Há uma tribo africana que tem um costume muito interessante.1 Quando a mãe decide ter um filho, ela vai para debaixo de uma árvore, a sós, abre-se para escutar uma nova melodia, certamente inspiradora, do futuro filho que ela já pensa em conceber. Então, ela ensina essa canção ao homem com quem gerará esse filho. Eles cantam essa mesma canção no momento da relação sexual.
Grávida, a mãe ensina ao fruto do seu ventre, sua própria canção. Parteiras do vilarejo e toda a vizinhança também aprendem a harmonia, para que possam cantar no momento em que esta mãe estiver para dar à luz. Chegado o momento, põem-se ao redor desse novo ser que virá ao mundo e cantam sua própria canção, irrepetível como este filho.
No decorrer da sua vida, essa canção é cantada várias vezes: quando essa criança cai, quando ela faz algo admirável ou mesmo em fases importantes e delicadas, que talvez lhe exigirão mais, como na puberdade. Se, porventura, essa pessoa venha a cometer algum crime ou tenha alguma conduta reprovável, é chamado para o centro da comunidade e toda a aldeia canta sua canção, mais uma vez, como forma de lhe honrar. No casamento, essa mesma canção vem à tona. No instante final, derradeiro, ante seu corpo morto, essa canção é, por fim, fielmente cantada, brindando essa existência pensada e cultivada, corrigida e exaltada, de maneira a tornar-lhe sempre mais único como uma canção, SUA canção.
Como se nota, o costume utilizado por esta tribo está recheado de afetos que permeiam toda uma existência. Os afetos são importantíssimos componentes do complexo e vasto mundo da afetividade humana. Graças a eles, podemos amar sempre de forma mais criativa. E para amar é preciso ser criativo? Resposta: SIM! Há algo mais criativo que lavar os pés para mostrar como devemos servir aos nossos irmãos? E quando Jesus tomou os pequeninos no colo para fazer-nos compreender que devemos ser como eles? Somos, assim, seres afetivos.
Isso se dá porque “O corpo humano (…) encerra ‘desde o princípio’ (…) a capacidade de exprimir o amor: aquele amor em que o homem-pessoa se torna dom e, mediante esse dom, realiza o próprio sentido do seu ser e existir”.2
A afetividade é um dom de Deus. Porém, a partir do pecado original “o domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo foi quebrado”3 e o homem passou a ter uma natureza “enfraquecida e inclinada ao mal”4 . Os diversos fenômenos da afetividade – sentimentos, emoções, paixões – na medida em que não estão sob o domínio da razão e da vontade, não são classificáveis, em si mesmos, como morais ou imorais.
Não obstante a ruptura do domínio da inteligência e da vontade sobre a afetividade, que faz com que o homem não tenha um direto poder sobre os próprios sentimentos, emoções e paixões, é preciso reconhecer que os atos livres do homem influenciam a sua afetividade. Assim, a sua opção, por exemplo, por se expor a uma determinada situação ou evitá-la, ou por deter-se em uma imagem ou abandoná-la, e ainda por cultivar ou não uma certa relação, será determinante para a sua vivência afetiva.
Para ser bem preto no branco com vocês, a verdade é que, com o pecado original, toda a nossa afetividade ficou bagunçada. É uma área na qual todos nós somos tentados. Todos? TODOS! Muitas vezes fazemos o que não gostaríamos de fazer.3 Somos surpreendidos por pensamentos que se desdobram em ações e, minutos depois, pensamos: porque pensei/fiz isso? Por que tantas vezes expresso de maneira errada os valores que existem em mim? Simples: por causa do pecado.
Qual seria, então, o caminho para a santidade nos nossos afetos? Ou melhor, qual seria o caminho para educarmos nossos afetos para a santidade? Nesse aspecto, temos que abraçar uma graça com todo desejo: a castidade. “Tu te tornas semelhante ao que contemplas”, como nos ensina São João Paulo II. Isso significa que, quanto mais estamos em comunhão com os pensamentos e sentimentos do Senhor, mais nos assemelhamos a Ele, mais amaremos como ele. Não amamos de qualquer forma, pois no batismo nos comprometemos a viver a afetividade na castidade.5
Viver a castidade com toda a intenção e intensidade do coração, guardando o segredo da pureza, mesmo sabendo que somos capazes de pecar gravemente no uso desordenado dos nossos afetos. Ter um coração puro, que se expressa na graça de querer uma só coisa, Deus.6
Só poderemos aprender a cantar a própria canção da nossa vida em cada alegria, queda ou frustração, se aprendermos o sábio caminho que conduz a ordem também dos nos nossos afetos, que passa pelas leis de crescimento na castidade.7 Contemplar a Cristo Casto na nossa oração fará tocar a bela canção da nossa própria vida.
Por Thiago Mesquita de Sousa
Advogado, Consagrado na Comunidade de Aliança Shalom
Referências
1. Atribuído a Tolba Phanem.
2. Catequese XV, 16 de janeiro de 1980, Joao Paulo II.
3. Catecismo da Igreja Católica (300).
4. Catecismo da Igreja Católica (405).
4. Rm 7,5
5. Catecismo da Igreja Católica (2348).
6. CENCINI, Amedeo. Virgindade e celibato hoje: para uma sexualidade pascal. São Paulo: Paulinas, 2017.
7. Catecismo da Igreja Católica (2343).
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