A relação entre Palavra de Deus e cultura encontrou expressão em obras de âmbitos diversos, particularmente no mundo da arte. Por isso a grande tradição do Oriente e do Ocidente sempre estimou as manifestações artísticas inspiradas na Sagrada Escritura, como, por exemplo, as artes figurativas e a arquitetura, a literatura e a música. Penso também na antiga linguagem expressa pelos ícones que, partindo da tradição oriental, aos poucos se foi espalhando por todo o mundo. Com os Padres sinodais, a Igreja inteira exprime apreço, estima e admiração pelos artistas «enamorados da beleza», que se deixaram inspirar pelos textos sagrados; contribuíram para a decoração das nossas igrejas, a celebração da nossa fé, o enriquecimento da nossa liturgia, em uitos deles ajudaram ao mesmo tempo a tornar de algum modo perceptível no tempo e no espaço as realidades invisíveis e eternas.[359] Exorto os organismos competentes a promoverem na Igreja uma sólida formação dos artistas sobre a Sagrada Escritura à luz da Tradição viva da Igreja e do Magistério.
Palavra de Deus e meios de comunicação social
Ligada à relação entre Palavra de Deus e culturas está também a importância da utilização cuidadosa e inteligente dos meios, antigos e novos, de comunicação social. Os Padres sinodais recomendaram um conhecimento apropriado destes instrumentos, estando atentos ao seu rápido desenvolvimento e aos diversos níveis de interacção e investindo maiores energias para adquirir competência nos vários setores, particularmente nos novos meios de comunicação, como por exemplo a internet. Por parte da Igreja, já existe uma significativa presença no mundo da comunicação de massa, e o próprio Magistério eclesial exprimiu-se várias vezes sobre este tema a partir do Concílio Vaticano II. [360] A aquisição de novos métodos para transmitir a mensagem evangélica faz parte da constante tensão evangelizadora dos fiéis, e hoje a rede de comunicação envolve o mundo inteiro, tendo adquirido um novo significado o apelo de Cristo: «O que vos digo às escuras, dizei-o à luz do dia, e o que escutais ao ouvido, proclamai-o sobre os terraços» (Mt 10, 27). Para além da forma escrita, a Palavra divina deve ressoar também através das outras formas de comunicação. [361] Por isso, juntamente com os Padres sinodais, desejo agradecer aos católicos que lutam com competência por uma presença significativa no mundo dos mass media, solicitando um empenhamento ainda mais amplo e qualificado.[362]
Entre as novas formas de comunicação de massa, há que reconhecer hoje um papel crescente à internet, que constitui um novo fórum onde fazer ressoar o Evangelho, na certeza, porém, de que o mundo virtual nunca poderá substituir o mundo real e que a evangelização só poderá usufruir da virtualidade oferecida pelos novos meios de comunicação para instaurar relações significativas, se se chegar ao encontro pessoal que permanece insubstituível. No mundo da internet, que permite que bilhões de imagens apareçam sobre milhões de monitores em todo o mundo, deverá sobressair o rosto de Cristo e ouvir-se a sua voz, porque, «se não há espaço para Cristo, não há espaço para o homem».[363]
Bíblia e inculturação
O mistério da encarnação mostra-nos que Deus, por um lado, comunica-Se sempre numa história concreta, assumindo os códigos culturais nela inscritos, mas, por outro, a própria Palavra pode e deve transmitir-se emculturas diferentes, transfigurando-as a partir de dentro através daquilo que Paulo VI chamava a evangelização das culturas. [364] Deste modo a Palavra de Deus, como aliás a fé cristã, manifesta um caráter profundamente intercultural, capaz de encontrar e fazer encontrar culturas diversas.[365]
Neste contexto, compreende-se também o valor da inculturação do Evangelho.[366] A Igreja está firmemente persuadida da capacidade intrínseca que tem a Palavra de Deus de atingir todas as pessoas humanas no contexto cultural onde vivem: «Esta convicção deriva da própria Bíblia, que, desde o livro do Génesis, assume uma orientação universal (cf. Gn 1, 27-28), mantém-na depois na bênção prometida a todos os povos graças a Abraão e à sua descendência (cf. Gn 12, 3; 18, 18) e confirma-a definitivamente quando estende a “todas as nações” a evangelização».[367] Por isso, a inculturação não deve ser confundida com processos de adaptação superficial, nem mesmo com a amálgamasincretista que dilui a originalidade do Evangelho para o tornar mais facilmente aceitável.[368] O autêntico paradigma da inculturação é a própria encarnação do Verbo: «A “aculturação” ou “inculturação” será realmente um reflexo da encarnação do Verbo, quando uma cultura, transformada e regenerada pelo Evangelho produzir na sua própria tradição expressões originais de vida, de celebração, de pensamento cristão», [369] levedando como o fermento dentro da cultura local, valorizando as semina Verbi e tudo o que de positivo haja nela, abrindo-a aos valores evangélicos.[370]
Traduções e difusão da Bíblia
Se a inculturação da Palavra de Deus é parte imprescindível da missão da Igreja no mundo, um momento decisivo deste processo é a difusão da Bíblia por meio do valioso trabalho de tradução nas diversas línguas. A este propósito, nunca se deve esquecer que a obra de tradução das Escrituras «teve início desde os tempos do Antigo Testamento quando o texto hebraico da Bíblia foi traduzido oralmente para aramaico (Ne 8, 8.12) e, mais tarde, traduzido de forma escrita para grego. De fato, uma tradução é sempre algo mais do que uma simples transcrição do texto original. A passagem de uma língua para outra comporta necessariamente uma mudança de contexto cultural: os conceitos não são idênticos e o alcance dos símbolos é diferente, porque põem em relação com outras tradições de pensamento e outros modos de viver».[371]
A Palavra de Deus supera os limites das culturas
No debate sobre a relação entre Palavra de Deus eculturas, a assembleia sinodal sentiu necessidade de reafirmar aquilo que os primeiros cristãos puderam experimentar desde o dia de Pentecostes (cf. Act 2,1-13). A Palavra divina é capaz de penetrar e exprimir-se em culturas e línguas diferentes, mas a própria Palavra transfigura os limites de cada uma das culturas criando comunhão entre povos diversos. A Palavra do Senhor convida-nos a avançar para uma comunhão mais vasta. «Saímos da estreiteza das nossas experiências e entramos na realidade que é verdadeiramente universal. Entrando na comunhão com a Palavra de Deus, entramos na comunhão da Igreja que vive a Palavra de Deus. (…) É sair dos limites de cada uma das culturas para a universalidade que nos vincula a todos, a todos nos une e faz irmãos».[375] Portanto, anunciar a Palavra de Deus começa sempre por nos pedir a nós mesmos um renovado êxodo, deixando as nossas medidas e as nossas imaginações limitadas para abrir espaço em nós à presença de Cristo.