Em português, temos apenas uma palavra para designar esperança. No francês, no entanto, são dois termos: “espoir” e “espérance”. Usualmente, são termos intercambiáveis no francês moderno, mas originalmente possuem significados distintos. “Espoir” significa o fato de esperar e desejar algo melhor, para si e para os outros, podendo ser considerada como uma emoção ou uma paixão. “Espérance”, por sua vez, seria uma confiança pura e desinteressada no que há de vir, valor presente em diversas tradições religiosas. O crescente uso indistinto de termos de significados tão diferentes é indicativo de uma “crise de esperança” no mundo contemporâneo, que traz como herança dos séculos XIX e XX a fé num progresso material, fechando-se por vezes à dimensão transcendental da vida.
Em meio ao contexto da pandemia, que insiste em assolar a humanidade e toma contornos ainda mais dramáticos em nosso país, surgem em nós questionamentos quanto ao futuro, quanto às nossas expectativas de vida, o emprego, o retorno a uma normalidade nos relacionamentos, mas, principalmente, aparecem perguntas sobre “o que há de vir”, sobre a nossa “espérance”. Por mais paradoxal que possa parecer, é exatamente em momentos como esse que a esperança cristã revela sua profundidade e seu sentido prático.
A transcendência, constante na visão religiosa ou espiritual da esperança, foi negada por diversas correntes filosóficas ao longo dos dois últimos séculos. No centro do debate político-filosófico do século XX, encontramos o embate entre dois grandes sistemas não somente econômicos, o capitalismo e o comunismo, mas dois projetos de vida em sociedade, que, embora díspares em suas manifestações, encontram no materialismo (por um lado expresso na expansão da sociedade de consumo e por outro no método de interpretação histórica do materialismo histórico-dialético) e na “fé no progresso” um ponto em comum. Nesse contexto, as esperanças humanas estavam voltadas à realização desses projetos de sociedade, em período que ficou conhecido como “século das ideologias”.
A derrocada do comunismo soviético encerrou, ao menos no plano político internacional, o embate entre as grandes ideologias do século XX. Chegamos ao século XXI com a projeção quase global de uma sociedade “hiperindividualizada” e ao mesmo tempo massificada pelo consumo de mercadorias. A “hiperindividualização” e a consequente diminuição dos vínculos sociais (relações interpessoais, laborais e familiares mais fluidas) ensejam, contemporaneamente, relativo retorno de discussões sobre a transcendência, mas essa passa a ser compreendida como tema restrito ao foro individual. Ressurge, assim, a busca pelo que “há de vir”, mas essa esperança restringe-se ao plano do indivíduo, fazendo, algumas vezes, da transcendência mais uma mercadoria a ser consumida para o bem-estar individual.
Em sua encíclica “Spe Salvi”, Salvos pela Esperança, o Papa Emérito Bento XVI traz reflexão profunda sobre o tema da esperança cristã e, em determinado trecho faz o seguinte questionamento: “Por acaso, olhando precisamente a história atual, não se constata novamente que nenhuma estruturação positiva de mundo é possível nos lugares onde as almas se brutalizam”. De fato, no início do século XXI, ressurge a procura por religiões e experiências espirituais. É preciso identificar, assim, que nessa aparente busca “mercantilizada” da transcendência, há manifestação real da necessidade humana da esperança. Ainda que “brutalizada” pelo individualismo, a alma permanece sedenta de transcendência, sedenta de esperança.
Conquanto o cristianismo partilhe o cultivo da esperança com outras tradições religiosas, a perspectiva cristã traz particularidades importantes ao conteúdo dessa que é uma das virtudes teologais. A esperança cristã está fundamentada na pessoa de Jesus Cristo, em Sua ressurreição. Assim, a esperança cristã é essencialmente transcendente. A morte e ressurreição de Jesus Cristo alterou o curso da história, devolvendo à humanidade a possibilidade da transcendência. O caminho percorrido por Jesus, Deus que desceu do Céu e se fez homem para, por sua morte e ressurreição, abrir o Céu para a humanidade, traz consigo o mistério da esperança cristã.
Seguindo os passos de Jesus, a esperança cristã coloca-se como passagem, como caminho e é, assim, composta por dois elementos fundamentais: o aqui e o lá, o agora e o depois, o presente e o que há de vir. A aparente antítese dos termos é amalgamada pela esperança, que conecta esses polos distintos. A esperança, firmada no Deus que se faz homem, no Eterno que entra no tempo, é responsável por antecipar a eternidade para aqueles que creem, proporcionando-os a firmeza para enfrentar as vicissitudes da vida presente.
Em Cristo, a esperança humana, então, é capaz de transcender, de romper os limites do tempo e do espaço, lançando a humanidade na eternidade. O sentido cristológico da esperança, assim, é chave também para a compreensão de sua dimensão transcendente. O Deus que se faz homem, que sai da eternidade e entra no tempo, dá sentido à transcendência da humanidade, à passagem do tempo para a eternidade. A esperança cristã, assim, significa ter como meta de vida nessa terra a eternidade. Assim, as realidades terrenas, com suas alegrias e esperanças, tristezas e angústias, tomam sua real dimensão diante da transcendência do homem, diante da eternidade.
Também, e exatamente por isso, por estar centrada em Cristo, a esperança não é para o cristão uma mensagem de conteúdo apenas informativo, mas performativo. Ela não apenas informa nosso intelecto sobre as realidades futuras, sobre a vida eterna, mas é conteúdo vivo em nossas vidas, que, a partir do olhar da eternidade, nos leva a mudarmos nossa forma de ver as coisas do mundo e nossos comportamentos.
Em meio a contexto tão adverso como este da pandemia, a esperança mostra sua potência transformadora. Ancorados na eternidade, os cristãos são chamados a manifestar a esperança daqueles que encontraram Aquele que dá sentido verdadeiro à vida e que não os deixa sozinhos nos caminhos aqui na terra, porque ele mesmo “se fez carne a habitou entre nós”. É momento de dor, de luto, mas, com Cristo, em Cristo e por Cristo, somos convidados a lançar nosso olhar para aquilo que não passa, para a eternidade, e, assim, nutridos da força de Sua Ressurreição, que nos abre as portas do Céu, não nos deixarmos paralisar pelas dificuldades que vivenciamos, sabendo que a morte não tem e não terá a última palavra.
Emanuel Magalhães. Diplomata e Mestre em Economia Política Internacional.
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