Que parte temosnós (agora entendo “nós” no sentido de nós que aqui estamos, nós os crentes)neste tremendo requisitório que ouvimos contra o pecado? Atendo-nos a tudo oque foi dito até agora, pareceria de fato que nos assiste, mais do que aoutrem, o papel de acusadores. Mas ouçamos bem o seguinte. Eu disse acima que oApóstolo, com suas palavras, havia arrancado a máscara do rosto do mundo etambém do nosso, e chegou o momento de indagar como é que a palavra de Deusleva a cabo esta segunda e mais difícil operação.
A Bíblia narra o seguinte fato: O reiDavi cometera um adultério; para encobri-lo, fez morrer o marido legítimo, desorte que, em tais circunstâncias, tomar a mulher por esposa poderia certamenteparecer, por parte do rei, um ato de generosidade para com o soldado morto porele em combate. Umverdadeiro encadeamento de pecados. Então apresentou-lhe o profeta Natã,enviado por Deus. e narrou-lhe uma parábola (sem que o rei soubesse que era umaparábola). Havia na cidade — disse — um homem riquíssimo que tinha rebanhos deovelhas, e também havia um pobrezinho, dono de uma só ovelhinha que lhe eramuito cara, que lhe propiciava o sustento e dormia com ele… Chegou à casa dorico um hóspede e ele, poupando as próprias ovelhas, apoderou-se da ovelhinhado pobre e mandou matá-la para prover a mesa do hóspede.
Ao ouvir tal história, desfechou aira de Davi contra tal homem e disse: “Quem fez isto merece a morte!” EntãoNatã, interrompendo subitamente a parábola, disse a Davi: “Tu és este homem!”(cf. 2Sm 12,1ss). O mesmo faz conosco o apóstolo Paulo. Depois de nos ter induzidoa uma justa indignação e horror à impiedade do mundo, passando do capítuloprimeiro ao segundo da sua carta, como se voltasse de golpe contra nós, ele nosrepete: “Tu és este homem! Portanto és inescusável — diz — quem quer que sejas,ó homem que julgas, porque enquanto julgas os outros condenas a ti mesmo; defato, tu que julgas fazes as mesmas coisas. Contudo, nós sabemos que o juízo deDeus é conforme à verdade contra os que cometem tais coisas.
Talvez penses, ó homem que julgas osque cometem tais ações e entretanto fazes o mesmo, escapar à ira de Deus (Rm2,1-3). A reaparição, neste ponto, do termo “inescusável” (anapologetos), usadoacima para os pagãos, não deixa dúvida acerca das intenções de Paulo. Enquantojulgavas os outros — diz ele — condenavas a ti mesmo. O horror que concebestescontra o pecado, é hora de voltá-lo contra ti.
O “que julga” revela-se, no decorrerdo capítulo segundo, como sendo o judeu; mas aqui ele tem a acepção de tipo.“Judeu” é o não-grego, o não-pagão (cf. Rm 2,9-10); é o homem piedoso e crenteque, fiado em seus princípios e possuidor de uma moral elevada, julga o restodo mundo e, julgando-o, sente-se em segurança. Neste sentido, “judeu” é cada um denós. Dizia bem Orígenes que, na Igreja, quem deve ser posto na mira dessaspalavras do Apóstolo são os bispos, os presbíteros e os diáconos, isto é, osguias, os mestres (cf. Orígenes, Comm. in ep. Rom.).
O próprio Paulo sofreu este impactoquando de fariseu se tornou cristão e, por isso, pode agora falar com tanta segurançae apontar aos crentes o caminho para sair do farisaísmo. Ele desmascara aestranha e freqüente ilusão das pessoas piedosas e religiosas de se manterem asalvo da cólera de Deus, só por terem um conceito claro do bem e do mal,conhecerem a lei e, dada a ocasião, saberem aplicá-la aos outros, enquanto, noque se lhes toca, pensam que o privilégio de estar da parte de Deus ou, dequalquer modo, a “bondade” e a “paciência” de Deus, que bem conhecem, abrirãopara eles uma exceção.
É como se, enquanto um pai estácensurando um dos filhos por uma transgressão qualquer, um outro filho,igualmente culpado, imaginasse provocar a simpatia do pai e eximir-se dacensura, simplesmente pondo-se também a ralhar o irmão em voz alta, enquanto opai esperava algo bem diferente, isto é, que, ouvindo-o censurar o irmão evendo a sua bondade e paciência para com ele, corresse a atirar-lhe aos pésconfessando-se também réu da mesma culpa e prometendo emendar-se: Ou desprezasa riqueza da sua bondade, da sua tolerância e da sua paciência, sem reconhecerque a bondade de Deus te impele à conversão? Tu, porém, com tua dureza e teucoração impenitente, acumulas cólera sobre ti para o dia da ira e da revelaçãodo justo juízo de Deus (Rm 2,4-5).
“Não percebes que a bondade de Deuste está impelindo à conversão? Tu, com a tua dureza de coração, estásacumulando cólera sobre ti…!” Que terremoto, no dia em que te deres conta deque a palavra de Deus está falando assim precisamente para ti, e que aquele“tu” és tu mesmo! Sucede como quando um jurista está todo ocupado a analisaruma famosa sentença de condenação emitida no passado e que faz autoridade,quando, de improviso, observando melhor, percebe que tal sentença se aplicatambém a ele: de repente muda o seu estado de ânimo e o coração deixa de pulsarcom segurança. Aqui, a palavra de Deus está empenhada num legítimo tour deforce; ela deve inverter a situação daquele que a está tratando. Aqui, não háescapatória: forçoso é “desabar” e dizer como Davi: Pequei! (2Sm 12,13). Caso contrário,sobrevem-lhe um ulterior endurecimento de coração e a impenitênciacorrobora-se. Da escuta desta palavra de Paulo sai-se ou convertido ouempedernido.
Mas qual é a acusação específica queo Apóstolo lança contra os “piedosos”? A — diz ele — de cometer “as mesmascoisas”? No sentido de “materialmente” as mesmas? Também isso (cf. Rm 2,21-24);mas sobretudo as mesmas coisas quanto à substância, que é a impiedade e aidolatria. Há uma idolatria larvada, que está de contínuo em ação no mundo. Sea idolatria é “adorar a obra das próprias mãos” (cf. Is 2,8; Os 14,4), seidolatria é “colocar a criatura em lugar do Criador”, eu sou idólatra quandocoloco a criatura — a minha criatura, a obra das minhas mãos — no lugar doCriador.
A minha criatura pode ser a casa ou a igrejaque estou construindo, a família que educo, o filho que pus no mundo (quantasmães, mesmo cristãs, sem se dar conta, fazem do filho, especialmente se único,seu deus!); pode ser o trabalho que faço, a escola que dirijo, o livro que escrevo…Há além disso, o ídolo-mor que é o meu próprio “eu”. De fato, no fundo de todaa idolatria encontra-se a autolatria, o culto se si mesmo, o amor próprio, opôr-se no centro e no primeiro lugar do universo, sacrificando-lhe todo oresto. A “substância” é sempre a impiedade, o não glorificar a Deus, mas sempree só a si mesmo, o fazer servir até o bem, até o serviço que prestamos a Deus —mesmo a Deus! —, para o próprio êxito e a própria afirmação pessoal.
De fato, se é verdade que tãofreqüentemente os que defendem os direitos do homem na realidade defendem ospróprios direitos, não é menos verdade que, mui freqüentemente, até os quedefendem os direitos de Deus e da Igreja fazem outro tanto, isto é, defendem,na verdade, a si mesmos e os próprios interesses, e é por isso que também hoje“o nome de Deus é blasfemado por nossa causa entre os pagãos” (Rm 2,24). Opecado que S. Paulo denuncia nos “judeus” ao longo de toda a carta épropriamente este: procurar uma justiça própria, uma glória própria e procurarobtê-la até da observância da lei de Deus.
Talvez a esta altura, entrando em mimmesmo, esteja eu pronto a reconhecer a verdade, ou seja, que até agora vivi“para mim mesmo”, que também eu estou implicado, embora de modo e em graudiferente, no mistério da impiedade. O Espírito Santo me “convenceu de pecado”.Começa para mim o milagre sempre novo da conversão. Que fazer nesta situaçãodelicada? Abramos a Bíblia e entoemos também nós o “De profundis”: Dasprofundezas clamo a ti, Senhor (Sl 130). O “De profundis” não foi escrito paraos mortos, mas para os vivos; o “profundo” do qual o salmista eleva seu gritonão é, de per si, o do Purgatório, mas o do pecado: Se consideras as culpas,Senhor, quem poderá subsistir?
Está escrito que Cristo “foi em espíritoanunciar a salvação também aos espíritos que aguardavam na prisão” (cf. 1Pd3,19) e um padre antigo comentava este fato dizendo: “Quando ouvires dizer queCristo, tendo descido ao Hades, libertou as almas que ali eram mantidasprisioneiras, não penses que estas coisas estejam muito distantes das que serealizam ainda hoje. Crê-me, o coração é um sepulcro” (Macário Egípcio, Delibert. mantis). Nós estamos agora espiritualmente na situação dos “espíritosencarcerados” que aguardavam no Hades a vinda do Salvador e que, nos ícones,são vistos estender as mãos desesperadamente para agarrar a destra de Cristoque vem, com a sua cruz, arrancá-los do cárcere. Elevemos também nós o grito doprofundo cárcere do nosso “eu”, em que somos mantidos prisioneiros.
O salmo com que estamos rezando estátodo orvalhado de confiante esperança e expectativa: Eu espero no Senhor… Aminha alma espera pelo Senhor mais do que a sentinela pela aurora… Ele remiráIsrael de todas as suas culpas. Já sabemos que o socorro existe, que é umremédio para o nosso mal, porque “Deus nos ama” e por isso, embora sacudidospela palavra de Deus, permaneçamos serenos e digamos com confiança a Deus: Tunão abandonarás a minha vida na tumba, nem deixarás que o teu santo veja acorrupção (Sl 16,10).