“Acredito que Deus tem grandes planos para essa missão, planos de expansão missionária, de expansão do carisma. Nós temos uma resposta para o homem de hoje, desse tempo, e quando saio pelas ruas de São Paulo, eu questiono sempre: Como evangelizar esses homens na loucura dessa cidade que não para, mas que tem sede de Deus?”
Essa entrevista com o missionário da Comunidade de Vida Breno André Dias traz essa e outras reflexões pertinentes. O novo responsável pela missão São Paulo também conta sobre suas experiências espirituais mais marcantes, o chamado de Deus para a vocação Shalom, seus principais desafios enquanto missionário, bem como o discernimento de seu estado de vida e seu noivado. Vale a pena conferir. Até o fim.
Antes de tudo: Você era um jovem de oração? Quando ocorreu sua primeira experiência com Deus?
Eu sou mineiro, de Governador Valadares, e, como boa parte do povo mineiro, fui educado numa família católica, em meio ao tradicionalismo mesmo, com toda essa questão da importância da missa dominical, da primeira eucaristia e da crisma. Só que a Igreja, para mim, era apenas essa missa de domingo. Eu não tinha outros vínculos, nada daquilo fazia brilhar meus olhos. Até que houve um tempo em que eu estava buscando mudar meus rumos, porque eu andava por caminhos que não geravam frutos. E então pedi a uma tia minha, que era da renovação carismática, que me levasse até alguém que pudesse orar por mim. Ela me levou a uma senhora que rezou por mim e começou a dizer coisas que somente eu sabia. Eu e Deus. Foi ali que tive minha primeira experiência com um Deus que é vivo e de um Deus que realmente me conhece. Eu percebi que a vida poderia ter novos horizontes. Eu tinha somente 13 anos e a partir dali comecei a ter novas perspectivas de vida.
E quando foi que você se aprofundou nessa experiência com Deus?
Depois daquela primeira experiência, eu fui viver minha vida. Mudei as direções, mas ainda não era de frequentar igreja não. Eu estava com uns 17 anos quando comecei a namorar e essa namorada queria passar o carnaval em um retiro espiritual da Canção Nova. Relutei de início, mas nós fomos, e foi ali que tive minha segunda experiência com Deus, através dos sacramentos da confissão e da eucaristia. Acho muito interessante porque a confissão realmente me devolveu a mim mesmo, e na sequência, aquela eucaristia me levou a ouvir, pela primeira vez, a voz de Deus. Foi muito forte, eu realmente escutei a voz de Deus. Fiquei assustado também porque meus planos já estavam traçados, as minhas metas de vida definidas, e aquela Voz me pedia para mudar Tudo. E a única coisa que essa voz repetia era: meu filho, deixa tudo, e segue-me.
Ali percebi que tudo aquilo que eu havia projetado em minha vida, tudo o que eu tinha colocado como metas na minha vida, eram para mim as minhas “riquezas” – o que mais tarde fui perceber a relação com a história do jovem rico, narrada na bíblia. Foi muito louco, né? Porque você vai a um retiro de carnaval, e daí você escuta uma voz. E essa voz começou a se repetir todas as vezes em que eu comungava. Era a mesma voz, o mesmo tom, e a mesma frase. Parecia uma loucura porque de repente aquilo que Deus pede é uma mudança radical nos planos. Era uma voz que me seduzia. Sabe uma voz que você gosta de escutar? Essa voz silenciava todas as coisas dentro de mim.
Comecei a ir à missa todos os dias, para continuar ouvindo aquela voz. E por causa dessa voz, acabei com todos os meus projetos. Mesmo sem saber para qual caminho Deus iria me conduzir. Foi difícil, foi desafiante, abrir mão dos sonhos, e porque o processo de transformação foi ocorrendo com o tempo. Deixei também minha namorada e ingressei no Vocacional de uma comunidade, onde permaneci por dois anos. E de repente eu recebi a notícia de que eu não trazia traços daquele carisma. Eu me senti sem chão. Eu deixei tudo por causa de uma Voz, e nesse momento em que recebi uma negativa, eu pensei: meu Deus, e agora? Daí eu me lembro da minha avó dizer que iria rezar por mim, e a partir dali eu pensei comigo: Vou seguir minha vida. Já que não é esse o lugar, vou voltar para a faculdade, recomeçar em outra cidade, vou fazer outras coisas, e se Deus quiser, Ele me encontra pelo caminho. Ele é capaz de mudar a história do mundo, como diz São João da Cruz: Deus muda o ritmo do mundo para que a vontade dEle aconteça na nossa vida.
Agora você tem 10 anos de Comunidade Shalom. Sinal de que Deus te encontrou mesmo pelo caminho. Conta um pouco disso pra gente. Como você chegou ao Shalom?
Com aquela nova mudança de rota, eu me mudei para Belo Horizonte. E um dia uma amiga me apresentou a dois irmãos da Comunidade Aliança, que, como bons shalomitas, imediatamente me convidaram para conhecer o Shalom. A minha primeira reação foi negativa. Eu não achava que seria bom recomeçar em uma nova comunidade, e também estava um pouco ferido com tudo isso. Eu não fui. Mas existia ainda uma inquietação dentro de mim: de fazer aquilo que Deus queria. Isso não silenciava dentro de mim. Perto da minha casa, tinha um Carmelo, e fui atrás de fazer um caminho de discernimento vocacional sério. Fiz uma experiência de três anos no Carmelo, sendo acompanhado por um frei, que me ajudou a ir abrindo cada vez mais meu coração a Deus. Até que um dia, eu estava no meu trabalho um tanto angustiado por não compreender o que Deus queria que eu fizesse da minha vida e recebi uma mensagem daquele irmão da Comunidade Aliança me convidando para um curso de autoconhecimento e cura interior – era o Fio de Ouro. O tema chamou minha atenção e fui. Eu estava com muito medo de ir a um retiro do Shalom porque eu achava que Deus não tinha nada para mim ali. Mas quando coloquei o pé naquele lugar, literalmente, quando coloquei o pé para dentro do portão, foi como se houvesse descortinado diante de mim tudo o que estava em meio a névoas, meio turvo. As nuvens sumiram, as cortinas caíram, e eu percebi: rapaz, é aqui o meu lugar!
Conforme eu subia as escadas do lugar, minhas pernas tremiam, e então, aquela mesma Voz que um dia eu ouvi lá naquele retiro de carnaval, surgiu outra vez e me disse: É aqui o teu lugar.
Depois do retiro, fiz outros cursos da Comunidade e fui me encantando cada dia mais. Passei a ser acompanhado por uma pessoa, fiz meu vocacional em 2006 e em 2007 ingressei na Comunidade de Vida. Eu nunca tive dúvidas do chamado de Deus para a Comunidade de Vida. Por causa, ainda, daquela Voz que ouvi um dia: deixa tudo e segue-me. E tudo, para mim, era tudo: família, trabalho, namoro, tudo.
Breno, depois disso você deve ter vivido alguns “altos e baixos”, não é mesmo? Até porque esse é um caminho de Cruz e Ressurreição, então nós não ignoramos que existe a cruz de cada dia. Alguma vez você pensou em desistir? Como lidou com as maiores dificuldades?
Quando eu mandei a carta pedindo ingresso na Comunidade de Vida, disposto a deixar tudo, eu fui ao Santíssimo e pedi apenas uma coisa, apenas uma: “Tome conta da minha família. Não te peço mais nada, apenas que cuide da minha família”. Fui morar em Aparecida, o que foi muito bom, porque estar ali foi tocar em uma das promessas de Deus para minha vida: a garantia da proteção materna da Virgem Maria. Isso me fez lembrar aquela experiência de quando eu tinha 13 anos e aquela senhora havia dito uma profecia: de que um dia eu seria consagrado ao filho da Virgem que estava sempre comigo. Mas no meu primeiro mês de postulantado, minha mãe telefonou dizendo que meu pai e meu irmão ficaram desempregados, e curiosamente: no mesmo dia!! E aí eu fiquei muito revoltado, porque a única coisa que eu havia pedido a Ele era que tomasse conta da minha família. Eu desliguei o telefone e fui para a capela brigar com Jesus. “Como você faz isso comigo?” E eu me lembro que quando eu terminei de falar sobre toda a minha indignação, eu me silenciei, e então eu ouvi aquela voz que eu já reconhecia: “Meu filho, tua família precisa entender que sou eu o Senhor dela, e não você”. Depois disso, eu senti uma grande paz.
Eu nunca tive grandes crises vocacionais, porque um dia eu ouvi aquela Voz, e Deus não engana, Deus não arma ciladas. Sabia que não seria um caminho fácil, é um caminho realmente de Cruz e Ressurreição, mas é na Cruz que está a glória de Deus. Nos sofrimentos, está a glória de Deus. Nas lutas vividas nesses 10 anos, sejam lutas pessoais, sejam comunitárias, missionárias, qual dificuldade for, ali está presente a glória de Deus, então isso me ajudou muito a ter um novo olhar para as dificuldades, não achando que vai passar logo não. Às vezes, nós temos esse olhar para as dificuldades: “estou vivendo isso aqui, mas logo depois vem a ressurreição”. Temos que saber que nesses momentos de cruz já existe a glória de Deus. Naquele momento de crise, é a hora de Deus em nossa vida. As cruzes e as dificuldades enfrentadas são a hora de Deus em minha vida. Se eu sofro, aí está o tempo e o querer de Deus. Todos nós do carisma Shalom somos chamados a sermos “almas esposas”, e a cruz é esse leito das almas esposas, onde está a glória de Deus.
Depois disso, você viveu alguns anos como missionário, chegou a morar no Maranhão, depois tornou-se o responsável local pela missão de Sobral, e agora foi transferido para a missão São Paulo, como responsável local. É uma grande responsabilidade, não é? Como você lida com isso?
Para mim, ser responsável local é um pretexto de Deus para que eu permaneça bem próximo a Ele. Para que meu coração esteja mais perto. As dificuldades enfrentadas na responsabilidade local, as vidas dos irmãos que estão em nossas mãos, fazem com que eu busque mais a Deus, e isso me dá uma segurança, porque continuo buscando ouvir a voz de Deus para governar a obra dEle. Que não seja, eu simplesmente, porque se for só o Breno, a obra vai ser muito falha, as diretrizes serão falhas. Mas quando eu busco e escuto o coração de Deus, acredito que Deus vai mostrando e modelando. Ser responsável local é ser um homem de serviço. Jesus mesmo fala: o maior no reino dos céus é aquele que serve. Mas não na questão de servir pelo servir, mas de entender que esse é um local de serviço e que os olhares precisam estar voltados para Deus. Jesus é o sentido, é a meta, e muitas vezes nós podemos nos perder pelo caminho, se ficarmos somente na esfera administrativa ou gerencial e esquecermos o essencial, que é a condução do Espírito. Claro que tudo isso é preciso, a gerência é necessária, mas contamos mais com a condução do Espírito.
O que você sabia sobre a missão de São Paulo antes de chegar aqui? E quais são os objetivos agora? Para onde estamos indo?
Eu não conhecia muita coisa daqui não (risos). Conhecia o Messias (que era o responsável local até então), que fundou basicamente todas as missões de São Paulo, com aquele coração desbravador de começar as coisas do nada e partir pra cima. Eu não conhecia as especificidades, mas eu olho para a cidade de São Paulo e vejo grandes possibilidades de evangelização. Na formação, nas artes, no meio intelectual, na Comunidade Aliança, que aqui em São Paulo tem esse papel essencial, no meio dessa sociedade, no trabalho, nas faculdades.
Acredito que Deus tem grandes planos para essa missão, de expansão missionária, de expansão do carisma. Nós temos uma resposta para o homem de hoje, desse tempo, e quando saio pelas ruas de São Paulo, eu questiono sempre: o que podemos fazer, como podemos evangelizar esses homens na loucura dessa cidade que não para, mas que tem sede de Deus? E que precisa parar, para se escutar. Para se conhecer. Precisa parar para se deixar ser amado, ser cuidado.
Eu acredito que o Espírito Santo vai soprando sobre nós, conforme disse o Papa Francisco, temos essa necessidade de uma igreja de saída, que sai de suas estruturas e vai ao encontro do homem de hoje. Através dos cursos, através da música, do teatro, das artes, dos profissionais, temos muitas possibilidades de evangelização nessa cidade. Sinto que precisamos irradiar o carisma Shalom dentro dessa cidade. A única coisa que eu peço a Deus é que Ele nos dê essa ousadia de não temermos a obra dEle, de não temermos aquilo que Ele quer para nós, para essa missão e para esse povo. Deus tem pressa. E muitas vezes, por causa de nossos pecados, nós podemos atrapalhar os planos de Deus. Eu rogo para que essa missão e nosso coração se alarguem para acolhermos aquilo que Deus quer para nós.
E agora, para finalizar: Breno, você sabe que não podemos terminar uma entrevista com você sem perguntar sobre a sua noiva, certo? (risos). Ela é mais famosa que você e estamos ansiosos pela chegada dela a São Paulo (Débora Pires, grande cantora do Missionário Shalom). Então pegando esse gancho, conta pra gente como você chegou ao discernimento do seu Estado de Vida. Isso é relevante também porque: você disse que queria ser Inteiramente de Deus. Deixou tudo, emprego, família e namorada, para ser todo de Deus. E há quem pense que para ser Inteiramente de Deus a única via seria viver o celibato, “lógico”. Então, como é para você ser inteiramente de Deus e também viver um amor autêntico por uma mulher?
Foi muito interessante esse discernimento do meu Estado de Vida sim. Desde a primeira vez em que ouvi aquele “deixa tudo e segue-me”, eu tinha um desejo muito grande de ser celibatário. Até porque eu pensava: pronto, vou seguir a Jesus por onde Ele quiser. Eu pensava: fechou, Jesus me quer só dele. Só que na Comunidade nós fazemos um processo de discernimento e é muito belo viver isso com toda a autenticidade que ele nos pede. Eu cheguei a pedir ao meu formador pessoal para que eu pudesse ir a um retiro de candidato ao celibato, ele não me liberou e fiquei indignado. Começamos a rezar pelo meu estado de vida e aos poucos fui percebendo que eu queria o celibato porque eu não conseguia perceber aquilo que Deus poderia realizar em minha vida através do matrimônio.
Foi um processo de cura interior muito profundo na minha vida. Eu achava que o celibato era o que Deus queria para mim, mas na verdade o que Deus queria era tocar nesse assunto para curar as feridas do meu coração, em relação aos relacionamentos que existiam a meu redor, aos casamentos a meu redor, que não eram felizes, que muitas vezes não tornavam as pessoas realizadas. Eu achava que também não seria feliz dessa forma.
Jesus foi me curando em toda a minha história e no dia em que revelou que me chamava ao sacramento do matrimônio, foi libertador, porque eu me reconciliei com a minha história. Em nossos “Escritos”, nosso fundador diz que não devemos sair à caça de uma pessoa, pois Deus irá nos conduzir à pessoa certa. Eu conheci a Débora na Jornada Mundial da Juventude em Madrid, na Espanha, e pude ver realmente o amor de Deus nisso. Primeiro, ele chamou ambos para segui-lo. Eu deixei tudo para seguir a Deus, a Débora deixou tudo para seguir a Deus. Trilhamos um caminho de amizade e fomos buscando nos conhecer cada vez mais. A vida apostólica também nos leva a viver o que Deus quer para nós. A vivência apostólica não nos nega nada, nada do que nós somos. E então vivemos todo o processo da comunidade: tempo de caminhada, liberação de namoro, e depois de três anos o noivado.
Ainda estamos nos conhecendo, afinal a gente nunca deixa de conhecer a pessoa plenamente. Vamos nos casar em agosto e viver a vontade de Deus para nossas vidas. Sei que ela é muito mais conhecida do que eu, mas, Deus me deu a graça de conhecer realmente a Débora. Não a cantora do Missionário Shalom. Deus me deu essa graça e esse presente de conhecer a Débora, e isso é o que me encanta mais. Eu sempre digo para ela, que quando as luzes se apagarem e não houver mais palco, eu ainda estarei lá, esperando por ela.
O próprio caminho de namoro é um caminho de cura interior e de decisão pelo outro. De liberdade também, porque Deus vai nos tirando de nós mesmos. O amor cura. Uma das coisas mais fortes que temos em nossa relação é acreditar na beleza do amor humano. O amor humano também cura, o amor humano também liberta, o amor humano também traz vida onde não havia vida. O amor humano vem mostrar a beleza daquilo que a Carta aos Coríntios já diz: o amor é bondoso. Esse amor vai me devolvendo a dignidade de ser homem. A mulher, sendo esse “socorro de Deus para o homem”, é o que vai me devolvendo a dignidade de ser também gente, de deixar que esse amor me toque e que esse amor me transforme.