São João Paulo II foi certamente uma das figuras mais importantes do século XX; a sua grandeza manifestou-se a nós em seus atos, palavras, em tantos fatos e detalhes que compuseram o belo “mosaico” de sua vida. Este “mosaico”, de beleza distinta, foi reconhecido pela multidão que acorreu ao Vaticano para homenageá-lo em seu funeral, logo entoando o grito: «santo súbito!».
O seu sucessor, o Papa Bento XVI – profundo conhecedor de São João Paulo II e seu estreito colaborador –, expressou palavras, após assistir o documentário “o peregrino vestido de branco”, que sintetizam a vida deste grande Santo:
«Gostaria de realçar mais uma vez os dois sustentáculos da sua vida e do seu ministério: a oração e o zelo missionário. João Paulo II foi um grande contemplativo e um importante apóstolo de Cristo. Deus escolheu-o para a sé de Pedro e conservou-o por longo tempo para que introduzisse a Igreja no terceiro milénio. Com o seu exemplo, guiou-nos a todos nesta peregrinação e continua agora a acompanhar-nos do Céu»[1].
Abordaremos de maneira breve estes dois aspectos indicados pelo Papa Bento XVI. Primeiramente João Paulo II como contemplativo e, em seguida, como missionário, para assim fazer uma síntese destes dois sustentáculos de sua vida.
João Paulo II, contemplativo
Em 1946, após a sua ordenação, Karol Wojtyla foi enviado à Roma para estudar no Angelicum; foi introduzido na teologia de São João da Cruz por González Arintero e acompanhado em sua tese de doutorado – cujo título foi: “A fé segundo são João da Cruz” –, por Réginald Garrigou-Lagrange[2]. Esta etapa em sua vida não o marcou somente em seu intelecto, mas foi expressão de uma amizade com o Santo que o ajudou nos caminhos da fé, como confessou na sua Carta Apostólica Maestro della fede, por ocasião do IV centenário da passagem de são João da Cruz para glória:
«Eu mesmo me senti especialmente atraído pela experiência e pelos ensinamentos do Santo de Fontiveros. Desde os primeiros anos de minha formação sacerdotal, encontrei nele um guia seguro nos caminhos da fé. Este aspecto de sua doutrina me pareceu de vital importância para todos os cristãos, sobretudo em uma época, como a nossa, exploradora de novos caminhos, mas também exposta a riscos e tentações no âmbito da fé»[3].
Se nos perguntássemos o que mais atraiu João Paulo II na vida e obras de São João da Cruz, poderíamos responder, com Rocco Buttiglione, que Wojtyla é atraído por ver nas obras do santo, «uma espécie de fenomenologia da experiência mística»[4]. Por meio da espiritualidade carmelitana, «Wojtyla apreende o cristianismo principalmente como uma experiência onde Deus transforma a vida a partir de dentro, onde a docilidade à Sua presença – que se realiza – é o fator essencial da vida em santidade»[5]. Esta experiência com o divino foi tão marcante e essencial na vida de São João Paulo II que, ao selar seus atos, seus pensamentos, toda a sua existência, manifestou-se também claramente a todos os que com ele conviveram. Desde modo, o Cardeal Giovanni Battista Re, ao ser perguntado sobre o que mais que lhe tocava em São João Paulo II, respondeu:
«Muitas coisas: sua segurança, suas certezas, sua capacidade de falar com as multidões. Mas o que sempre me chamou mais a atenção foi a intensidade de sua oração. Não se pode compreender João Paulo II se não se considera atentamente o seu relacionamento com Deus. Da forma como ele rezava, podia-se sentir como a união com Deus era para ele o sopro da alma. Quando ele estava recolhido em oração, o que estava acontecendo ao seu redor não parecia preocupá-lo. Antes de cada decisão importante, ele se colocava em oração por um longo tempo, às vezes por vários dias. Parecia que ele estava tratando com Deus sobre os vários problemas. Lembro-me de um caso em particular. Eu era o substituto da Secretaria de Estado e pareceu-me que o Papa já era a favor de uma certa escolha difícil. Perguntei-lhe se podíamos comunicá-la. Ele respondeu: “Vamos esperar, eu quero rezar um pouco mais antes de decidir” (…). Quando ele estava sozinho, na capela de seu apartamento no Vaticano, às vezes rezava deitado no chão, como na cerimônia de ordenação sacerdotal e episcopal. Expressava, assim, profunda adoração e humilde súplica diante da infinita grandeza de Deus.
(…) Ele era um místico que tinha uma forte tensão espiritual dentro de si; mas um místico com os pés no chão, atento às pessoas e às situações. Esta característica mística dele também era evidente em suas caminhadas. Diante de uma bela paisagem, ele queria ser deixado sozinho para rezar e contemplar. Ele tinha uma extraordinária capacidade de apreciar a beleza da natureza, que fala do Criador, mas também a beleza da arte e da literatura, e o calor da amizade»[6].
Foi este fundamento indispensável, a oração, que são João Paulo II reafirmou em sua Carta Apostólica, Novo Millennio Ineunte, ao mencionar algumas prioridades pastorais, que contribuiriam para o novo impulso com o qual a Igreja era convidada – por Deus – a entrar no terceiro milênio. Após afirmar a santidade como o horizonte para o qual deve tender todo o caminho pastoral, o Santo Padre apresentou a oração entre as prioridades pastorais:
«Para esta pedagogia da santidade, há necessidade dum cristianismo que se destaque principalmente pela arte da oração. O ano jubilar foi um ano de oração, pessoal e comunitária, mais intensa. Mas a oração, como bem sabemos, não se pode dar por suposta; é necessário aprender a rezar, voltando sempre de novo a conhecer esta arte dos próprios lábios do divino Mestre, como os primeiros discípulos: “Senhor, ensina-nos a orar” (Lc 11,1). Na oração, desenrola-se aquele diálogo com Jesus que faz de nós seus amigos íntimos: “Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós” (Jo 15,4). Esta reciprocidade constitui precisamente a substância, a alma da vida cristã, e é condição de toda a vida pastoral autêntica. Obra do Espírito Santo em nós, a oração abre-nos, por Cristo e em Cristo, à contemplação do rosto do Pai. Aprender esta lógica trinitária da oração cristã, vivendo-a plenamente sobretudo na liturgia, meta e fonte da vida eclesial, mas também na experiência pessoal, é o segredo dum cristianismo verdadeiramente vital, sem motivos para temer o futuro porque volta continuamente às fontes e aí se regenera»[7].
João Paulo II, missionário
João Paulo II, após apresentar um elenco de prioridades pastorais para a Igreja no início do novo milênio, tais como: a Eucaristia dominical, o sacramento da reconciliação, o primado da graça e a escuta da Palavra, segue afirmando que é fundamental «alimentar-nos da Palavra para sermos “servos da Palavra” no trabalho da evangelização». Dois elementos são dignos de nota. Primeiramente o Papa apresenta a evangelização como uma prioridade da Igreja e fruto destes elementos anteriores, desde a pedagogia da santidade até a escuta da Palavra. Em seguida o Papa retoma o conceito bíblico do evangelizador como “servo da Palavra”(cf. At 6,4); eis porque é necessário colocar-se à escuta d’Aquele que, nesta mesma Palavra, nos fala. A este belíssimo e sublime serviço da Palavra o Papa convoca a Igreja no início do terceiro milênio; diz-nos o Papa:
«Tal é, sem dúvida, uma prioridade da Igreja ao início do novo milénio. Deixou de existir, mesmo nos países de antiga evangelização, a situação de “sociedade cristã” que, não obstante as muitas fraquezas que sempre caracterizam tudo o que é humano, tinha explicitamente como ponto de referência os valores evangélicos. Hoje tem-se de enfrentar com coragem uma situação que se vai tornando cada vez mais variada e difícil com a progressiva mistura de povos e culturas que caracteriza o novo contexto da globalização. Ao longo destes anos, muitas vezes repeti o apelo à nova evangelização; e faço-o agora uma vez mais para inculcar sobretudo que é preciso reacender em nós o zelo das origens, deixando-nos invadir pelo ardor da pregação apostólica que se seguiu ao Pentecostes. Devemos reviver em nós o sentimento ardente de Paulo que o levava a exclamar: “Ai de mim se não evangelizar!” (1 Cor 9,16).
Esta paixão não deixará de suscitar na Igreja uma nova missionariedade, que não poderá ser delegada a um grupo de “especialistas”, mas deverá corresponsabilizar todos os membros do povo de Deus. Quem verdadeiramente encontrou Cristo, não pode guardá-Lo para si; tem de O anunciar[8]».
Esta inflamada exortação à missionariedade, à evangelização, encontrou na vida do Santo Padre um belo modelo. Basta-nos algumas estatísticas para sermos convencidos disto. São João Paulo II realizou 104 viagens apostólicas, visitando 129 nações (excluindo as repetições), 617 cidades; proferiu 2.382 discursos programados e percorreu um total de 1.162.615 quilômetros. Com esta quilômetragem poder-se-ia percorrer 29,06 vezes a circunferência da terra, o que equivale à 3,02 vezes a distância entre a Terra e a lua[9].
Ao visitar os povos, são João Paulo II cumpria gestos inigualáveis, como beijar a terra em que pisava e se aproximar tanto do povo visitado, que cada nativo o sentia como o seu papa, como alguém próximo a si. Este amor não se expressou somente aos distantes, mas também aos “próximos, não só os italianos, mas também os romanos”. O Papa fez 146 viagens na Italia, fora de Roma e de Castelgandolfo, e 748 visitas à diocese e cidade de Roma e Castelgandolfo. Das visitas à diocese de Roma, o Papa visitou 301 das 333 paróquias romanas. A partir de dezembro de 2002, as reuniões com as paróquias de Roma aconteceram no Vaticano; então, 16 Paróquias vieram em visita ao Santo Padre, formando, portanto, um total de 317 paróquias romanas que o Papa pôde encontrar, chegando muito perto da totalidade das paróquias romanas[10]. De fato, foi ele mesmo que expressou este desejo, por ocasião de sua visita à trecentésima comunidade paroquial da Igreja de Roma:
«Carísssimos Irmãos e Irmãs da Paróquia de Santa Maria Josefa do Coração de Jesus! A alegria de estar no meio de vós, hoje, assume uma intensidade particular. É a alegria de poder encontrar a trecentésima comunidade paroquial da amada Igreja de Roma. Desde o início do Pontificado, foi importante para mim exercer o ministério de Bispo de Roma, visitando também, e talvez sobretudo, as comunidades paroquiais da Diocese»[11].
O Papa João Paulo II, deste modo, realizou em sua vida, em seu ministério petrino, a imagem do Pastor que vai ao encontro das ovelhas, para que assim sejam protegidas dos falsos pastores. Muitos puderam ouvir sua voz, vê-lo presencialmente e reconhecer nele um verdadeiro vigário de Cristo.
João Paulo II, contemplativo e missionário
Na vida de são João Paulo II tornou-se claro para nós a relação entre a contemplação e a missionariedade. Cabe-nos ainda uma breve palavra sobre o nome assumido por Karol Wojtyla quando eleito à sede de Pedro. João Paulo é uma clara escolha de continuidade na missão dos Papas João XXIII e Paulo VI – respectivamente o que deu início e o concluiu o Concílio Vaticano II –, missão essa iniciada por João Paulo I, mas brevemente interrompida por ocasião de sua morte. No entanto, João Paulo nos recorda o nome de dois apóstolos, duas colunas da Igreja, conhecidos de maneira particular, respectivamente, por reclinar-se no peito de Cristo – João – (cf. Jo 13,23) e anunciar à Palavra às nações – Paulo – (cf. At 13,46-48). Sabemos, porém, que tanto Paulo foi um homem profondamente místico (cf. 2Cor 12,2-4) e que João – segundo a tradição –, em sua missionariedade alcançou a cidade de Éfeso[12]. Na vida de São João Paulo II, igualmente, como os grandes apóstolos de Cristo, podemos constatar uma síntese primorosa da vida contemplativa e missionária. Por isso, suplicamos para que este gigante da fé, e homem tão próximo de nós, nos ensine a reclinar sobre o peito de Jesus e anunciá-Lo de modo incansável a todos os homens, para o bem da Igreja e de todo o povo de Deus.
Elton Alves, doutorando em Teologia pela Faculdade de Teologia de Lugano e consagrado da Comunidade Católica Shalom.
São João Paulo II, rogai por nós!
[1] Estas palavras do Papa Bento XVI foram proferidas na Sala do Consistório, no Sábado, dia 9 de Abril de 2011 e podem ser encontradas no site do Vaticano: http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/speeches/2011/april/documents/hf_ben-xvi_spe_20110409_pellegrino.html
[2] Cf. Lopez, Rodrigo Guerra, Volver a la persona: el método filosófico de Karol Wojtyla, Caparrós Editores: Madrid, 2002, 52.
[3] João Paulo ii, Carta Apostólica: Maestro della fede, n. 2 (14.12.1990).
[4] Buttiglione, Rocco, Il pensiero dell’uomo che divenne Giovanni Paolo II, Milano: Mondadori, 1998, 68.
[5] Lopez, Rodrigo Guerra, Volver a la persona: el método filosófico de Karol Wojtyla, 39.
[6] Este texto foi extraído da entrevista que o Cardeal Giovanni Battista Re deu ao jornal italiano Corriere della Sera, no dia 17.05.2020, por ocasião do centésimo aniversário de seu nascimento.
Link de acesso à intrevista: https://www.corriere.it/cronache/20_maggio_17/mia-vita-giovanni-paolo-ii-ecco-perche-malato-non-si-dimise-3e8527ac-979e-11ea-ba09-20ae073bed63.shtml
[7] João Paulo ii, Carta Apostólica: Novo Millennio Ineunte, n. 32 (06.01.2001).
[8] João Paulo ii, Carta Apostólica: Novo Millennio Ineunte, n. 40.
[9] Todos os dados acima foram retirados do próprio site do Vaticano, da Sala Stampa della Santa Sede, onde são fornecidas informações estatísticas sobre o Pontificado de São João Paulo II :
http://www.vatican.va/news_services/press/documentazione/documents/viaggi/viaggi_santo_padre_statistiche_fuori-italia_globale_it.html
[10] Os dados relativos às viagens do Santo Padre em território italiano foram retirados do próprio site do Vaticano, da Sala Stampa della Santa Sede:
http://www.vatican.va/news_services/press/documentazione/documents/pontificato_gpii/pontificato_dati-statistici_it.html
[11] João Paulo ii, homilia em ocasião da visita pastoral à paróquia romana de Santa Maria Josefa do Sagrado Coração de Jesus, n. 3 (16.12.2001).
[12] Cf. Ireneo di Lione, Contro le eresie, II, Città Nuova, Roma 2009, 9.
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