Gilbert Keith Chesterton, um grande escritor inglês, certa vez observou que com frequência as gerações procuram o seu santo por instinto, e este não seria aquele que as pessoas querem, mas sim aquele que o povo precisa. Deste modo cada geração é paradoxalmente convertida pelo santo que mais a contradiz. E embora, não seja este o local apropriado para expor os pormenores estatísticos, não é difícil convencer o homem minimamente informado que a nossa geração é especialmente seduzida pelo brilho dos “likes” e pelo odor da morte. Do aborto à eutanásia, do homicídio ao suicídio… no Facebook e no Instagram, o nosso povo tem dado sinais de uma doença difícil de ser curada, o amor excessivo ao aplauso unido a um frágil amor à vida. Neste sentido, creio que a Vida dos Santos Mártires de ontem e de hoje tem tudo para encontrar em nosso meio um terreno especialmente receptivo.
Neste momento alguns talvez estejam com dificuldade de conciliar a tese do nosso escritor inglês (cada geração é convertida pelo santo que mais a contradiz) com a minha conclusão (a vida dos mártires será decisiva na conversão da nossa geração que carece de amor à vida e ama em demasia os aplausos). Este hipotético leitor poderia, não sem ironia, perguntar: “A vida dos mártires não seria apenas a versão clássica e cristã de alguém que amou tanto o aplauso que praticamente se suicidou?”
Para entender profundamente a vida de um santo é preciso partir da vida de Deus, porque a Vida Divina explica a vida de um santo mais do que qualquer outro tipo “lente interpretativa”. Qualquer outra leitura provavelmente deverá ser considerada como um reducionismo, ainda que involuntário.
Partamos então da Vida Divina, mas antes façamos uma simples explicação etimológica sem a qual seria difícil conectar uma parte à outra da argumentação: a palavra mártir tem por origem a palavra grega μάρτυς [martys] que significa testemunho. As sagradas escrituras usam o termo em um modo amplo e o aplicam (diretamente ou a algum de seus derivados) às três pessoas da Santíssima Trindade. O Pai dá testemunho do Filho (cf. Jo 5,37), o Filho dá testemunho da verdade (cf. Jo 18,37) e fala daquele que viu (cf. Jo 3,32) e o Espírito dará testemunho do Filho (cf. Jo 15,26). Ora, no direito um testemunho é aquele que por causa do contato imediato com um fato pode atestá-lo a outras pessoas, não podendo, por razões óbvias, coincidir com o próprio réu. Sendo assim, a sua peculiaridade é aquela da não autorreferencialidade, ou seja, aquela de encontrar na transparência a sua perfeição.
Neste ponto da reflexão não podemos permanecer apáticos (se você tiver um tempinho aconselho que pare para rezar um pouco): para a nossa humanidade ferida de pecado é verdadeiramente chocante constatar que cada Pessoa da Trindade, possuidora em si de infinita glória, possa e deseje ser um testemunho, possa e deseje esvaziar-se para revelar um outro. E é justamente neste ponto, no qual o nosso coração chocado se aquece de amor, que o nosso discurso ganha articulação e sentido… o mártir é nada menos do que um participante do testemunho (martírio!) Divino, expressão para nós do eterno amor kenótico intratrinitário. Sendo assim, o mártir é aquele que ama tanto a um Outro que se sente agraciado por enriquecer o mundo com a imagem do Amado ao invés da sua… ele não idolatra a morte ou despreza o mundo, enquanto criatura de Deus, mas, parafraseando Chesterton, podemos dizer que ele se preocupa tanto com alguma coisa fora dele que se esquece de sua vida pessoal. O idólatra da morte, ao contrário, se preocupa tão pouco com tudo o que está fora dele que ele quer ver o fim de tudo. Um quer que alguma coisa comece; o outro, que tudo acabe.
Fica então demonstrada a contradição fundamental entre a Vida do mártir, aquele amante inflamado, e algumas das tentações fundamentais de nossa geração, o amor excessivo ao aplauso unido a um frágil amor à vida.
Me interrogo a este ponto se a quantidade colossal de mártires do século XX e XXI são fontes do acaso, desprovida de qualquer significado histórico-salvífico ou… se são o grito da misericórdia de Deus, o grito do Amor que não perde a esperança na nossa salvação… Bem… o aprofundamento desta questão deixo a cargo da sua reflexão.
Diácono Saulo Dantas
Teólogo, mestre em física, missionário e Assistente Comunitário da Comunidade Católica Shalom
Sobre o Instituto Parresia
Inscreva-se na nossa Newsletter
Siga o perfil no Instagram
Cadastre-se também no Site
Ouça os Podcasts no Spotify
E-mail: institutoparresia@comshalom.org