Após termos falado um pouco acerca de Romeu e Julieta, nesta edição do Bendita Leitura, dando continuidade ao nosso pequeno estudo sobre as tragédias de Shakespeare, abordaremos uma das grandes e mais encenadas peças do dramaturgo inglês, Otelo. Esta obra, escrita por volta dos anos 1603 e 1604 e publicada pela primeira vez somente em 1622, insere-se na terceira fase das peças de Shakespeare, onde vemos tragédias de caráter mais sombrio, onde os dramas humanos e o caráter das personagens ganham maior ênfase e onde são criadas as maiores peças do dramaturgo inglês, como, além de Otelo, Hamlet, Macbeth e Rei Lear.
Shakespeare é conhecido como um dos principais gênios da história da literatura por principalmente ter criado obras em que são analisados com perfeição, através de situações conflituosas, o homem e propriamente os dramas da sua consciência. Ao falar acerca da sua capacidade de criar personagens complexos, comparando–a com a de outros escritores, Harold Bloom, crítico de arte, diz-nos acerca de Shakespeare:
A singularidade de Shakespeare prevalece: cerca de cem papéis principais e mil secundários que existem de modo estranhamente separado de nossas percepções. Em sua originalidade cognitiva, sua amplitude de consciência e sua criatividade linguística, Shakespeare supera todos os outros […]. Contudo, esse dom praticamente único de produzir seres humanos, completos, de tremenda profundidade, é tão desconcertante que foge à nossa compreensão. Quando achamos que conseguimos, somos novamente feridos pelo espanto.[1]
Essa criatividade de Shakespeare em criar personagens complexos, conforme nos fala Bloom, é verificada na peça Otelo, onde a cobiça, a inocência, a desconfiança, o desejo de poder, a pureza, a mentira e o ciúme vão envolvendo os principais personagens de modo tal que o efeito trágico se torna claramente manifesto. A peça tem como cenário Veneza, na Itália, e um porto de mar, no Chipre. Apresenta como personagens principais o mouro Otelo, general a serviço da República de Veneza, Desdêmona, sua esposa e filha do senador Brabâncio, Iago, alferes de Otelo, Cássio, tenente e homem de confiança do general.
Otelo, o mouro de Veneza
A peça se inicia com o descontentamento de Iago com relação a Otelo, pois este não o promoveu a tenente, mas sim Cássio. Iago, então, desabafa com Rodrigo, seu amigo, referindo-se a Otelo:
IAGO: Despreza-me, se não for assim mesmo. […]. E por minha fé de homem, tenho plena consciência do que valho; não mereço posto menor do que esse. Ele, no entanto, consultando somente o orgulho e os próprios interesses, furtou-se com fraseado bombástico, recheado só de epítetos de guerra. Em conclusão: não entendeu aos meus intercessores. ‘Pois já escolhi o meu oficial’, lhes disse. E quem é ele? Ora, por minha fé, um matemático, um tal de Micael Cássio, um florentino, […]. Já não há mais remédio. É a maldição do ofício: as promoções só se obtêm por pedidos e amizades, […].[2] (Ato I, cena I, p. 609).
Importante vermos que a peça se inicia com o descontentamento de um serviçal do general Otelo, Iago. Na verdade, a peça não apenas começa dessa maneira, mas toda ela é, praticamente, impulsionada pela rebeldia de Iago que, maliciosamente, não a expressa diretamente a Otelo, mas sob um véu de aparente contentamento, encobrirá sua raiva com o intuito de se aproximar do seu comandante a fim de conseguir seus próprios interesses.
Otelo é um mouro nobre, ou seja, um estrangeiro de origem árabe que conseguiu respeito em Veneza por conta da sua competência militar, tornando-se mesmo general do exército veneziano. É visto como alguém muito reto que, pela competência, conseguiu êxito tanto a nível profissional quanto também conjugal ao se unir com Desdêmona, filha única do senador Brabâncio. Desdêmona é apaixonada por Otelo, preferindo mesmo estar com o mouro a propriamente estar em seu ambiente familiar. No entanto, apesar do sucesso familiar, a relação entre um mouro e alguém tão respeitado quanto a filha do senador Brabâncio não deixa de revelar certas tensões no âmbito social.
Será no âmbito dessas tensões que Iago irá engendrar seus planos mais perversos. Primeiramente, o alferes consegue convencer o pai de Desdêmona, que também não é a favor da união da filha com o mouro, de que este raptou sua filha. O resultado disso é que o senador vai à Câmara do Conselho denunciar Otelo. Este, então, relata a todos como se apaixonou por Desdêmona:
OTELO: O pai dela me amava; convidou-me muitas vezes, fazia-me perguntas sobre a história de toda a minha vida, ano por ano, prélios, cercos, lances por que passara. E narrava-lhe tudo, desde os dias de minha infância, até o momento em que ele me mandara falar, enumerando-lhe situações perigosas, acidentes no mar e em terra, em tudo emocionantes […]. Para isso ouvir, Desdêmona se achava sempre inclinada […]. Minha história concluída, ela me dava por tanta dor um mundo de suspiros e jurava em verdade, que era estranho, por demais tocante, muito comovedora.[3] (Ato I, cena III, pag. 615-616).
Otelo conquistou Desdêmona, sobretudo, pelo relato de suas façanhas militares. Mesmo enraivecido, Brabâncio anuiu aos argumentos do mouro. O fato é que, por conta da ameaça de guerra entre Veneza e a Turquia pela ilha de Chipre, os militares da cidade italiana, incluindo Otelo (levando consigo sua esposa e sua criada), Iago e Cássio, dirigem-se para esta ilha. O cenário da peça passa, agora, a ser Chipre. A guerra entre as potências não acontece devido ao naufrágio da esquadra turca no mar mediterrâneo.
A mudança de cenário também proporciona o começo de uma mudança mais drástica que se dará, sobretudo, em Otelo. A mudança no personagem principal acontece não por conta do acaso, mas porque o mouro veneziano, por meio dos diálogos com Iago, começa a ser envolvido pelos planos deste. Na verdade, a tragédia shakespeariana volta-se para o personagem Iago. Este se aproveitando da sua proximidade com Otelo, utiliza-se da sua influência para arquitetar um plano que afetará diretamente ao mouro, a Desdêmona e a Cássio. Iago fala para seu amigo e cúmplice Rodrigo acerca de Otelo:
IAGO: Que amor lhe tenha Cássio, é o que acredito; que ela o ame, é quase certo e compreensível. O mouro, embora eu suportar não o possa, por natureza é firme, nobre e amável, tendo eu plena certeza de que ele há de ser o marido ideal para Desdêmona. Mas eu também a amo, não por simples concupiscência, muito embora eu seja também passível dessa grande falta. Não é preciso saciar minha vingança. Falhando o plano, farei tal ciúme despertar no Mouro, que não possa curá-lo o raciocínio. (Ato II, cena I, p. 623-624)[4].
Iago tentará despertar ciúmes em Otelo, fazendo-o crer que Desdêmona e seu tenente Cássio estariam tendo um caso amoroso. De fato, Otelo dará ouvidos a Iago, que, na verdade, transformar-se-á de alferes do general a grande arquiteto de um plano que transformará o mouro num mero joguete seu. Dessa forma, Iago dialoga com Otelo:
IAGO: Assim, já que o dever a isso me obriga, vou falar, mas não de provas, por enquanto. Vigiai vossa consorte (esposa); observai bem como ela e Cássio falam; lançai-lhe olhar assim, nem enciumado, nem confiante demais. Não desejara que vossa natureza leal e nobre vítima viesse a ser por causa, apenas, da generosidade que lhe é própria. Vigiai-os bem.
OTELO: Crês que seja assim mesmo?
IAGO: Ao pai ela enganou com desposar-vos; ao fingir que tremia à vossa vista, mais vos era afeiçoada[5]. (Ato III, cena III, p.634).
Iago induz Otelo ao ciúme. Este passará, agora, a ter desconfiança de sua esposa e de seu tenente Cássio. Dessa forma, a partir do terceiro ato da tragédia as mudanças com relação ao caráter de Otelo vão se acentuando, de modo que o homem que era extremamente devotado à esposa, passa a se tornar réu de suas próprias infundadas suspeitas. Otelo começará, então, a ser grosseiro e ríspido com Desdêmona, que, por sua vez, não compreende o motivo de tão grandes suspeitas por parte do mouro:
DESDÊMONA: Sede também piedoso. Em toda a minha vida jamais vos ofendi. Nunca amei Cássio, só lhe tendo dedicado amizade que o céu permite e nunca o presenteei.[6] (Ato V, cena II, p. 655).
Otelo torna-se irredutível, não enxergando a inocência de sua própria esposa. A alteração sentimental do principal personagem equivale a um aprofundamento da tensão dramática e mesmo da relação, apesar de se tornar doentia, entre os cônjuges. O triste fim de Otelo e Desdêmona já pode ser previsto como também o aparente sucesso de Iago. Este, pela sua habilidade de manipulação, torna-se um dos personagens centrais na obra shakespeariana. O que se torna também claro é, além da esperteza de Iago, a tibieza e a limitação do general Otelo, que, por mais experiente e hábil que fosse, mesmo assim consegue ser ludibriado pelas mentiras de um serviçal seu.
Entre Iagos e Otelos
Com relação à diferença entre Iago e Otelo, Harold Bloom insere os dois no conjunto de personagens trágicos do dramaturgo inglês:
As consciências mais amplas de Shakespeare são as de Falstaff, Hamlet, Iago e Cleópatra. […]. Quase enigmáticas são algumas das mentes mais limitadas nas peças: Shylock, Malvólio, Leontes, Otelo, […]. Isso se deve ao perspectivismo shakespeariano que com frequência nos dá personagens com uma habilidade de auto compreensão superior à que conseguimos alcançar. […]. A vivacidade, a energia, sobrenatural, o espírito linguístico: são essas as marcas dos grandes vilões, tanto cômicos como trágicos – de Shylock, Iago, Edmundo, Macbeth[7].
A ordem natural das coisas, digamos, é subvertida por Iago. É subvertida principalmente pela capacidade original de Iago de conduzir o general imponente Otelo a um drama de consciência baseado no ciúme. Como falamos, a obra em questão está inserida no período mais sombrio e mais produtivo da produção literária de Shakespeare. Delineia-se, portanto, uma das marcas mais importantes da obra do dramaturgo inglês, como nos fala Otto Maria Carpeaux:
O conceito […] do mundo como teatro levou a Shakespeare a uma concepção altamente original da história: conceber a tragédia histórica como tragicomédia. […]. A história pretende ser a tragédia dos heróis e acaba por se tornar em comédia dos imbecis. O mundo para Shakespeare tornou-se um problema.[8]
Apesar de Carpeaux se referir, especialmente, a duas tragédias históricas de Shakespeare, Antonio e Cleópatra e Coriolano, é possível utilizar essas afirmações no contexto das grandes tragédias shakespearianas. É diante dessa problemática entre heróis e imbecis ou malfeitores que nos deparamos na obra de Shakespeare. Dessa forma, é algo surpreendente que um mero alferes, como Iago, possa enganar um general experiente. A peça Otelo nos conduz a um modo de interpretação que será ampliado pela criação de novos personagens de grande densidade psicológica nas obras shakespearianas apresentadas aqui, onde, por vezes, a alternância de papéis, leva-nos a uma surpresa, que, por sua vez, conduz-nos a um entendimento mais imaginativo.
REFERÊNCIA
BLOOM, Harold. Anatomia da influência: literatura como modo de vida. Tradução de Ivo Korytowski, Renata Telles. 1 ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
CARPEAUX, Otto Maria. O Barroco e o Classicismo por Carpeaux. In: História da Literatura Ocidental. Volume 4. São Paulo: Leya, 2012.
SHAKESPEARE, William. Tragédias: teatro completo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
NOTAS
[1] BLOOM, Harold. Anatomia da influência: literatura como modo de vida. Tradução de Ivo Korytowski, Renata Telles. 1 ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 65.
[2] SHAKESPEARE, William. Tragédias: teatro completo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008
[3] Idem.
[4] SHAKESPEARE, William. Tragédias: teatro completo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
[5] Idem.
[6] SHAKESPEARE, William. Tragédias: teatro completo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
[7] BLOOM, Harold. Anatomia da influência: literatura como modo de vida. Tradução de Ivo Korytowski, Renata Telles. 1 ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 55-56.
[8] CARPEAUX, Otto Maria. O Barroco e o Classicismo por Carpeaux. In: História da Literatura Ocidental. Volume 4. São Paulo: Leya, 2012, p. 223.
Ficha
Origem: NACIONAL
Editora: L&PM EDITORES
Edição: 1
Assunto: Artes e Fotografia – Teatro
Idioma: PORTUGUÊS
Boa Leitura!