a sua graça, que me foi concedida, não foi em mim vã!” (I Co 15,10) Chegaremos no Céu e gritaremos de alegria ao dizermos: sim, não foi em vão a graça de Deus na minha vida, é pela graça de Deus que me tornei o que me tornei, o santo que Deus queria que eu fosse! Sou feliz, Deus venceu em mim! E Escutaremos o grito feliz do Esposo: “Vinde, benditos de meu Pai, possuir por herança o Reino que para vós foi preparado!” (Mt 25,34)