Ouçamos pois, o apóstolo Paulo que nos revela o ponto de vista de Deus com respeito ao pecado: “A ira de Deus se revela do alto do céu contra qualquer impiedade e injustiça dos homens, que com sua injustiça sufocam a verdade. Porque tudo o que se pode conhecer de Deus lhe é manifesto: Deus lho manifestou. Desde a criação do mundo, a inteligência pode perceber as perfeições invisíveis de Deus, seu poder eterno e sua natureza divina, através de suas obras. Por isso é que para eles não há desculpa. Porque, mesmo conhecendo a Deus, não o glorificam como Deus, nem lhe deram graças, mas se perderam em seus raciocínios falsos, e o seu coração insensato mergulhou na escuridão. Pretenderam ser sábios e tornaram-se estúpidos! Substituíram a glória do Deus imortal por imagens que representavam homens mortais, aves, quadrúpedes e répteis” (Rm 1,18-23).
O pecado fundamental, objeto primário da ira divina, é caracterizado por S. Paulo como asebeia, ou seja, impiedade. Em que consiste ao certo esta impiedade, ele o explica logo, dizendo que ela consiste na recusa de glorificar (doxazein) e agradecer (eucharistein) a Deus. Em outras palavras, na recusa de reconhecer a Deus como Deus, em não tributar-lhe a consideração que lhe é devida. Consiste, poderíamos dizer, em “ignorar” a Deus, onde, porém ignorar não significa tanto “não saber que existe” quanto “agir como se não existisse”. No Antigo Testamento, ouvimos Moisés gritar ao povo: “Reconhece que Deus é Deus!” (cf. Dt 7,9) e um salmista repete este grito dizendo: Reconhece que o Senhor é Deus: ele nos fez e somos dele! (Sl 100,3). Reduzido ao seu núcleo germinal, o pecado está em negar este “reconhecimento”; é a tentativa, por parte da criatura, de eliminar por iniciativa própria, quase que por prepotência, a infinita diferença que há entre ela e Deus. Assim fazendo, o pecado ataca a raiz das coisas; é um “sufocar a verdade”, uma tentativa de manter a verdade prisioneira da injustiça. Algo incomparavelmente mais tenebroso e terrível do que tudo que o homem possa imaginar e exprimir. Se o mundo soubesse o que é na realidade o pecado, morreria de pavor.
Esta recusa corporificou-se, em concreto, na idolatria, que consiste em adorar a criatura em vez do Criador (cf. Rm 1,25). Na idolatria, o homem não “aceita” Deus, mas institui um deus para si; a ele cabe resolver no que concerne a Deus e não vice-versa. Invertem-se os papéis: o homem torna-se oleiro de Deus, vaso que ele molda a seu querer. (cf. Rm 9,20ss).
Até aqui, o Apóstolo expôs a involução efetuada no coração do homem, a sua opção fundamental contra Deus. Agora, passa a expor os frutos dela derivados no plano moral. Isso tudo deu ensejo a uma dissolução geral dos costumes, uma verdadeira e autêntica “torrente de perdição” que arrasta a humanidade à ruína, sem que ela sequer se dê conta. Nesta altura, S. Paulo traça este quadro impressionante dos vícios da sociedade pagã: homossexualismo masculino e feminino, injustiça, perversidade, avareza, inveja, engano, maledicência, soberba, insolência, rebelião contra os pais, deslealdade… A lista dos vícios é extraída dos moralistas pagãos, mas a figura de que dela resulta é a do “ímpio” da Bíblia.
O que, à primeira vista, é desconcertante, é que Paulo interpreta toda essa desordem como conseqüência da ira divina. De fato, por três vezes repete a fórmula que o afirma de modo inequívoco: Por isso (isto é, por causa da ira divina) Deus os entregou à impureza… Por isso Deus os entregou a paixões infames… Porque desprezaram o conhecimento de Deus, Ele os abandonou em poder de uma inteligência depravada (Rm 1,24.26.28). Deus, indubitavelmente, não “quer” coisas dessas, mas as “permite” para fazer o homem compreender onde leva a sua rejeição. “Estas ações — nota Sto. Agostinho —, embora sendo castigo, também são pecados, porque o castigo da iniqüidade é ser ele mesmo iniqüidade; Deus intervém para punir o mal e da mesma punição pululam mais pecados” (De nat. et grat.). O pecado é o castigo de si mesmo, pois a Escritura diz: Com as mesmas coisas pelas quais alguém peca, será depois castigado (Sb 11,16).Enquanto o mundo ainda dura, revela-se assim nele o juízo de Deus; Deus é “forçado” a abandonar os homens a si mesmos para não abonar a sua injustiça e para que eles voltem sobre os próprios passos.