A vida interior, embora tome lugar na interioridade do homem, envolve todo o seu ser. O ser humano, na natureza que Deus lhe concedeu para conhece-lo e amá-lo, foi criado corpore et anima unus, isto é, composto de corpo e alma [1]. O Catecismo ensina que o homem ocupa um lugar único na Criação pelo fato de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 29), e que em sua própria natureza une o mundo espiritual e o material:
“Deus criou conjuntamente, do nada, desde o início do tempo, ambas as criaturas, a espiritual e a corporal, isto é, os anjos e o mundo terrestre; em seguida, a criatura humana, que tem algo de ambas, por compor-se de espírito e corpo. [2]”
O fundamento da noção de que o homem une em sua própria natureza o mundo espiritual e o material reside em que ele é composto de um princípio pertencente à dimensão material, que é o corpo, e de outro pertencente à dimensão espiritual, que é a alma.
O corpo pode ser definido como “a substância física de cada homem ou animal” [3] e que o Gênesis descreve a sua formação da seguinte forma: “O Senhor Deus modelou o homem com a argila do solo” (Gn 2,7). Ora, aqui, o autor sacro não pretende explicar o caminho evolutivo até a formação do corpo humano, mas expressa a pertença do corpo ao mundo material. Nesta ocasião, não queremos nos deter muito na dimensão material, o corpo.
A alma compõe, junto com o corpo, o ser humano. Enquanto o corpo é o princípio material do homem, a alma pode ser considerada o princípio espiritual. O livro do Gênesis também menciona a alma, quando descreve que dá vida ao homem que formara da argila do solo com o Seu sopro (cf. Gn 2,7). Ao distinguir um princípio material e um espiritual, não nos referimos a uma união de duas naturezas que se unem, mas de dois compostos de uma única natureza. Neste sentido, o Catecismo afirma que a alma é a forma do corpo. Isto quer dizer que a vida da qual o corpo goza é devida à alma:
“A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como a forma do corpo; ou seja, é graças à alma espiritual que o corpo constituído é um corpo humano e vivo; o espírito e a matéria no homem não são duas naturezas unidas, mas a união deles forma uma única natureza. [4]”
O termo português “alma” vem do latim anima, que revela de maneira bastante clara a natureza da alma. A alma anima os seres, ou seja, lhes dá vida, tornando-os seres animados. A alma, ensina Santo Tomas de Aquino, “é o primeiro princípio de vida dos seres vivos que nos cercam, pois aos seres vivos chamamos de animados, e aos carentes de vida de inanimados” [5]. Todo ser vivo tem alma.
O cristão não deve incorrer do erro de compreender e tratar separadas as duas realidades que o compõem estando unidas. Caso contrário, podemos correr o risco de menosprezar um ou outro.
Por um lado, não podemos ignorar a alma espiritual e os cuidados que ela merece. Seria um erro pensar que somos apenas corpo. Se assim fosse, toda a nossa existência estaria fadada a acabar com a corrupção do corpo, e os desejos de eternidade que se verificam no homem há séculos, como bem deixa manifesta a história das religiões, seriam vãos e ilusórios.
Porém, se há no ser humano um desejo natural de eternidade é porque a sua própria natureza foi criada em ordem a isso. Não pode haver incoerência na natureza criada por Deus. Com efeito, fomos criados com uma alma subsistente, racional e imortal, o que expande o nosso horizonte além do conhecimento material e ao jugo do tempo.
Por outro lado, tampouco podemos ignorar a importância e sacralidade do corpo, que é também lugar de encontro com Deus, como o fizeram os gregos antigos, que viam o corpo como a prisão da alma, ou a heresia jansenista, que menosprezava a natureza humana exageradamente. Garrigou-Lagrange afirma que, assim como seria um erro defender a ausência da alma, seria também equivocado conceber o homem como apenas alma [6]. A alma não apenas “usa do corpo” para exercer as suas funções, mas é a forma substancial do corpo.
O Concílio Vaticano II exorta a não desprezar a vida corporal, mas a considerar o corpo como digno de respeito pelo fato de ter sido criado por Deus, assim como um meio de louvor ao Criador:
“O homem, ser uno, composto de corpo e alma, sintetiza em si mesmo, pela sua natureza corporal, os elementos do mundo material, os quais, por meio dele, atingem a sua máxima elevação e louvam livremente o Criador. Não pode, portanto, desprezar a vida corporal; deve, pelo contrário, considerar o seu corpo como bom e digno de respeito, pois foi criado por Deus e há de ressuscitar no último dia. [7]”
O corpo humano deve ser considerado como espaço sagrado estabelecido por Deus para ser, junto com a alma espiritual, lugar de habitação divina. O ser humano inteiro, na sua unidade corpo e alma, goza do privilégio de ser a única criatura feita à imagem de Deus (cf. Gn 1, 27), de modo que a dimensão material da sua natureza, o corpo, também participa desta dignidade:
“O corpo do homem participa de dignidade da ‘imagem de Deus’: ele é corpo humano precisamente porque é animado pela alma espiritual, e é a pessoa humana inteira que está destinada a tornar-se, no Corpo de Cristo, o Templo do Espírito. [8]”
Todo o nosso ser, corpo e alma, foi criado pelo Pai, redimido por Cristo e é santificado pelo Espírito Santo. Como um ser unificado, o homem se relaciona com Deus. Lembremos o canto do salmista: “minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor” (Sl 63/62).
[1] cf. Constituição Pastoral Gaudium et Spes, 14.
[2] CIC 327.
[3] Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
[4] CIC 365.
[5] ST I, q. 75, a. 1.
[6] Garrigou-Lagrange, La sínteses Tomista, Ediciones Desclée de Brouwer, Buenos Aires, Argentina 1946, pág. 211.
[7] Gaudium et spes, 14.
[8] CIC 363-364.
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