“Ao voltar para casa, ao amanhecer, refleti sobre a quantidade de violações que cometera nas últimas 12 horas. Comera um alimento que não era kosher. Perdera as orações matutinas… e como planejava dormir, perderia também a aula, demonstrando desrespeito com meus mestres. E, pior de tudo, rendera-me à Tentação do Mal. Estava eivado de pecado. E mais feliz do que em qualquer outra ocasião de minha vida” SEGAL, 1992, p. 152
Eis um valor hedonista que o texto literário (objeto das minhas investigações) pode “mostrar” a quem crê: confundir pecado com felicidade e ou fundir infelicidade a falta de prazer. Sim, é um personagem (Daniel, filho primogênito de um rabino, judeu ortodoxo) em crise identitária quanto à religião, mas o recurso estético-compositivo (o gênero é ficcional, mas a tônica é confessional).
É como se estivesse falando diretamente ao leitor, e passa uma “crença” que os ânimos do corpo e do espírito divergem, pois divergiu nele; e ainda como se fosse impossível não se submeter ao Império do Desejo (no Ducado – do latim, duque, dux, aquele que conduz – da Natureza sim, mas não no Reino da Graça). Sim, os desejos da alma (anima) existem e são, senão maiores, tão apelativos e fortes quanto os do corpo. Vivamos (ao menos, nós os crentes, podem existir/ler ateus por aqui?) sem negar uns nem renegar os outros.
Bendito seja Deus por eu conhecer (saber e saborear) o Amor real antes de enfrentar alguns imperadores da razão, no entanto, todos subalternos ao Rei, pois a Efusão do Espírito Santo, que me habita, aconteceu em mim 4 meses antes de ingressar na Faculdade de Letras, matriculado na disciplina Teoria Literária (aula sobre ficção versus realidade, todos somos hipócritas?, lá foi dito isso).
Vi o Rei, li-O numa hóstia branca, no Corpo Eucarístico, puro, santo e dado a nós. Apesar de Este nunca se ter escusado de se abaixar, descer e conversar com eles (lembras da pecadora em flagrante adultério?); pois o diálogo (do grego: dia = dois, logos = palavra; palavra entre dois), se franco, aperta nossos olhos e neurônios em argumentações, mas firma nossos pés e passos (quando fincados em sentido e valores religiosos – castidade e pureza, que nos ajudam a chegar em beatitude). Ouso quebrar esta palavra, e dar-lhe dupla significação, os literatos fazem isso, analogamente em poesia, beatitude, igual a atitude feliz.
Nosso corpo é dinâmico e necessita de vários ânimos, motivações variadas; e a continência sexual (abstinência a alguns) não é um contraponto da indulgência sexual nem de uma doação gratuita e inteira. Há outras formas de realizar a missão fisiológica dos testículos e do útero (“homem e mulher, Deus os criou”)? Pensando somente na parte (genitalidade e maternidade) não! Ponderando no todo (bio-psico-sócio-espiritual), unido à liberdade, sim!
Nós, os celibatários, escolhemos ofertar. Porque não é bom o sexo? Não! Mas porque é muito melhor o amor, com ou sem usar uma parte. Não negamos uma parte nem devemos compensar noutras, e afirmamos: escolhi entregar tudo! Aos chamados ao matrimônio, o sexo com amor e o Amor entre os genitais e outros órgãos dos cônjuges (pele, boca etc.) são ótimos (esperado, fiel, sóbrio, solicitado pelo corpo e, por conseguinte, também casto) e cheio de inteireza. – Se é tão bom assim o sexo, por que se abster? – Se é realizante (e encontramos sentido nisso) entregá-lo pelo Reino dos Céus, por que se negar em responder a este chamado?
Sem negar as paixões e o desejo ao prazer, firmados nas entrelinhas de alguma Literatura, a exemplo do livro citado, e confirmados no cotidiano dos celibatários, afirmamos o primado do amor. Nessas entrelinhas, pode haver um não; no entanto, posso dizer (e viver um) sim! Do Erós da afeto-sexualidade, passando pelo Filós da imaginação e da memória, até atingir o clímax do Agapós, na inteligência e na vontade (Deus caritas est, Bento XVI). Prazer em amigos, parentes e filhos todos temos (crentes ou ateus – o cientista, por exemplo, “fazem” filhos do seu saber – em abraçar o celibato, resolvi fazer filhos pela fé), acreditemos ou não.
Lê tudo, estudante do texto literário, e guarda o que é bom; põe os teus olhos na Beleza e tudo o mais será nada (cf. João da Cruz). Entre a beleza de um livro e a feiura da cruz, escolho a última, por me arrastar ao Eterno, à Ressurreição. Ó paradoxo cristão e católico, haja visto o celibato dos monges, frades, freiras e padres, que confunde grandes sábios e se explica aos pequenos simples, aos que, no princípio, no meio e enfim, amam. Portanto, amem. Sem acento para que nos amemos mais.
Everaldo Bezerra, filho de Deus, Shalom, celibatário
Consagrado na Aliança Shalom
Missão Arapiraca – Alagoas
Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade Católica Portuguesa, em Braga – Portugal.
Referência bibliográfica: SEGAL, Erich. Atos de Fé. Pinheiro de Lemos (trad.). São Paulo: Círculo do Livro, 1992.