16. É à luz da doutrina acima (ler artigo ) recordada que devem ser julgadas certas opiniões, que se exprimem nos nossos dias a respeito do Batismo das crianças, às quais tendem a pôr em discussão a legitimidade desta prática como norma geral.
Batismo e ato de fé
17. Partindo da consideração de que nos escritos do Novo Testamento o Batismo se segue à pregação do Evangelho, supõe a conversão e é acompanhado da profissão de fé, e ainda de que os efeitos da graça (remissão dos pecados, justificação, regeneração e participação da vida divina) são geralmente postos em conexão mais com a fé do que com o Sacramento [28], alguns propõem que a sucessão "pregação – fé – sacramento" seja estabelecida como norma, a qual, fora do caso de perigo de morte, se aplique também às crianças; e que para estas seja instituído um catecumenato obrigatório.
18. É fora de dúvida que a pregação apostólica se dirija normalmente a adultos, e que os primeiros batizados foram homens convertidos à fé cristã. Como estes fatos são narrados pelo Novo Testamento, pode daí originar-se a opinião de que neles não é tida em consideração senão a fé dos adultos. Todavia, como se recordou mais acima, a prática do Batismo das crianças apóia numa tradição imemorial, de origem apostólica, cujo valor não pode ser refutado; além disso, nunca se administra o Batismo sem a fé, que, no caso das crianças, é a fé da Igreja.
Por outro lado, segundo a doutrina do Concílio de Trento sobre os Sacramentos, o Batismo não é somente um sinal da f é, mas também a sua causa [29]. Ele opera no batizado "a iluminação interior" e, por isso, a liturgia bizantina o chama justamente "sacramento da iluminação" ou simplesmente "iluminação", quer dizer fé recebida que invade a alma, para que, diante do esplendor de Cristo, caia o véu da cegueira [30].
Batismo e apropriação pessoal da graça
19. Diz-se também que toda a graça, dado que é destinada a uma pessoa, deve ser acolhida conscientemente e tornada própria por aquele que a recebe; e as criancinhas são absolutamente incapazes de fazer isso.
20. Na realidade, a criança é uma pessoa muito antes de ser capaz de manifestá-lo mediante atos de consciência e de liberdade; e, como tal, pode já tornar-se, pelo sacramento do Batismo, filha de Deus e co-herdeira com Cristo. A sua consciência e a sua liberdade poderão em seguida, a partir do despertar de tais faculdades, disporem das energias infundidas na sua alma pela graça batismal.
Batismo e liberdade da criança
21. Objeta ainda que o Batismo das criancinhas constituiria um atentado à sua liberdade; seria contra a dignidade da pessoa impor-lhes obrigações religiosas, que terão de observar no futuro e que, mais tarde, elas virão talvez a recusar. Seria melhor não conferir o Sacramento senão naquela idade em que se tenha tornado possível um compromisso livre. Entrementes, os pais e os educadores deveriam comportar-se com reserva e abster-se de todas as pressões.
22. Mas uma tal posição é absolutamente ilusória: não existe liberdade humana assim tão pura, que possa considerar-se absolutamente imune de todos os condicionamentos. Mesmo no plano natural os pais fazem para os seus filhos opções indispensáveis à vida destes e à sua orientação para os verdadeiros valores. Um modo de comportar-se da família que pretendesse ser neutra em relação à vida religiosa da criança, na prática acabaria por ser uma escolha negativa, que a privaria dum bem essencial.
Quando se pretende dizer que o sacramento do Batismo compromete a liberdade da criança, esquece-se sobretudo que todo o homem, mesmo o não batizado; enquanto criatura, tem para com Deus deveres imprescritíveis, que o Batismo ratifica e eleva com a adoção filial. Além disto, esquece-se que o Novo Testamento nos apresenta a entrada na vida cristã, não como uma servidão ou uma coação, mas como o acesso à verdadeira liberdade [31].
Poderá acontecer, certamente, que a criança, chegando à idade adulta, se recuse a observar os deveres que derivam do seu Batismo. Os pais, à parte o sofrimento que possam sentir com isso, não devem arrepender-se de ter mandado batizar os próprios filhos e de lhes ter dado uma educação cristã, como era seu direito e seu dever [32]. Com efeito, não obstante as aparências, os germes da fé depositados na sua alma poderão um dia "revivescer", para o que os mesmos pais contribuirão com a sua paciência, o seu amor, a sua oração e o seu testemunho autêntico da própria fé.
Batismo e situação sociológica
23. Em atenção aos vínculos que ligam a pessoa à sociedade, alguns julgam que numa sociedade de tipo homogêneo, na qual os valores, os juízos e os costumes constituíssem um sistema coerente, o Batismo das crianças ainda se apresentaria conveniente; mas nas sociedades pluralistas dos dias de hoje, caracterizadas pela instabilidade dos valores e pelos conflitos ideológicos, esta prática seria contra-indicada. Em tal situação, convirá esperar até que a personalidade do candidato esteja suficientemente amadurecida.
24. Sem dúvida, a Igreja não ignora que deve ter em conta a realidade social. Todavia, os critérios da homogeneidade e do pluralismo são apenas indicativos e não podem estabelecer-se como princípios normativos, porque eles são inadequados para resolver uma questão propriamente religiosa que, por sua natureza, compete à Igreja e à família cristã.
O critério da "sociedade homogênea" permitiria sustentar a legitimidade do Batismo das crianças, se essa sociedade fosse cristã; mas levaria a negá-la no caso de as famílias cristãs serem minoritárias; e isto, quer no caso de uma sociedade com predomínio ainda pagão quer no caso de um regime de ateísmo militante, é uma coisa evidentemente inadmissível.
Quanto ao critério da "sociedade pluralista", não tem mais valor que o precedente, porque neste tipo de sociedade a família e a Igreja podem agir livremente e, portanto, podem dar uma formação cristã.
De resto, uma reflexão sobre a história demonstra claramente que a aplicação destes critérios "sociológicos" nos primeiros séculos teria paralisado a expansão missionária da Igreja. Convém ainda acrescentar que, nos nossos dias, muitas vezes se invoca o "pluralismo", a fim de paradoxalmente, impor aos fiéis comportamentos que, na realidade, dificultam o uso da sua liberdade cristã.
Numa sociedade em que a mentalidade, os costumes e as leis já não se inspiram no Evangelho, é de suma importância, pois, que no respeitante às questões suscitadas acerca do Batismo das crianças, se tenha em conta antes de mais a natureza e a missão próprias da Igreja. O Povo de Deus, embora se ache a viver inserido na sociedade humana e apesar de fazer parte de diversas nações e culturas, possui uma sua identidade própria, caracterizada pela unidade da fé e dos Sacramentos. Animado pelo mesmo espírito e pela mesma esperança, ele é um todo orgânico, capaz de criar nos diversos grupos humanos as estruturas necessárias ao seu crescimento. A pastoral sacramental da Igreja, em particular a do Batismo das crianças, deve inserir-se neste contexto, e não depender unicamente de critérios tomados por empréstimo das ciências humanas.
Batismo das crianças e pastoral sacramental
25. Finalmente, encontramos uma outra crítica quanto ao Batismo das crianças: este seria fruto duma pastoral destituída de impulso missionário, mais preocupada em administrar um Sacramento do que em suscitar a fé e promover o compromisso evangélico. Mantendo-a, a Igreja cederia à tentação do número e da "instituição" social; estaria a favorecer a persistência duma "concepção mágica" dos Sacramentos, quando é seu dever ter sempre em vista a atividade missionária, fazer maturar a fé dos cristãos, promover o seu compromisso livre e consciente e, por conseqüência, admitir fases na sua pastoral sacramental.
26. O apostolado da Igreja deve tender, sem dúvida, a suscitar uma fé viva e a favorecer uma existência verdadeiramente cristã; mas não se podem aplicar, pura e simplesmente, as exigências da pastoral sacramental dos adultos às criancinhas que são batizados "na fé da Igreja", como se disse acima. Além disto, não se pode tratar de ânimo leve a questão da necessidade do Sacramento, que conserva todo o seu valor e a sua urgência, sobretudo quando se trata de assegurar a uma criança o bem infinito da vida eterna.
Quanto à preocupação do número, se ela for retamente entendida não é para a Igreja uma tentação ou um mal, mas um dever e um bem. Definida por São Paulo o "Corpo" de Cristo e sua "plenitude" [33], a Igreja é no mundo o sacramento visível de Cristo; a sua missão é estender a todos os homens o vínculo sacramental que a une ao seu Senhor glorificado. Por isso, ela não deseja senão conferir a todos, tanto às crianças como aos adultos, o primeiro e fundamental Sacramento, que é o Batismo.
Assim compreendida, a prática do Batismo das crianças é autenticamente evangélica, dado que a mesma tem um valor de testemunho; porque ela manifesta a iniciativa de Deus em relação a nós e a gratuidade do seu amor que abrange a nossa vida toda: "Não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele que nos amou… Nós amamos, porque Ele próprio nos amou primeiro a nós" [34]. Mesmo no caso dos adultos, as exigências ligadas à recepção do Batismo [35] não devem fazer esquecer que Deus "nos salvou, não por causa das obras de justiça que tivéssemos feito, mas par misericórdia, mediante o batismo de regeneração e renovação do Espírito Santo" [36].