“Perto da cruz de Jesus, permanecia de pé sua mãe”. (Jo 19, 25)
O processo de luto é uma das experiências mais universais, desorganizadoras e ameaçadoras que uma pessoa ou a família pode viver, pois nada é como antes.
No entanto, a partir do processo do luto, uma pessoa é capaz de dar nova resposta para vida, vindo a reconstruir, redefinir e reorganizar sua história, além de renovar as relações e a identidade pessoal, por meio da avaliação de seu significado.
Entretanto, a vida será sempre constituída por pequenos e grandes lutos e, conforme Braz e Franco[1], a perda faz com que o enlutado fique triste, chore, lamente e sinta saudade.
No entanto, o diferencial está em como ele sente e administra as suas emoções perante o sofrer.
Compreende-se, portanto, que o pesar refere-se à condição de uma pessoa que se encontra vivenciando a angústia pela perda, de modo que essa elaboração não se dá numa experiência linear, e sim dinâmica, gradual, composta por reações físicas e emocionais integradas ao ser humano; cada pessoa tem a sua forma particular de elaborar o luto, numa vivência sem uma sequência rígida de etapas ou término [2].
O significado e as consequências da perda variam, dependendo da fase específica do desenvolvimento do ciclo de vida que a família está atravessando por ocasião da morte, como também o tipo de morte [3].
Neste caso, vale salientar que a família enlutada tem a sua própria história, composta por crescimentos e desafios, por outro lado a mesma pode se encontrar inserida num contexto marcado por estressores psicossociais que a põe em condição de risco.
Além disso, algumas pessoas se encontram em maior situação de crise para encarar a vida após a morte de uma pessoa significativa. Dito isto, podem ocorrer várias realidades, tanto pessoais como familiares no processo de luto, desde o sofrimento emocional até satisfatória elaboração da perda [4].
No processo de luto, há uma necessidade de construir o significado da perda, contudo, tanto podem ocorrer fatores estimuladores, como inibidores no seio familiar nesta circunstância, posto que os estimuladores relacionam-se aos rituais familiares, qualidade nas interações e tolerância pelas diferenças.
Já os inibidores, dificultam o processo de luto, no que diz respeito a exclusão de membros, intolerâncias, proibição de assuntos delicados, inacabados referentes a morte do falecido, vindo a acarretar danos no sistema familiar. Em suma, enfrentar o luto na família demanda, sempre que possível, reconhecer a particularidade de cada membro [5].
Além do mais, torna-se imprescindível a família descobrir o sentido e o significado que a perda tem em sua trajetória, de modo que o luto seja um processo de transição não unilateral, isto é, que tem data preestabelecida para terminar, uma vez que podem perdurar meses e anos, e para alguns nunca acabar.
Isso pode estar relacionado às características individuais da personalidade e à qualidade da relação com a pessoa falecida [6].
Nesse sentido, existem vários tipos de luto a serem vividos na vida de uma pessoa ou família, que podem ser designados como: antecipatório, inesperado, mal-elaborado ou complicado, saudável, dentre outros. Todos esses lutos traduzem-se num processo delicado na vida de qualquer indivíduo.
O luto não surge apenas no momento da morte propriamente dita, e sim ocorre antes da perda, quando se trata de caso constatação da doença, onde permite a família vivenciar o luto antecipatório, possibilitando-a condições adequadas para corresponder às demandas, sem dispêndio de energia psíquica e de reguladores afetivos [7].
Portanto, o luto antecipatório equivale como percurso longo de cuidados, no caso de doenças graves, de maneira que o familiar encontra-se ainda vivo, porém sua perda já é sentida, por manifestar características e sintomatologias das primeiras fases do luto possibilitando, assim, já haver a elaboração do luto [8].
Quanto ao luto inesperado, este é decorrente de uma morte repentina e/ou violenta, em que provoca uma ruptura intensa nos vínculos, vindo a gerar um sofrimento aos enlutados. A reação da família após a morte, poderá apresentar maior resistência para a elaboração da perda, sendo possível o surgimento dos fatores complicadores (morte súbita, de longa duração e relação ineficaz com o falecido) do processo de luto que poderá evoluir para o luto mal elaborado ou complicado [9].
Por conseguinte, quando o enlutado apresenta considerável dificuldade em elaborar a perda e retomar a vida, considera-se então que este se encontra no luto complicado. Logo, o luto complicado é considerado um quadro clínico de maior duração e gravidade após a perda, visto ser qualitativamente diferente dos transtornos afetivos.
Assim como Barbosa [10], Kovács [11] e Davel e Silva [12] abordam, o luto pode ser complicado quando seu processo manifesta-se prolongado e oriundo da introdução das disfunções na vida do enlutado, passando a prejudicá-lo.
Discorre-se por meio de sintomas psíquicos tais como depressão, anorexia, sintomas somáticos, sofrimento psíquico, distúrbio de sono, sentimento de desesperança, sentimento de culpa, dentre outros.
Outrossim, o luto complicado expande a falta de expectativa de vida, resultando numa conduta de esquiva disfuncional social, sentimento de vazio, idealização intrusiva, distorções cognitivas, raiva, amargura, podendo apresentar um quadro demasiadamente demorado, culminando na dificuldade em agregar novos significados a experiência vivida, desencadeando não no curso normal de uma elaboração.
Por outro lado, quando ocorre a elaboração do luto de modo satisfatório, o enlutado enfrenta e aceita as dores da perda definitiva, numa atitude capaz de ressignificar as circunstâncias vividas denominando-se luto saudável.
Nesse caso, muitas vezes, o processo se deve ao grau de integração relacional do enlutado com o membro falecido, à maturidade do enlutado e ao funcionamento familiar [13].
Portanto, à medida que estende o entendimento da morte do membro familiar e aumenta a busca gradativa pelos meios de mudanças, maior é a capacidade que o enlutado tem de experienciar o luto normal/saudável.
Kissane, Lichtenthal e Zaider [14] apontam que as famílias que elaboram de forma eficiente o luto apresentam habilidades de lidar com conflitos, percepção de coesão e expressividade, numa comunicação eficaz e construtiva.
Em contrapartida, a família disfuncional que vivencia o luto de modo contrário das que o elaboram, vindo a estarem propensas às morbidades psicossociais.
Neste sentido, a família enlutada a qual recebe cuidados familiares/amigos ou que estejam nos cuidados terapêuticos se nutre, provavelmente, de elementos de resiliência no momento da perda. De tal modo, os mesmos autores reforçam que a família em processo resiliente desenvolve as prováveis capacidades para o crescimento, competência e agilidade, podendo encontrar a esperança para a reintegração e a crença em responder às exigências do luto.
Desse modo, Landeiro [15] defende que na vivência de luto torna-se relevante a presença dos fatores protetores na vida dos enlutados, sendo constituintes do processo de resiliência familiar.
Quando se refere à resiliência familiar, faz-se interessante a explanação da estrutura conceitual do tema. Neste sentido, dentre as diversas discussões teóricas, se destacam as contribuições da Teoria de Froma [16], em que a mesma compreende a importância do fortalecimento dos processos interacionais da família.
Nessa ótica, a autora defende a resiliência familiar como um fenômeno que distingue a família como aquela capaz de vivenciar um processo, de encarar as estratégias como meio de reação e de resposta para superar as crises, os estresses persistentes e os desafios prolongados.
Tal processo, em geral, ocorre de maneira adaptativa, próspera e reorganizada em favor do bem-estar da dinâmica familiar. Fundamentam-se assim, os processos de enfrentamento e adaptação na família, num ponto de vista sistêmico.
Nessa concepção sistêmica, a família, mesmo em situação de risco, pode se propor ter autoconhecimento, ter anseio de crescer junta e busca uma vivência harmoniosa, aberta e sadia [17].
O processo de resiliência familiar é compreendido como uma dinâmica de desenvolvimento que transcorre de modo singular na organização, na comunicação, nos recursos pessoais e comunitários em busca de estabelecer soluções positivas no quotidiano em evolução [18].
Aliás, a resiliência familiar vai além de sobreviver a uma tribulação, ao colocar o potencial reparativo em ação, desencadeando transformações pessoais, familiares e relacionais.
Desse modo, a família resiliente é aquela que encontrando-se ante uma situação de risco, no entanto, resiste às circunstâncias desfavoráveis, de desorganizações, de confusões e de sofrimentos, assumindo uma postura flexível, consciente, dinâmica, coerente, e ainda, favorável a procura de sentido nos fatos oriundos em sua história.
Neste caso, esta experiência ocorre de forma processual, isto é, gradual, ao longo do tempo, num contexto de reconstrução de vidas, instauração de relacionamentos e despertar de novos propósitos [19].
Partindo desse pressuposto, suprime-se a ideia sobre a família em estado de desordens e hostilidades retratada numa família “defeituosa ou desajustada”, mas, ao contrário, ressalta uma família capaz de ultrapassar situações dramáticas e amadurecer diante da veracidade experimentada.
Este contexto desvencilha o entendimento quanto à normalidade familiar, que por muito tempo foi assimilada pela ausência de sintomas, sendo a família saudável vista enquanto um contexto utópico.
À vista disso, o surgimento da escassez de atenção sobre os pontos positivos e potencialidades na família foram ampliados, sendo que nos meados do século XX o foco maior na família se deu na perspectiva da psicopatologia [20].
Contudo, nas últimas décadas, teorias e abordagens foram reformuladas e expandidas no olhar sobre a complexidade da família contemporânea, ocorrendo então, mudança de foco acerca de déficits e disfunção familiar como desafios da atualidade.
Diante disso, o estudo sobre a resiliência familiar torna mais evidente a família saudável, a qual não exprime ausência de conflitos, mas sim, aquela que tem por motivação efetuar as potencialidades de cada membro, demanda a resolução de problemas com competência e influenciar no ajustamento entre os membros.
Com isso, a família resiliente equivale à mesma que manuseia a experiência árdua, resistindo ao estresse em prol de se reorganizar eficazmente e se adaptar de maneira saudável [21].
Neste aspecto, a resiliência familiar compreende-se como a soma de condições satisfatória que a família possui, levando em consideração as circunstâncias traumáticas provenientes das mudanças e adaptações de momentos conflitantes, acerca disso os familiares administram estes contextos saindo-os transformados em várias dimensões [22] [23].
Desta maneira, a resiliência é fomentada à proporção que ocorre a colaboração de cada membro, um na vida do outro, desde o incentivo a ter o senso de coerência, no estímulo a dar significado a cada experiência, no responsabilizar-se uns pelos outros, no potencializar aquilo que a pessoa tem de melhor, numa atitude de elogio, de encorajamento, de consolo, de ânimo, de soma na história de vida, de interesse em viver o desafio compartilhado, se comprometendo a estarem abertos, a reedificarem passo a passo uma vida familiar após uma realidade dolorosa [24].
Cristina Maria Brilhante da Silva
Possui Graduação e Pós-graduação em Psicologia e é Doutora em Psicologia na PUC-GOIÁS, na linha de pesquisa Psicologia da Saúde
Retirado da Tese: Morte e Câncer de Pulmão: Um estudo de resiliência em famílias enlutadas
________________________
[1] Braz, M. S., & Franco, M. H.P. (2017). Profissionais Paliativistas e suas Contribuições na Prevenção de Luto Complicado. Psicologia Ciência e Profissão, vol. 37, núm. 1, pp. 90-105 Conselho Federal de Psicologia, Brasília, Brasil.
[2] SOUSA, L. E. E. M. (2016). O processo de luto na abordagem gestáltica: contato e afastamento, destruição e assimilação. Revista IGT na Rede, v. 13, nº 25, p. 253 – 272. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526.
[3] WALSH, F. (2005). Fortalecendo a resiliência familiar. São Paulo: Roca.
[4] BARRETO, P.; TORRE, DE LA O.; PÉREZ-MARÍN, M. (2012). Detección de duelo complicado. PSICOONCOLOGÍA. Vol. 9, Núm. 2-3, pp. 355-368.
[5] FRANCO, M. H. P. (2010). Formação e rompimento de vínculos: O dilema das perdas na atualidade (pp. 145-168). São Paulo, Summus.
[6] LANDEIRO, E. (2011). Significações, reações familiares, avaliação, apoio à doença e luto. www.psicologia.pt, Portal dos psicólogos.
[7] FRANCO, op.cit.
[8] KOVÁCS, M. J. (2010). A morte no contexto escolar: desafio na formação de educadores. Em M. H. P. Franco (Org.), Formação e rompimento de vínculos: O dilema das perdas na atualidade (pp. 145-168). São Paulo, Summus.
[9] Ibid.
[10] BARBOSA, C. G.; MELCHIORI, L. E.; NEME, C. M. B. (2011). Morte, família e a compreensão fenomenológica: revisão sistemática de literatura. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v.17, n.3, p.363-377, dez.
[11] KOVÁCS, M. J. (2008). Desenvolvimento da tanatologia: estudos sobre a morte e o morrer. Paidéia, 18(41), 457-468. Recuperado de http://producao.usp.br/handle/BDPI/12009.
[12] DAVEL, A. P. C., & SILVA, D. R. (2014). O processo de luto no contexto do API-ES: aproximação as narrativas. Pensando Família [online], 18(1), 107-123.
[13] Ibid.
[14] KISSANE, D.; LICHTENTHAL, W.G.; ZAIDER, T. (2008). Family care before and after bereavement.OMEGA, Vol. 56(1) 21-32.
[15] LANDEIRO, op. cit.
[16] WALSH, op. cit.
[17] Ibid.
[18] SANTOS, S. M. R.; LACHARITÉ, C.; ARRUDA, S. P.; LERCH, L. V.; LUNARDI, F. W.D.(2009). Processos que sustentam a resiliência familiar: um estudo de caso. Texto & Contexto Enfermagem, vol.18, núm.1, enero-marzo, pp.92-99.
[19] WALSH, op. cit.
[20] WALSH F. (2007). Traumatic loss and major disasters: strengthening family and community resilience family process. Family Process, 46(2).
[21] Ibid.
[22] YUNES, M. A. M. (2003). Psicologia positiva e resiliência: o foco no indivíduo e na família. Psicologia em Estudo, 8, 75-84.
[23] SOUZA, M. T. S., & CERVENY, C. M. O. (2006). Resiliência: introdução à compreensão do conceito e suas implicações no campo da psicologia. Revista de Ciências Humanas, 12(12).
[24] WALSH, 2007, op. cit.