Formação

Novos céus e nova terra

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A modernidade pretendeu dar ao ser humano o estatuto da maioridade, da maturidade, a libertação de todas as tutelas, a autodeterminação sobre si próprio, sua vida, sua história e seu destino. Um projeto positivo, que faria a humanidade avançar.
Mas, para realizar esse sonho, que é válido se bem interpretado e bem conduzido, acabou encerrando o homem por demais na imanência deste mundo. Dispensou a transcendência divina. Tentou reduzir à irrelevância tudo o que ultrapasse as realidades terrestres mensuráveis e observáveis. A fé em Deus tolerar-se-ia, na melhor das hipóteses, como assunto privado e individual. Mas Deus não seria levado em conta nas grandes decisões sociopolíticas nem pesaria como fator importante nos grandes negócios e muito menos contaria nas pesquisas científicas e tecnológicas. Ainda se falaria em ética, mas sem base absoluta numa metafísica ou numa fé religiosa. Seria uma ética utilitarista e mínima, conveniente para não se correr o risco de tornar inviável a convivência humana, mas uma ética sempre relativa, muitas vezes apenas consensual e estatística.
Por outro lado, a modernidade procurou promover valores humanos verdadeiros, como a autonomia de todos os homens, a capacidade da razão, a liberdade e a dignidade iguais de todas as pessoas, os direitos humanos, a democracia, a autodeterminação dos povos, o progresso real das ciências e da tecnologia e tantos outros.
Contudo, encerrando o homem na imanência, os valores humanos perderam seu horizonte maior. O círculo imanente cerrado fez o homem voltar-se sobre si mesmo, num antropocentrismo exacerbado, que alimentou o egoísmo e o individualismo, a ponto de distorcer o amplo sentido desses valores. O individualismo egocêntrico tornou minha liberdade intolerante diante da liberdade dos outros, fez dos direitos humanos os meus direitos interesseiros, pouco importando se à custa dos direitos dos outros. Tudo é referido ao meu interesse individualista insaciável. Os outros pouco ou nada contam. A solidariedade desinteressada se esvazia. A competição tende a ser feroz, selvagem e irresponsável. Numa espécie de neodarwinismo sobrevive o mais poderoso, o mais forte e o mais esperto. Uma luta constante de poder e prestígio sobre os outros. Assim, a vontade do poder marca a modernidade.
Todavia, na medida em que prevalece o fechamento à transcendência divina, na medida em que predomina o antropocentrismo imanentista, não há esperança real para os mais profundos anseios do ser humano. O homem seria uma paixão inútil, como disse um filósofo. Uma afirmação derrotista, que no fundo niilista. Concretizando, a morte seria a perdição total e definitiva. Ora, a morte é um fato humano, cotidiano e inevitável. Se depois da morte nada há, então também não há esperança verdadeira. Daí, de um lado, a desesperada luta moderna pelo prolongamento da vida humana e, de outro, sua desvalorização, em tantas formas, como nas duas guerras mundiais deste século, nos genocídios, nos massacres, nas misérias e fomes consentidas pela comunidade internacional, nas violências urbanas e outras.
Mas não! A esperança existe e tem base. O homem não é uma paixão inútil. A morte não é um ponto final pavoroso. A modernidade fracassou na medida em que excluiu a transcendência divina e quis endeusar o homem, a quem, na verdade, tirou todo horizonte para se superar e sair da prisão egocêntrica. A fé cristã, ao invés, aponta uma esperança real. Por isso, um urgente diálogo entre fé cristã e cultura moderna se faz necessário, pois a modernidade mantém raízes cristãs, ainda que muito secularizada.
Deveras, a imortalidade do ser humano, na sua unidade de corpo e espírito, não é apenas um anseio íntimo e inútil de cada um de nós nem apenas uma vaga promessa de Deus, pois já ocorreu em Jesus Cristo, que ressuscitou dos mortos definitivamente. Essa ressurreição foi testemunhada por muitos e esse testemunho foi transmitido em documentos historicamente válidos. Portanto, a morte já foi vencida. Ela é apenas temporária, mas a vida terá a última palavra. Todos nós um dia ressuscitaremos.
De modo semelhante, haverá novos céus e nova terra. O Concílio Vaticano II, interpretando textos bíblicos (2Pd 3,13 e Rm 8,19-23), reafirmou que, com o gênero humano, o mundo todo encontrará sua restauração definitiva em Cristo. Depois de propagarmos na Terra os valores da dignidade humana, da comunidade fraterna e da liberdade, todos esses bons frutos da natureza e de nosso trabalho, diz o concílio, os reencontraremos, purificados de toda impureza, iluminados e transfigurados, quando no fim dos tempos Deus transformar toda a criação (GS 39). O mundo não será aniquilado, mas transformado e transfigurado em Deus.

Dom Cláudio Hummes.


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