Olhando para a grande inspiração de Deus para a Comunidade Shalom neste tempo de pandemia, por meio do Shalom Amigos dos Pobres, resolvi escrever essa reflexão sobre a importância da solidariedade. Por meio dessa ação com nossos irmãos em situação de risco nesse tempo, Deus está nos salvando de nós mesmo e fortalecendo em nós o sentido do serviço ao outro. O Sentido do cuidar do outro, em especial o cuidar dos mais necessitados. Cuidar dos mais vulneráveis. Por meio dessa ação temos despertado, tanto a nível interno como a nível externo, a importância da solidariedade.
A solidariedade está associada a atitudes que se tem no dia a dia em relação a outros e à comunidade à qual pertencemos. Ela não é, portanto, nem abstrata nem solitária. Mas está vinculada a quanto, no nosso viver ordinário, estamos dispostos a cuidar, incluir, defender, promover, proteger e a sermos generosos uns com os outros. Consequentemente, a solidariedade acontece tanto nos pequenos gestos quanto no valor que atribuímos àquele que é, age, pensa e até mesmo tem uma religião ou ideias bem diferentes da nossa. Em outras palavras, solidariedade exige de você e de mim um olhar atento, empático e sensível às necessidades do individuo e da comunidade humana próxima e distante. Aí está sua importância. Por outro lado, a solidariedade é também um processo a ser construído dia após dia.
A solidariedade nos humaniza
Sabemos que ninguém nasce solidário, mas necessitado de solidariedade. Sem o cuidado generoso de outros, não sobreviveríamos como indivíduos ou espécie. Ainda assim, ser solidário requer decisão, intencionalidade e esforço para vencer o egoísmo e o etnocentrismo, onde “eu”, “os meus” e “aqueles que pensam como eu” são o centro. No agir solidário me vejo forçado a expandir os horizontes, a perceber o todo, a unir o dividido, a trazer para perto o afastado, a juntar o desconjuntado, a curar o combalido, a alimentar o faminto, a ouvir atentamente o desesperado e a buscar dignidade para os humilhados. Por conseguinte, solidariedade é um processo de descentralização e de humanização do humano que, por conta da nossa tendência a fechar-se em nós mesmos requer uma superação constante.
Processo de humanização da sociedade
Solidariedade é igualmente um processo de humanização da sociedade e isso passa pela tomada de consciência de deveres e direitos dos indivíduos (cidadania), sendo a educação indispensável para isso. De fato, cidadania e solidariedade são como irmãs siamesas, interdependentes. Ainda que no transcorrer do século XX o cidadão tenha sido transformado em mero “consumidor” (Milton Santos), reduzido a uma coisa “coisificada” (Theodor Adorno) e convertido em “mercadoria” (Zygmunt Bauman), não é possível pensar a primeira descartando a segunda.
Por conseguinte, a construção de uma sociedade mais humana, justa, igualitária e equilibrada depende de cidadãos e cidadãs participativos, defensores da vida, da dignidade, da liberdade e do respeito para todos, onde ninguém solta a mão de ninguém e todo mundo segura a mão de todo mundo. Logo, o desrespeito aos direitos de um é desrespeito aos direitos de todos e o sofrimento e a morte de um atinge a todos.
Jesus nosso modelo de solidariedade
Os Evangelhos não deixam dúvida de que a solidariedade de Jesus ia além de gestos esporádicos de bondade, de compaixão e de misericórdia com os pobres e miseráveis da sociedade de então. Basta ler nas entrelinhas para perceber sua crítica às estruturas de perpetuação das desigualdades, ainda que elas estivessem disfarçadas por um manto religioso ou por uma espiritualidade que escondia o desamor ao próximo e ao cotidiano através da ênfase no transcendental.
Diferente do que se popularizou, Jesus foi uma figura tão solidária que é mais bem impactante quando percebido dentro dos limites de tempo e espaço concretos do contexto da época. Na parábola do samaritano (Lucas 10, 25-37), por exemplo, Jesus denuncia a espiritualidade do sacerdote e do levita, centradas no trabalho, nos compromissos assumidos, nas identidades das suas profissões, na racionalidade e no medo. Já no samaritano herético, Jesus vê uma espiritualidade solidária e, portanto, modelo (“vai tu e faz o mesmo”, v. 37), a qual está fundamentada:
1. No serviço ao necessitado.
O samaritano socorre uma pessoa não por ser seu amigo ou seu chefe ou uma pessoa importante, mas alguém fragilizado, vulnerável.
2. Na voluntariedade.
Ninguém o obrigou a parar e muito menos a ajudar e a gastar parte dos seus recursos com aquele miserável que, inclusive, não podia retribui-lo. Ele o faz por generosidade voluntária. Foi a necessidade, as feridas e a dor do outro que o constrangeu e o fez mudar seus planos, diminuir sua pressa e correr riscos.
3. No amor.
E esse não tem explicação. É o amor que nos faz assumir a responsabilidade pelo outro, a não viver somente de si, para si e a partir de si. No amor, o centro é o outro. Na verdade, o amor que sentimos pelos necessitados e alquebrados deve ser maior do que o nosso medo. Sim, é o amor que nos faz romper barreiras e enfrentar os medos.
4. Na luta.
Para garantir vida para o outro, que é estranho, desconhecido, mas tão humano quanto você e eu, o samaritano não sabia e nem perguntou pela religião do ferido. Ele, solidariamente o socorreu. O samaritano não sabia e nem perguntou pelo partido político do que estava à sua frente. Ele simplesmente o tomou nos braços e o tirou dali para protegê-lo. O samaritano não pensou se aquele homem poderia pagar de volta o que ele iria gastar. Seu foco estava na possibilidade de salvar uma vida, não no dinheiro que gastaria. Sua mentalidade não era retributiva, nem compensativa. Ao contrário, ele tinha uma atitude solidaria.
Mais de 20 séculos depois
Meus irmãos, mais de 20 séculos depois, ainda encontramos resistência quanto a aprender com Jesus a respeito da espiritualidade solidária. Espiritualidade essa diferente e que faz diferença. Parece-me que, com exceções – e elas existem -, ainda insistimos numa espiritualidade que gera admiração, aplausos e sucesso, as vezes que nos põe nos altares e nos torna sagrados, mas que, tristemente, nos afasta dos pobres, dos vulneráveis e daqueles que nos seus sofrimentos imploram para que paremos, os vejamos e, sem discriminação, os socorramos.
Com isso, não é de estranhar que no século 21, em plena pandemia do coronavírus, haja quem diga ser um desperdício o gastar dinheiro para alimentar os famintos, para providenciar um agasalho para aqueles que estão em situação de rua. Sim, infelizmente, já encontrei quem dissesse não ser nossa responsabilidade alimentar, proteger e defender o direito daqueles que se encontram em situação de indigência.
Já encontrei quem estivesse tão ocupado e comprometido com as coisas de Deus que não consegue parar e ver Deus no mendicante à sua frente. Já encontrei gente tão preocupada em mandar outros para o céu, que acha perda de tempo parar e ouvir as histórias por trás dos farrapos humanos que perambulam pela cidade. Essas pessoas são gente boas, bem intencionadas. Elas vão à igreja, participam ativamente dos compromissos, devolvem o dízimo e algumas são formadores de opinião. Mas muitas vezes pergunto a mim mesmo se elas entenderam a espiritualidade de Jesus e a que Ele nos deixou como modelo.
Resumindo
Amor em atos. Essa frase me acompanha a um bom tempo em minha caminhada missionária. Nosso Deus quer da nossa parte o amor em atos. Amor em atos concretos de serviço e acolhida do próximo. Seja aquele que está agora ao nosso lado ou aqueles que estão perambulando pelas ruas da cidade descartadas por nossa sociedade. Urge, como cristãos, darmos uma resposta urgente ao homem que sofre pela falta de cuidado, atenção e desprovidos de assistência em suas necessidades básicas. Você e eu somos a resposta.
Quantas e quantas vezes o bom samaritano veio ao nosso encontro e pacientemente cuidou de nós? Quantas e quantas vezes o bom pastor deixou as 99 ovelhas do seu rebando e veio a nossa procura quando estávamos perdidos, sem rumo na vida? Agora é a nossa vez. O cenário que encontramos atualmente por conta da pandemia é propício a esse recomeço na vivência da solidariedade.
Vamos lá? Mãos à obra, meus irmãos. Amemos a Jesus dando provas de amor amando e cuidando dos pequenos, fracos, sem teto, sem alimento, enfermos, tristes, angustiados, velhos, jovens e crianças nessa situação que encontramos a todo tempo bem diante dos nossos olhos. Vamos amar em atos.
Vanilton Lima
Comunidade de Vida
Muito bom, Vanilton!
Realmente a politização excessiva da caridade faz-nos fechar os olhos para o Cristo que habita nos pobres.
Das duas uma, ou intrumentalizam a solidariedade como propaganda política, ou se omitem e abandonam os pobres por puro egoísmo e ganância.
Viver a vida consagrada é amar em atos!