A criação em Gn 2,4b-25
Enquanto a ação criadora de Gn 1 ressalta a força da palavra divina que, ao ser pronunciada, faz com que as coisas venham a existência, Gn 2 apresenta a ação divina de modo antropomórfico: Deus “tem mãos”, “toca o barro”, modela o homem. O primeiro verbo utilizado em Gn 2,7 é ʽᾱśâ, que indica a fabricação manual, como o oleiro que modela o vaso. Em seguida porém, vemos um ato divino extraordinário: Deus «insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente». Daqui, podemos concluir que o homem é a unidade realizada entre a fragilidade do barro e a nobreza do sopro divino. O fato do próprio Deus modelá-lo e, soprando em suas narinas, lhe fazer um “ser vivente”, mostra a sua relação com o mundo divino; todavia, o barro com o qual foi constituído não lhe deixará esquecer a sua fragilidade.
A criação da mulher
Os vv. 21-22, que narram a criação da mulher, nos dá a ocasião de fazer algumas breves considerações sobre a relação homem-mulher dentro do plano divino; isso nos ajudará a compreender algumas dimensões essenciais da antropologia bíblica.
Primeiramente percebemos que o homem busca alguém que lhe corresponda, mas não encontra este “alguém” dentro das obras que o Senhor havia feito (cf. Gn 2,20). À “solidão” provada pelo primeiro homem, faz eco – como que para confirmá-la – as palavras pronunciadas pelo próprio Deus: «não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda» (Gn 2,18); mais uma vez, é o texto hebraico que pode nos ajudar a compreender a fineza contida nestas palavras. Em Gn 1,1-2,4a, por seis vezes aparece o termo tôb, sendo a última, intensificada para expressar que era «muito bom» tudo quanto Deus havia criado. Agora, em Gn 2,18, pela primeira vez se rompe a sequência do hino divino “é bom” para o “não é bom” (lōʼ–tôb) decretado pelo próprio Deus, referindo-se a solidão do homem. Ele não foi criado para estar só, mas sim para se doar e receber o dom do outro. É neste contexto que Deus decide fazer o primeiro homem dormir. O seu sono será como o de tantos personagens bíblicos, uma manifestação divina. Deus presenteia o homem por meio de alguém à quem possa se entregar e receber; em outras palavras, que realmente lhe corresponda, eis o motivo de sua exultação: «23esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne!» (Gn 2,23). Vale ressaltar que estas são as primeiras palavras do homem em toda a Sagrada Escritura; um louvor pelo criado, um reconhecimento da grandeza do Criador.
Quanto à criação da mulher, convém ainda dizer que, seguindo o antropomorfismo – próprio do segundo relato da criação –, o texto afirma que a mulher é “construída” – do verbo bᾱnâ – com o lado de Adão (Gn 2,22). Sendo assim, ela é a primeira construção narrada na Sagrada Escritura; para melhor compreender a grandeza contida neste ato divino, basta mencionar que este mesmo verbo servirá para indicar, por exemplo, a construção do templo de Jerusalém (cf. 2 Sam 7,7).
O pecado
Após ter narrado a criação da mulher, o autor sagrado relata a queda original. Estes dois fatos estão intrinsecamente relacionados, sobretudo, por apresentarem elementos antitéticos na relação do “casal original”, entre o antes e o pós pecado; em outras palavras, a antítese está na passagem da harmonia para a desarmonia. A tônica de Gn 3 muda sensivelmente em relação à Gn 2: à busca da correspondência, da auxiliar, e ao grito de exultação por parte do homem, é apresentado, em Gn 3, a acusação recíproca (cf. Gn 3,12-13). As primeiras palavras do homem em Gn 2 são de exultação, em Gn 3 são de acusação; estes elementos, e outros não mencionados, indicam que a harmonia original, não completamente destruída, foi, todavia, muito comprometida. No que toca a relação com Deus – e este é o princípio da desarmonia – ao invés de escutar os passos de Deus no jardim e estar com comunhão com Ele, o casal se esconde da face divina.
Erraríamos porém, se apresentássemos estes fatos como um falimento, quase que absoluto, do projeto do Criador. Na exata cena onde o pecado é cometido, vemos as marcas de esperança fixadas pelo Senhor: enquanto Deus pergunta ao homem, quer escutá-lo, a respeito do ocorrido, como que para conscientizá-lo de sua responsabilidade no plano da criação, à serpente Deus não pergunta nada, simplesmente dá o veredicto e a amaldiçoa (cf. Gn 3,14-15)[1]. Este veredicto é já anúncio de Sua vitória; é já a condenação do mal, como que a dizer que este não permanecerá impune. Outro sinal de esperança está no fato que, não obstante o pecado, Deus não amaldiçoa o homem; Ele os abençoou (Gn 1,28) e não volta atrás dos seus dons. Por isso, a mulher não só não perde a própria identidade após o pecado, como, aliás, é confirmada em sua missão: Eva, significa mãe dos viventes. Não obstante ter oferecido o fruto da morte, ela permanece como guardiã e selo da vida[2]. Podemos afirmar que o pecado não foi e, e não é, capaz de mudar o olhar divino sobre o homem e a mulher por Ele criados; repousa sobre eles a promessa e a benevolência divinas.
Um grande sinal de que a beleza da ação criadora divina não foi completamente ofuscada, está no fato de que a relação homem-mulher continuará a ser – particularmente na literatura profética – como que “sacramento” da relação entre Deus e o seu povo, por meio da simbologia esponsal[3].
Por Elton Alves
Teólogo, Consagrado na Comunidade de Vida Shalom
Referências
[1] «Porque fizeste isso és maldita entre todos os animais domésticos e todas as feras selvagens. Caminharás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias de tua vida. Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar» (Gn 3,14-15).
[2] Cfr. Ratzinger, A Filha de Sião, 13.
[3] No profeta Oseias, por exemplo, vemos Deus mesmo dizer à Israel: «me chamarás: meu Esposo» (Os 2,4; 18ss).
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